terça-feira, abril 11, 2006
Datafolha rasga a fantasia iluminista da imprensa
GILSON CARONI FILHO
Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa em 10/04/2006
Foi uma ducha fria para tucanos e aliados. No fim de semana, o instituto Datafolha publicou a mais recente pesquisa sobre intenções de voto para presidente. Lula manteve estável sua liderança. Alckmin que, por gravidade, deveria ter subido, apresentou ligeiro declínio. Até mesmo Anthony Garotinho, do PMDB, com todos os problemas que envolvem sua pouco provável candidatura, oscilou positivamente. O resultado da pesquisa, anunciado dentro de estreitas margens de erro, é fato não previsto no script dos oposicionistas. Algo que merece reflexão mais séria da própria imprensa sobre seu papel na sociedade. Um misto de consternação e perplexidade tomou conta de nove entre 10 colunistas. Os principais blogs de portais jornalísticos não escondem a frustração de quem, meses a fio, desenvolveu um trabalho extenuante que, agora, se mostra inútil. Mais que a inviabilidade eleitoral do ex-governador paulista, o Datafolha talvez tenha capturado um dado de extrema importância: a deslegitimação do discurso jornalístico e das representações que estão por trás dele. Da seleção e organização de informações à edição, temos visto, em quase todos os veículos, a orientação editorial condicionar o conteúdo da reportagem. A negligência investigativa transformou-se no foco adequado a um jornalismo marcadamente de campanha. Ora, a crise do atual governo é, em grande parte, uma realidade produzida por recortes de mídia. Não poucas vezes, o dado concreto cedeu lugar à imaterialidade midiática. Indícios viraram manchetes. E, não tenham dúvida, estas reaparecerão na campanha eleitoral. O resultado é a saturação que deslegitima o fazer jornalístico como práxis ética. O relatório final do deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) foi aprovado pela CPI dos Correios no dia 5 de abril. Parlamentares do PT ficaram descontentes com a manutenção dos principais pontos do documento, como a existência do " mensalão" e o indiciamento dos ex-ministros José Dirceu e Luiz Gushiken por corrupção ativa. Era de se esperar que o contraditório tivesse espaço nas folhas. Mas o que se viu foi celebração digna de jornalismo esportivo. O Jornal do Brasil não hesitou, e na edição de 6/4 colocou como manchete: "Mensalão existiu. PT saudações". Talvez tenha sido o mais tosco de todos os jornais, mas reproduziu o espírito reinante nas principais redações. Versão e axioma Voz solitária foi a revista CartaCapital. Em matéria assinada por Sérgio Lirio, o trabalho do deputado paraense é descrito sob outra ótica.
"Após 287 dias, o trabalho de Serraglio continua com as mesmas incongruências apresentadas nos textos parciais. Dos 19 deputados acusados de receber o mensalão, sete são filiados ao PT. Por que parlamentares petistas precisariam receber dinheiro para votar com o governo? Outro citado, Roberto Brant, integra o PFL, legenda que mais faz oposição a Lula no Congresso. Sem os petistas e Brant sobram 11 parlamentares da base governista. É possível ganhar uma votação pagando a tão pouca gente? Outra dúvida: se o relator confirma o mensalão, por que os parlamentares serão indiciados apenas por crime eleitoral, que pune caixa 2"?
Mas podemos formular mais perguntas: por que o banqueiro Dantas sequer foi citado no relatório? Por que não há referências ao caso Fundacentro? Foi assim, sem provas e argumentos consistentes, que ficou comprovada a existência do "mensalão". Ficou claro por quem dobram os sinos. Telespectadores, leitores e ouvintes não engoliram em seco a nova criação da mídia. Talvez a pesquisa sinalize nessa direção. Outro deslocamento semântico é observado no emprego da palavra "pizza". Quando o plenário rejeita recomendação do Conselho de Ética da Câmara e absolve um parlamentar, sai da fornada uma nova pizza. Os telejornais se esmeraram na reprodução gráfica da massa e sua presença em charges de primeira página deve intrigar os pizzaiolos mais desavisados. É uma maneira de, pela simplificação e repetição exaustivas, transformar em axioma o que é apenas a versão de um dos lados em confronto. Ao fazê-lo, o que deveria ser produto jornalístico assume o caráter de house organ. Chamar a isso de texto informativo é fazer pouco da inteligência do senso comum.
Menos gelatinosa
Recurso muito utilizado pelos articulistas militantes é o emprego descontextualizado de palavras e conceitos. Opinião pública é um desses casos. Senhora desconcertante e enigmática, parece não ter aparecido na pesquisa do Datafolha. Definida por Pierre Bourdieu como "artefato puro e simples cuja função é dissimular que o estado da opinião em um dado momento do tempo é um sistema de forças (...)", virou casca de banana para o colunista Merval Pereira, do Globo. Desavisado, afirmou, em 12/3, que o sociólogo francês havia escrito um livro sobre o assunto: "Bourdieu debruça-se sobre o assunto em um livro sintomaticamente intitulado ‘A opinião pública não existe’". Sintomaticamente, o que não existe é o livro citado. O texto é um ensaio publicado na coletânea Questões de sociologia, da Editora Marco Zero. Isso seria um erro menor se o mesmo jornalista, seguindo o rastro de outros profissionais do ramo, não insistisse em chamar Lula de populista. Ignora que o termo descreve um período singular de países latino-americanos: substituição de importações, incorporação controlada de massas ao mercado de trabalho, criação de direitos sociais e surgimento de líderes carismáticos pela via eleitoral. Fora desse contexto, seu emprego é mero recurso retórico esvaziado de conteúdo. Serve apenas como propaganda ideológica. Mas o que fez a mídia perder-se de si mesma, invalidando seus estatutos de verdade, foi a crença nas auto-representações. A imprensa imagina-se, como destaca Emiliano José, uma espécie de "parlamento sem voto", podendo, nesse raciocínio, falar em nome do povo. Quem conhece o entrelaçamento de interesses que a torna sócia das classes dominantes sabe o quão ingênua é essa caracterização. Quando não tínhamos sedimentação social suficiente que nos permitisse dizer em nome de quem se estava exercendo a delegação do poder talvez a realidade estivesse menos distante da idealização. Hoje, no entanto, nossas estruturas estão bem mais consolidadas. Nossa sociedade está bem menos gelatinosa. Falando sozinha Acreditar, por exemplo, que a mídia derrubou Collor faz parte desse imaginário tão caro ao campo jornalístico. Invertendo os raciocínios habitualmente empregados, cumpre dizer que foi a sociedade civil que, à época, mobilizou a imprensa. O papel desta limitou-se a conter o impeachment nos marcos do bloco de poder que o havia levado à presidência. A pesquisa Datafolha reitera o fim do mito. Apesar do empenho, redações e ilhas de edição não lograram mobilizar a sociedade civil contra o governo Lula. Outro erro primário, resultante da fantasia iluminista do papel da mídia, é atribuir a popularidade do presidente à desinformação dos setores mais pobres. Confunde-se, nesse caso, consenso passivo com desinformação. Mesmo nos rincões, a informação, etiquetada com a objetividade jornalística, já chegou e foi decodificada politicamente. O grande equívoco dos donos de meios de comunicação foi subestimar o peso da crise deflagrada a partir da entrevista de Roberto Jefferson à Folha de S.Paulo. A ferida ética do PT não redimiu velhos atores, mas, ao contrário, contaminou todo o campo político. Ao imaginar que responsáveis por descalabros recentes pudessem virar vestais, a aproximação com tais atores chamuscou seu capital simbólico. O que a pesquisa reflete é algo muito singular para ser ignorado. A população aprendeu a ler sua mídia e a ver as imagens com mais nitidez. E a deixou falando sozinha. Lamento e senha Os próximos lances serão decisivos. É sabido que a grande imprensa tucana tem clara preferência por José Serra. É provável que não poupem Alckmin, para deflagrar de vez o plano B. Será interessante observar o conservadorismo brasileiro esperando Serra como quem espera Godot. O texto abaixo, extraído do blog do jornalista Ricardo Noblat, é só um aperitivo do que vem por aí.
Para eleger Lula
O ex-prefeito José Serra deve estar gargalhando com o resultado da pesquisa do Instituto DataFolha. Geraldo Alckmin, por sua vez, deve estar repetindo que a campanha só começa com o período de propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Nada mais falso. O período de propaganda dura 45 dias. Nos primeiros, a audiência costuma ser baixa. Se quiser ganhar, um candidato tem de chegar lá com alto índice de conhecimento e bem nas pesquisas. O índice de conhecimento de Serra era alto. E somente ele empatava com Lula ou encostava nele. O PSDB preferiu disputar com um candidato reserva. O crescimento de Garotinho não deverá tirar o PMDB do seu rumo. Em mais de uma dezena de Estados, candidatos ao governo do PMDB estão aliados com o PSDB e o PFL. Preferem, pois, que o partido não tenha candidato a presidente. Garotinho só não pode é crescer muito e ficar com pinta de quem irá disputar um eventual segundo turno com Lula – ah, isso não. Ter um candidato forte a presidente seria a desgraça do PMDB. Em resumo: o PSDB e o PMDB operam de forma acelerada para reeleger Lula. Acabarão conseguindo. Mistura de lamento e senha, tem lá seu valor documental.
(*) Professor de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro
http://www.informante.net/resources.php?catID=2&pergunta=1005#1005