Direto da Cisjordânia ocupada: Quando a brutalidade vira regra 19/10/2011, David Shulman, New York Review of Books (Blogs)
http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/2011/oct/19/From-the-west-bank-part-two/ (com imagens)
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Há trágicas correspondências entre o que aqui se vê e o fracasso da cúpula do governo de Israel. Esse fracasso e a patologia moral que ele inspira e motiva cada vez mais extravazam para o subsolo da sociedade israelense. Ou, vai-se ver, lá estiveram sempre, nutridos pela ocupação e suas crueldades. Ehud Barak costumava dizer que, quando surgisse uma liderança palestina realmente moderada, o clamor a favor da paz nasceria de baixo para cima e obrigaria o governo de Israel a segui-lo. Evidentemente, errou. Considere-se por exemplo o que aconteceu no segundo dia do Rosh Hashana, 6ª-feira, 30/9/2011, na colônia exclusiva para judeus conhecida como Anatot[1], ao norte de Jerusalém.
Começou com uma visita de um pequeno grupo de ativistas pacifistas israelenses, cerca de 15, quase todos do Movimento de Solidariedade Sheikh Jarrah[2] e Ta’ayush[3], a Yasin Abu-Saleh al-Rifa’i, palestino que tem uma pequena propriedade que, para sua desgraça, foi incluída na área dessa grande colônia israelense, fundada em 1982, com população, hoje, de cerca de 1.000 colonos judeus. As cortes israelenses várias vezes confirmaram os direitos de propriedade de al-Rifa’i sobre essa terra. E, ao longo dos anos, al-Rifa’i tem tentado não perder seus direitos de propriedade. Para isso, planta oliveiras – mudas e árvores que os colonos judeus sistematicamente arrancam ou queimam – e visita regularmente a área. (Pela lei israelense, proprietário que não cultive a terra por três anos consecutivos, perde os direitos de propriedade e a terra passa à propriedade do Estado.) Al-Rifa’i e sua esposa são repetidamente ameaçdos e algumas vezes foram violentamente atacados por colonos judeus.
Na manhã de 30 de setembro, os ativistas o acompanharam até o terreno montanhoso que, nominal e legalmente, é seu; levavam uma bandeira palestina. Os colonos de Anatot parecem ter sido informados com antecedência sobre a visita. Em minutos, um grande grupo de colonos, estimado entre 60 e 100 pessoas, apareceram e atacaram os manifestantes. Primeiro, atacaram com porretes o próprio Yasin, ferido na cabeça, e sua esposa, que sofreu porretadas nas costas. Em seguida, com porretes e pedras, espancaram os pacifistas que acompanhavam o casal. Há vários feridos; quatro manifestantes continuam hospitalizados (entre os quais Yasin, que está em recuperação), e, como tem acontecido com frequência, alguns manifestantes foram presos (dessa vez, foram três). Os colonos judeus são sempre considerados acima da lei. Havia no local policiais israelenses uniformizados – vários já estavam presentes desde antes de o ataque começar –, mas nada fizeram, nem antes nem durante o ataque. Não há dúvida alguma de que o ataque foi planejado, e não foi pequena escaramuça: foi ataque de grandes proporções. Câmeras usadas para documentar a violência foram destruídas por colonos e por policiais; veículos de ativistas e de outros palestinos estacionados por perto, foram danificados.
Às 18h, uma manifestação de protesto, que reunia cerca de 40 manifestantes pacifistas (muitos que já haviam sido atacados antes, e outros) começou fora de Anatot, e repetiram-se as cenas de violência daquela mannhã. Dessa vez, o grupo de colonos judeus era muito maior. Estavam enfurecidos, preparados para luta de vida ou morte e cantavam “Morte aos Árabes” e “Morte aos esquerdistas”.
Os ataques estão bem documentados. Dentre outras cenas horrendas, viu-se, por YouTube, um colono judeu armado de faca, em movimentos para esfaquear os manifestantes. Foi milagre que não tenha havido mortes. Mais uma vez, os policiais uniformizados mantiveram à distância e sem mover-se, mesmo quando algumas pessoas atacadas, temendo pela vida, correram na direção dos policiais, pedindo socorro. Para muitos, a polícia também demorou para pedir socorro e retardou o quanto pôde a chegada de ambulâncias para transportar os feridos.
Observei dois traços importantes, e terríveis, nesse confronto, que foi qualitativamente diferente de outros episódios de violência que vi com frequência ao sul, na região de Hebron, na Cisjordânia. Lá, se viam colonos judeus messiânicos, fanáticos, racistas e em alguns casos extraordinariamente violentos. E o exército e a polícia em geral os obrigavam a recuar e nem prendiam cidadãos israelenses que participavam das manifestações nem tentavam removê-los de onde estivessem.
Em Anatot, muito visivelmente, houve acordo prévio entre colonos e militares ou policiais, nos atos de violência contra ativistas, vários deles judeus. A regra não é essa. Normalmente, a polícia intervém para separar os grupos em confronto. Não há dúvidas de que o exército e a polícia já estão cooptados para fazer operar um sistema de extrema violência – não só contra cidadãos palestinos, mas também contra cidadãos israelenses. Mas esse é outro assunto.
Em Anatot, as forças de segurança – agindo, provavelmente, por iniciativa própria, ou por solidariedade aos colonos judeus – deliberadamente permitiram que as agressões continuassem, sem qualquer movimento para impedi-las.
Em segundo lugar, e mais grave, do meu ponto de vista, é a evidência de que, em Anatot, os colonos são judeus, mas não se definem por ser religiosos, são, como a maioria dos israelenses, ‘judeus seculares’, israelenses ‘comuns’, seja lá o que signifiquem essas expressões. Muitos deles, inclusive alguns presentes nos ataques, serviram na polícia. Lembro de ter conhecido vários deles nas aulas na Hebrew University. A maioria deles viam-se como moradores de subúrbios na parte norte de Jerusalém. Sem dúvida, como parte da ‘maioria’ israelense, e do ‘consenso’ sobre o futuro político do país. Pois vários desses cidadãos comuns de Israel, como se viu, são capazes de transformar-se, em minutos, no que Elias Canetti chamou de “a malta” [ing. a pack][4] – um grupo enlouquecido, sedente de sangue, que não conhece limites.
Violência de gangues, dessa ordem, não é completamente novidade em Israel – incitamento histérico, pela direita israelense, de violência semelhante levou ao assassinato de meu aluno Emil Grunzweig[5], em manifestação pacifista no início de 1983 –, mas essas vozes estão ganhando força no âmago da sociedade israelense.
Os ataques chamados “de dar o troco” – quando fanáticos de direita cometem atos de violência para vingar ato ou decisão política que considerem mesmo que só vagamente hostis ao projeto das colônias exclusivas para judeus – vêm-se multiplicando, a partir dos territórios ocupados, onde são muito frequentes e, mesmo, são a regra. E agora já chegam a Israel propriamente dita, como se pôde ver nos recentes ataques contra uma mesquita em Tuba Zanghariya[6], na Galileia. Em todos os casos, é indiscutível que colonos como os que atacaram em Anatot e os muitos que simpatizam com eles, já se estão convertendo em ameaça ao próprio estado de Israel e ao que reste de seu caráter democrático.
Uma das singularidades da história humana é que a malta sempre precisa de, pelo menos, algum arremedo de justificativa, seja religiosa, racista ou ideológica, para alimentar-lhe o ódio. Todos esses arremedos de justificativas estão presentes em Israel hoje, inclusive nos altos gabinetes do governo. Esse, me parece, é o significado real do que houve em Anatot. Quisera poder dizer que foi aberração passageira.
Violência de gangues, dessa ordem, não é completamente novidade em Israel – incitamento histérico, pela direita israelense, de violência semelhante levou ao assassinato de meu aluno Emil Grunzweig[5], em manifestação pacifista no início de 1983 –, mas essas vozes estão ganhando força no âmago da sociedade israelense.
Os ataques chamados “de dar o troco” – quando fanáticos de direita cometem atos de violência para vingar ato ou decisão política que considerem mesmo que só vagamente hostis ao projeto das colônias exclusivas para judeus – vêm-se multiplicando, a partir dos territórios ocupados, onde são muito frequentes e, mesmo, são a regra. E agora já chegam a Israel propriamente dita, como se pôde ver nos recentes ataques contra uma mesquita em Tuba Zanghariya[6], na Galileia. Em todos os casos, é indiscutível que colonos como os que atacaram em Anatot e os muitos que simpatizam com eles, já se estão convertendo em ameaça ao próprio estado de Israel e ao que reste de seu caráter democrático.
Uma das singularidades da história humana é que a malta sempre precisa de, pelo menos, algum arremedo de justificativa, seja religiosa, racista ou ideológica, para alimentar-lhe o ódio. Todos esses arremedos de justificativas estão presentes em Israel hoje, inclusive nos altos gabinetes do governo. Esse, me parece, é o significado real do que houve em Anatot. Quisera poder dizer que foi aberração passageira.
[1] “A colônia de Anatot – oficialmente conhecida como Almon – foi fundada em 1982 em terreno rochoso, a nordeste da cidade palestina de Anata. A terra onde Anatot foi construída era, já no período em que a Jordânia reinava ali, registrada como “Terra do Estado” [orig. “State Land”]. Em outras palavras, era terra pública, que o Estado de Israel transferiu para controle e uso exclusivo (como o resto da Cisjordânia) de colonos judeus” (“The Settlement of Anatot. Background to Last Week’s Mob Attack”, Dror Etkes, Israel, 10/5/2011, em http://www.en.justjlm.org/619) [NT].
[4] CANETTI, Elias [1960, Masse und Macht] Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [NTs].
[5] Ver New York Times, 12/2/1983, em http://www.nytimes.com/1983/02/12/world/thousands-attend-israeli-s-funeral.html
[6] 3/10/2011, Haaretz, Telavive, em http://www.haaretz.com/news/national/mosque-set-alight-in-suspected-price-tag-attack-in-upper-galilee-1.387827