A volta dos islamistas?[1] Uma forma questionável de liberdade para o norte da África 28/9/2011, Clemens Höges e Thilo Thielke, Spiegel Online (trad. para o inglês, Christopher Sultan)
http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,788397,00.html
(Sugestão do prof. Moniz Bandeira, que nos ajuda, da Alemanha, e a quem agradecemos.)
Foram-se os ditadores, mas quem herdará o poder na Líbia, na Tunísia e no Egito? A influência islamista é significativa em toda a região e grupos políticos conservadores já exercitam os músculos. Os próximos meses definirão o quanto de democracia o norte da África pode suportar.
Caixas de munição, agora vazias, passado o mais recente bombardeio pesado, estão empilhada à frente de barracas militares no aeroporto de Trípoli. Um dos vitoriosos, fatigado de muitos combates militares, está sentado numa luxuosa poltrona de couro, no prédio do aeroporto. Pressiona os coturnos de combate sobre o tapete alto, o rosto, rígido, parece talhado em pedra. O homem fala com intensidade. Quer garantir que a gravação em vídeo não perca nenhuma de suas frases e que tudo seja bem compreendido.
As agências de inteligência de EUA e Grã-Bretanha caçaram Abdel Hakim Belhaj, durante anos. O homem, hoje, é comandante dos rebeldes líbios, da brigada de Trípoli. Mas foi caçado, antes, porque se acreditava que fosse terrorista e aliado do então líder da al-Qaida, Osama bin Laden. Sabe-se que aquelas agências o sequestraram, que foi torturado com seringas e água gelada. Mas hoje, o ocidente e muitos, na Líbia, prestam extrema atenção ao que ele diz, bebem suas palavras.
“A verdade é que nosso grupo nada tinha a ver com a al-Qaida naquele tempo” – diz Belhaj, combatente veterano da guerra no Afeganistão e ex-líder do Grupo de Combate Islâmico Líbio [ing. Libyan Islamic Fighting Group (LIFG)], que, perseguido pelo regime de Moammar Gadhafi, viveu vários anos refugiado no Afeganistão. Belhaj, islamista endurecido em muitas batalhas, é hoje o comandante das tropas rebeldes na capital da Líbia.
Seus comandados movimentam-se, dirigindo caminhonetes, armados com armas automáticas, enquanto as cabeças civis tentam mapear um caminho para o futuro da Líbia. Belhaj diz que o poder “está nas mãos do povo líbio” e que, agora, os líbios podem decidir democraticamente o que querem fazer da vida. “Queremos país secular” – diz ele. Mas muitos líbios não acreditam sequer numa palavra do que os islamistas andam dizendo.
Diferenças profundas
Afinal, há mais coisas em jogo, hoje, do que apenas a questão de quem está atualmente no poder. Trata-se de modelar o futuro da Líbia. Os levantes da Primavera Árabe já são passado no Norte da África e, quando começam a mudar os regimes na Tunísia e no Egito, emergiu na Líbia, vitoriosa, uma coalizão de islamistas e insurgentes seculares. Os combates são dados por encerrados, ou quase; e as profundas diferenças entre os dois grupos da coalizão vão-se tornando mais visíveis.
Como na Tunísia e no Egito, logo se verá o quanto democrática poderá ser a nova Líbia. Acompanhará as linhas do modelo turco, divulgado pelo primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, em celebrada viagem pelo mundo árabe? Ou, no outro extremo, a Líbia seguirá o modelo da teocracia iraniana?
Os ditadores eram convenientes, do ponto de vista do ocidente, porque mantiveram os islamistas sob controle. Agora, os povos derrubaram os ditadores, e as novas liberdades aplicam-se a todos, inclusive a islamistas e jihadists que querem ver introduzida em seus respectivos países a lei da Xaria. Reclamam sua fatia de poder, que dificilmente será pequena.
As brigadas islamistas combateram muito, na Líbia. Não fizeram feio. De fato, desde décadas antes das revoluções no norte da África, os islamistas já eram o grupo mais bem organizado da oposição nos três países. Muitos de seus líderes foram presos, torturados e mortos. Os islamistas pagaram pesado preço, o que fez deles combatentes muito resistentes. Sempre tiveram, também, mais recursos financeiros que outros grupos de oposição, em parte graças ao apoio de ricos xeiques do Golfo, como do Qatar.
Está para ser eleita, em quatro semanas, uma assembleia constituinte na Tunísia,[2] e pesquisas mostram que o partido religioso Nahda pode receber 20-30% dos votos. Os islamistas, com isso, teriam maioria sobre qualquer dos partidos seculares.
Potencial estimado
Não chega a surpreender, porque os islamistas são mobilizados para fazer as maiores campanhas eleitorais, mantêm projetos sociais, distribuem bolsas de estudo, são onipresentes e ativos nas mesquitas. Muitas mulheres já reclamam contra ataques à luz do dia. Quando, em Túnis, exibiu-se um filme com críticas à religião, os islamistas invadiram o cinema e atacaram os proprietários da sala.
Observadores no Egito estimam que os islamistas egípcios – a Fraternidade Muçulmana e os salafistas – tenham os mesmos cerca de 20-30% de eleitores em potencial. A Fraternidade Muçulmana, que hoje se chama Partido Justiça e Liberdade, já cogita criar regras rígidas de indumentária para mulheres estrangeiras, proibindo-as de usar biquínis nas praias egípcias. Os fiéis salafistas já criaram vários diferentes partidos.
Quando os dois grupos organizaram manifestação conjunta na Praça Tahrir no Cairo, reuniram dezenas de milhares de seguidores, que exigiam estado islamista. Muitos, hoje, responsabilizam os salafistas por recente ataque a igrejas cristãs coptas no Egito.
A situação na Líbia é muito mais caótica que nos dois países vizinhos, em parte porque os rebeldes ainda enfrentam resistência de defensores de Muammar Gaddafi. Mesmo assim, o Conselho Nacional de Transição, presidido por Mustafa Abdul Jalil, e o chamado Comitê Executivo, liderado por Mahmoud Jibril, apresentou um roteiro para a democratização do país que prevê eleição de um Congresso Nacional de 200 membros, a serem eleitos dentro de oito meses. Com prazo de um ano, esse congresso deverá redigir uma constituição, organizar um referendum para que os cidadãos aprovem a nova constituição e, então, organizar eleições gerais.
Belhaj, comandante militar de Trípoli, sente-se suficientemente poderoso para opor-se a Jibril, que opera como primeiro-ministro de facto. Belhaj trabalha para derrubar Jibril do cargo que hoje ocupa.
Acusações de corrupção
Mas os islamistas líbios mais influentes são, provavelmente, os irmãos Salabi. Ismail Salabi comanda uma da mais violentas brigadas rebeldes em Benghazi. O irmão, Ali, considerado líder religioso no país, viaja sem parar entre Líbia e Qatar, a monarquia árabe do Golfo Persa que supriu com armas os rebeldes e treinou soldados.
Os irmãos Salabi já várias vezes tentaram desacreditar os membros do Conselho Nacional de Transição, com acusações de corrupção. Ali Salabi diz que o conselho está repleto de “secularistas radicais” que tentam deslocar os grupos religiosas antes das eleições, e que Jibril quer inaugurar “nova era de tirania e ditadura”.
Os islamistas líbios planejam constituir um partido religioso. Mas Ali Salabi diz que, se não se saírem bem nas eleições, respeitarão a vontade do povo. Salabi insiste que acredita na democracia.
Mas muitos desconfiam de radicais como os irmãos Salabi, sobretudo depois do assassinato de Abdul Fattah Younis. Ex-ministro do Interior no governo de Gaddafi, Younis juntou-se aos rebeldes alguns dias depois do início da rebelião, e, como comandante-em-chefe, organizou o exército rebelde. Seu cadáver foi encontrado, com dois outros mortos, dia 28/7, perto de Benghazi. Até hoje não se sabe quem matou Younis e os dois companheiros e incineraram os corpos, mas os islamistas são os principais suspeitos.
Fathi Bin Issa, editor-chefe do novo jornal Arus al-Bahr, de Trípoli, nos recebeu em sua sala longa e estreita, iluminada com lâmpadas fluorescentes, frias. Ao lado da mesa, tem a bandeira verde e preta da nova Líbia. Bin Issa foi porta-voz dos rebeldes logo depois que ocuparam a capital, e seus editores escrevem agora regularmente sobre os islamistas. Diz que, só na semana passada, recebeu várias ameaças de morte, gente que diz que vai explodir as salas do jornal.
Bons contatos e uma agenda
“Há gente aqui tentando construir um Hezbollah líbio”, diz Bin Issa. “Há grande risco de que assumam o poder”. Em alguns bairros, diz o jornalista, já circulam fatwas que proíbem as mulheres de saírem desacompanhadas. Diz também que vários salões de beleza foram fechados, e que elementos de uma autoproclamada polícia religiosa já começam a circular pelas ruas. “Esse pessoal tem bons contatos e tem agenda. Por isso são tão perigosos”. Para Bin Issa, tudo agora depende de como a sociedade civil reagirá às mudanças. “Se não conseguirmos conter esse pessoal, as condições aqui ficarão parecidas com o Irã, ou com os tempos dos Talibã”, diz ele.
Apoiador dos rebeldes, Bin Issa acredita que os líbios não tenderão na direção do Islã radical. “Aqui na Líbia, as mulheres trabalham como pilotos de avião e juízas, e foram importantes para promover as mudanças que temos hoje. Nosso Islã é moderado.”
O coronel Ali Ahmed Barathi, 53, é o novo chefe da polícia militar em Tripoli. Está instalado no prédio que abrigava a conhecida 32ª Brigada, grupo de torturadores comandado por Khamis, filho de Gaddafi, nos arredores de Trípoli. O coronel nos recebe em sua sala, sentado a uma mesa enorme. Usa os óculos escuros obrigatórios e tem mãos grossas, de soldado profissional. Mas fala com suavidade.
O coronel Barathi é nascido em Benghazi, onde imediatamente se reuniu aos rebeldes. “Reuni minha unidade e disse que tinha planos de mudar de lado. Cada soldado escolheu ficar, ou nos acompanhar. Toda a unidade desertou.”
Escaramuças com islamistas
As atividades dos islamistas não preocupam Barathi. “Os líbios não querem ser governados por essa gente. Até Belhaj já reconheceu isso e tem sido reservado nos comentários.”
Mas, então, fala sobre escaramuças com islamistas e diz que seus homens desmontaram uma unidade inteira de islamistas, logo no início da rebelião. “Os islamistas foram isolados pelas tribos, que não queriam contato com eles. E lhes demos um ultimato: ou uniam-se a nós, ou depunham armas. Muitos entregaram as armas. Outros desertaram.”
Aref Nayed, coordenar da chamada equipe de estabilização do governo rebelde tem esperanças de que a disputa entre islamistas e seculares leve a um bom resultado – um verdadeiro pluralismo. Rico empresário da indústria informática, acadêmico islâmico e filósofo, Nayed é frequentemente encontrado no saguão do Hotel Corinthia, em Trípoli, à beira mar, como vários outros dos principais políticos do país.
Homem elegante, de barba bem aparada, Nayed estudou no Canadá e nos EUA e trabalhou na Itália. É adepto de costurar acordos entre partidos que se oponham.
“As tribos mantêm coesa a sociedade”
Depois do mal pensado discurso do papa Bento 16, em 2006, em que o papa incitou os muçulmanos religiosos contra a igreja católica, Nayed foi um dos acadêmicos muçulmanos que assinou uma carta ao papa, para reiniciar os contatos. Quando Nayed uniu-se ao Conselho Nacional de Transição, o Vaticano anunciou que o papa muito se alegrara ao ver que “um velho amigo” se tornara figura chave, na Líbia.
Nayed sonha com uma conciliação entre a Líbia secular e a Líbia islamista, arranjo que poderia vir a servir de modelo para o mundo árabe, com os islamistas reconhecidos como força política, talvez até com mulheres no Gabinete. Nada disso, diz Nayed, contrariaria qualquer dos postulados do Islã. O presidente do Conselho Nacional de Transição, Abdul Jalil, que é muçulmano devoto, também apóia a conciliação. Além do mais, diz Nayed, não são os políticos, mas as tribos líbias, “que mantêm coesa a sociedade.”
Por mais que cite entusiasmadamente antigos filósofos, a arma está na cintura, por baixo do paletó caro. O cinto fino não suportaria a pesada pistola 9-mm. “Não planejo usar isso” – Nayed sussurra. Diz que os guarda-costas insistiram que andasse armado, para que não ficasse desprotegido quando andasse em público.
Na Praça dos Mártires – a Praça Verde, antes da chegada dos rebeldes –, em Trípoli, vê-se uma grande fotografia do general Younis, que foi assassinado. O general rebelde sabia manejar muito bem a pistola. De pouco lhe serviu.
http://www.spiegel.de/international/world/0,1518,788397,00.html
(Sugestão do prof. Moniz Bandeira, que nos ajuda, da Alemanha, e a quem agradecemos.)
Foram-se os ditadores, mas quem herdará o poder na Líbia, na Tunísia e no Egito? A influência islamista é significativa em toda a região e grupos políticos conservadores já exercitam os músculos. Os próximos meses definirão o quanto de democracia o norte da África pode suportar.
Caixas de munição, agora vazias, passado o mais recente bombardeio pesado, estão empilhada à frente de barracas militares no aeroporto de Trípoli. Um dos vitoriosos, fatigado de muitos combates militares, está sentado numa luxuosa poltrona de couro, no prédio do aeroporto. Pressiona os coturnos de combate sobre o tapete alto, o rosto, rígido, parece talhado em pedra. O homem fala com intensidade. Quer garantir que a gravação em vídeo não perca nenhuma de suas frases e que tudo seja bem compreendido.
As agências de inteligência de EUA e Grã-Bretanha caçaram Abdel Hakim Belhaj, durante anos. O homem, hoje, é comandante dos rebeldes líbios, da brigada de Trípoli. Mas foi caçado, antes, porque se acreditava que fosse terrorista e aliado do então líder da al-Qaida, Osama bin Laden. Sabe-se que aquelas agências o sequestraram, que foi torturado com seringas e água gelada. Mas hoje, o ocidente e muitos, na Líbia, prestam extrema atenção ao que ele diz, bebem suas palavras.
“A verdade é que nosso grupo nada tinha a ver com a al-Qaida naquele tempo” – diz Belhaj, combatente veterano da guerra no Afeganistão e ex-líder do Grupo de Combate Islâmico Líbio [ing. Libyan Islamic Fighting Group (LIFG)], que, perseguido pelo regime de Moammar Gadhafi, viveu vários anos refugiado no Afeganistão. Belhaj, islamista endurecido em muitas batalhas, é hoje o comandante das tropas rebeldes na capital da Líbia.
Seus comandados movimentam-se, dirigindo caminhonetes, armados com armas automáticas, enquanto as cabeças civis tentam mapear um caminho para o futuro da Líbia. Belhaj diz que o poder “está nas mãos do povo líbio” e que, agora, os líbios podem decidir democraticamente o que querem fazer da vida. “Queremos país secular” – diz ele. Mas muitos líbios não acreditam sequer numa palavra do que os islamistas andam dizendo.
Diferenças profundas
Afinal, há mais coisas em jogo, hoje, do que apenas a questão de quem está atualmente no poder. Trata-se de modelar o futuro da Líbia. Os levantes da Primavera Árabe já são passado no Norte da África e, quando começam a mudar os regimes na Tunísia e no Egito, emergiu na Líbia, vitoriosa, uma coalizão de islamistas e insurgentes seculares. Os combates são dados por encerrados, ou quase; e as profundas diferenças entre os dois grupos da coalizão vão-se tornando mais visíveis.
Como na Tunísia e no Egito, logo se verá o quanto democrática poderá ser a nova Líbia. Acompanhará as linhas do modelo turco, divulgado pelo primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, em celebrada viagem pelo mundo árabe? Ou, no outro extremo, a Líbia seguirá o modelo da teocracia iraniana?
Os ditadores eram convenientes, do ponto de vista do ocidente, porque mantiveram os islamistas sob controle. Agora, os povos derrubaram os ditadores, e as novas liberdades aplicam-se a todos, inclusive a islamistas e jihadists que querem ver introduzida em seus respectivos países a lei da Xaria. Reclamam sua fatia de poder, que dificilmente será pequena.
As brigadas islamistas combateram muito, na Líbia. Não fizeram feio. De fato, desde décadas antes das revoluções no norte da África, os islamistas já eram o grupo mais bem organizado da oposição nos três países. Muitos de seus líderes foram presos, torturados e mortos. Os islamistas pagaram pesado preço, o que fez deles combatentes muito resistentes. Sempre tiveram, também, mais recursos financeiros que outros grupos de oposição, em parte graças ao apoio de ricos xeiques do Golfo, como do Qatar.
Está para ser eleita, em quatro semanas, uma assembleia constituinte na Tunísia,[2] e pesquisas mostram que o partido religioso Nahda pode receber 20-30% dos votos. Os islamistas, com isso, teriam maioria sobre qualquer dos partidos seculares.
Potencial estimado
Não chega a surpreender, porque os islamistas são mobilizados para fazer as maiores campanhas eleitorais, mantêm projetos sociais, distribuem bolsas de estudo, são onipresentes e ativos nas mesquitas. Muitas mulheres já reclamam contra ataques à luz do dia. Quando, em Túnis, exibiu-se um filme com críticas à religião, os islamistas invadiram o cinema e atacaram os proprietários da sala.
Observadores no Egito estimam que os islamistas egípcios – a Fraternidade Muçulmana e os salafistas – tenham os mesmos cerca de 20-30% de eleitores em potencial. A Fraternidade Muçulmana, que hoje se chama Partido Justiça e Liberdade, já cogita criar regras rígidas de indumentária para mulheres estrangeiras, proibindo-as de usar biquínis nas praias egípcias. Os fiéis salafistas já criaram vários diferentes partidos.
Quando os dois grupos organizaram manifestação conjunta na Praça Tahrir no Cairo, reuniram dezenas de milhares de seguidores, que exigiam estado islamista. Muitos, hoje, responsabilizam os salafistas por recente ataque a igrejas cristãs coptas no Egito.
A situação na Líbia é muito mais caótica que nos dois países vizinhos, em parte porque os rebeldes ainda enfrentam resistência de defensores de Muammar Gaddafi. Mesmo assim, o Conselho Nacional de Transição, presidido por Mustafa Abdul Jalil, e o chamado Comitê Executivo, liderado por Mahmoud Jibril, apresentou um roteiro para a democratização do país que prevê eleição de um Congresso Nacional de 200 membros, a serem eleitos dentro de oito meses. Com prazo de um ano, esse congresso deverá redigir uma constituição, organizar um referendum para que os cidadãos aprovem a nova constituição e, então, organizar eleições gerais.
Belhaj, comandante militar de Trípoli, sente-se suficientemente poderoso para opor-se a Jibril, que opera como primeiro-ministro de facto. Belhaj trabalha para derrubar Jibril do cargo que hoje ocupa.
Acusações de corrupção
Mas os islamistas líbios mais influentes são, provavelmente, os irmãos Salabi. Ismail Salabi comanda uma da mais violentas brigadas rebeldes em Benghazi. O irmão, Ali, considerado líder religioso no país, viaja sem parar entre Líbia e Qatar, a monarquia árabe do Golfo Persa que supriu com armas os rebeldes e treinou soldados.
Os irmãos Salabi já várias vezes tentaram desacreditar os membros do Conselho Nacional de Transição, com acusações de corrupção. Ali Salabi diz que o conselho está repleto de “secularistas radicais” que tentam deslocar os grupos religiosas antes das eleições, e que Jibril quer inaugurar “nova era de tirania e ditadura”.
Os islamistas líbios planejam constituir um partido religioso. Mas Ali Salabi diz que, se não se saírem bem nas eleições, respeitarão a vontade do povo. Salabi insiste que acredita na democracia.
Mas muitos desconfiam de radicais como os irmãos Salabi, sobretudo depois do assassinato de Abdul Fattah Younis. Ex-ministro do Interior no governo de Gaddafi, Younis juntou-se aos rebeldes alguns dias depois do início da rebelião, e, como comandante-em-chefe, organizou o exército rebelde. Seu cadáver foi encontrado, com dois outros mortos, dia 28/7, perto de Benghazi. Até hoje não se sabe quem matou Younis e os dois companheiros e incineraram os corpos, mas os islamistas são os principais suspeitos.
Fathi Bin Issa, editor-chefe do novo jornal Arus al-Bahr, de Trípoli, nos recebeu em sua sala longa e estreita, iluminada com lâmpadas fluorescentes, frias. Ao lado da mesa, tem a bandeira verde e preta da nova Líbia. Bin Issa foi porta-voz dos rebeldes logo depois que ocuparam a capital, e seus editores escrevem agora regularmente sobre os islamistas. Diz que, só na semana passada, recebeu várias ameaças de morte, gente que diz que vai explodir as salas do jornal.
Bons contatos e uma agenda
“Há gente aqui tentando construir um Hezbollah líbio”, diz Bin Issa. “Há grande risco de que assumam o poder”. Em alguns bairros, diz o jornalista, já circulam fatwas que proíbem as mulheres de saírem desacompanhadas. Diz também que vários salões de beleza foram fechados, e que elementos de uma autoproclamada polícia religiosa já começam a circular pelas ruas. “Esse pessoal tem bons contatos e tem agenda. Por isso são tão perigosos”. Para Bin Issa, tudo agora depende de como a sociedade civil reagirá às mudanças. “Se não conseguirmos conter esse pessoal, as condições aqui ficarão parecidas com o Irã, ou com os tempos dos Talibã”, diz ele.
Apoiador dos rebeldes, Bin Issa acredita que os líbios não tenderão na direção do Islã radical. “Aqui na Líbia, as mulheres trabalham como pilotos de avião e juízas, e foram importantes para promover as mudanças que temos hoje. Nosso Islã é moderado.”
O coronel Ali Ahmed Barathi, 53, é o novo chefe da polícia militar em Tripoli. Está instalado no prédio que abrigava a conhecida 32ª Brigada, grupo de torturadores comandado por Khamis, filho de Gaddafi, nos arredores de Trípoli. O coronel nos recebe em sua sala, sentado a uma mesa enorme. Usa os óculos escuros obrigatórios e tem mãos grossas, de soldado profissional. Mas fala com suavidade.
O coronel Barathi é nascido em Benghazi, onde imediatamente se reuniu aos rebeldes. “Reuni minha unidade e disse que tinha planos de mudar de lado. Cada soldado escolheu ficar, ou nos acompanhar. Toda a unidade desertou.”
Escaramuças com islamistas
As atividades dos islamistas não preocupam Barathi. “Os líbios não querem ser governados por essa gente. Até Belhaj já reconheceu isso e tem sido reservado nos comentários.”
Mas, então, fala sobre escaramuças com islamistas e diz que seus homens desmontaram uma unidade inteira de islamistas, logo no início da rebelião. “Os islamistas foram isolados pelas tribos, que não queriam contato com eles. E lhes demos um ultimato: ou uniam-se a nós, ou depunham armas. Muitos entregaram as armas. Outros desertaram.”
Aref Nayed, coordenar da chamada equipe de estabilização do governo rebelde tem esperanças de que a disputa entre islamistas e seculares leve a um bom resultado – um verdadeiro pluralismo. Rico empresário da indústria informática, acadêmico islâmico e filósofo, Nayed é frequentemente encontrado no saguão do Hotel Corinthia, em Trípoli, à beira mar, como vários outros dos principais políticos do país.
Homem elegante, de barba bem aparada, Nayed estudou no Canadá e nos EUA e trabalhou na Itália. É adepto de costurar acordos entre partidos que se oponham.
“As tribos mantêm coesa a sociedade”
Depois do mal pensado discurso do papa Bento 16, em 2006, em que o papa incitou os muçulmanos religiosos contra a igreja católica, Nayed foi um dos acadêmicos muçulmanos que assinou uma carta ao papa, para reiniciar os contatos. Quando Nayed uniu-se ao Conselho Nacional de Transição, o Vaticano anunciou que o papa muito se alegrara ao ver que “um velho amigo” se tornara figura chave, na Líbia.
Nayed sonha com uma conciliação entre a Líbia secular e a Líbia islamista, arranjo que poderia vir a servir de modelo para o mundo árabe, com os islamistas reconhecidos como força política, talvez até com mulheres no Gabinete. Nada disso, diz Nayed, contrariaria qualquer dos postulados do Islã. O presidente do Conselho Nacional de Transição, Abdul Jalil, que é muçulmano devoto, também apóia a conciliação. Além do mais, diz Nayed, não são os políticos, mas as tribos líbias, “que mantêm coesa a sociedade.”
Por mais que cite entusiasmadamente antigos filósofos, a arma está na cintura, por baixo do paletó caro. O cinto fino não suportaria a pesada pistola 9-mm. “Não planejo usar isso” – Nayed sussurra. Diz que os guarda-costas insistiram que andasse armado, para que não ficasse desprotegido quando andasse em público.
Na Praça dos Mártires – a Praça Verde, antes da chegada dos rebeldes –, em Trípoli, vê-se uma grande fotografia do general Younis, que foi assassinado. O general rebelde sabia manejar muito bem a pistola. De pouco lhe serviu.
NOTAS
[1] Optamos pela palavra “islamista”, numa decisão tradutológica. Acompanhamos, nessa decisão, o partido Ennahda [renascimento], de islâmicos moderados, fundado em 1981 e que se apresentou às eleições na Tunísia, dia 24/10/2011 (segundo notícias recentes, ainda antes do anúncio oficial do resultado, o partido alcançou de 30-50% dos votos). Segundo a BBC, “Membros do Partido Ennahda referem-se a eles mesmos como “islâmicos”, não como “islamistas”, sob o argumento de que a expressão “partido islamista” carrega conotações pejorativas” (em BBC, “Perfil do Partido Ennahda”, em http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-15442859) [NTs].
[1] Optamos pela palavra “islamista”, numa decisão tradutológica. Acompanhamos, nessa decisão, o partido Ennahda [renascimento], de islâmicos moderados, fundado em 1981 e que se apresentou às eleições na Tunísia, dia 24/10/2011 (segundo notícias recentes, ainda antes do anúncio oficial do resultado, o partido alcançou de 30-50% dos votos). Segundo a BBC, “Membros do Partido Ennahda referem-se a eles mesmos como “islâmicos”, não como “islamistas”, sob o argumento de que a expressão “partido islamista” carrega conotações pejorativas” (em BBC, “Perfil do Partido Ennahda”, em http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-15442859) [NTs].
[2] Esse artigo é datado de setembro. Realizaram-se eleições na Tunísia, dia 23/10/2011, ainda sem resultados divulgados [NTs].