Santiago O’Donnell - Página/12
O complô denunciado pelo governo dos Estados Unidos é muito esquisito e bizarro: envolve nada menos que o governo iraniano, numa tentativa de assassinato do embaixador saudita em Washington, através de um vendedor de carros usados do Texas e um narcotraficante mexicano que é informante do departamento de repressão às drogas [DEA na sigla em inglês].
Nada é como parece. Uma coisa é inventar uma desculpa para justificar uma invasão e disso os EUA está cheio de exemplos longínquos e recentes. Outra coisa é fabricar um incidente, quando o país está se retirando derrotado de duas guerras e está em meio à pior crise econômica desde a Grande Depressão.
Há que se ver o contexto. Tanto no Afeganistão, onde a invasão substituiu o regime do talibã que se confrontava com as tribos xiitas, como no Iraque, onde os Estados Unidos transferiu o poder à maioria xiita depois da derrocada de Saddam Hussein, Washington depende da colaboração iraniana para levar suas missões adiante. No Oriente Médio ocorre algo parecido com a influência iraniana sobre o movimento xiita libanês Hezbollah. Isto não quer dizer que os EUA e o Irã sejam aliados, nem um pouco. Washington alentou os protestos no Irã, após as eleições de 2009 e acusou o regime islâmico de alentar a insurgência de facções xiitas no Iraque. Os Estados Unidos também encabeçam a lista dos países que buscam sancionar e isolar o Irã por conta de seu programa nuclear. Mas fica claro que Ahmadinejad, o carismático presidente iraniano, não é um Kadafi indefeso. Se Washington quis inventar um conflito, o fez num momento inoportuno, dada a correlação de forças.
Também chama a atenção a quantidade de agências envolvidas no suposto complô: o Departamento de Repressão às Drogas, o FBI, a CIA, o Migraciones Mexicanas, a Aduana dos Estados Unidos, dois fiscais federais, um juiz do Estado de Nova York. Normalmente os complôs estadunidenses se armam com a ajuda de alguma agência de inteligência, algum general apresentando a armação no Capitólio, depois algum funcionário a leva às Nações Unidas, como Collin Powell o fez com o conto das armas de destruição em massa para invadir o Iraque. E isso se faz assim porque as agências de segurança têm uma larga história de vigilância entre si, já que competem na distribuição do orçamento no Congresso. O caso mais notório dessa competição é o de Watergate, em que o FBI desbaratou o encobrimento da CIA da rede de espionagem do Richard Nixon, pelo que o então presidente veio a renunciar.
Por lei, o FBI se encarrega dos atentados terroristas no território dos EUA, atuando como agência líder, enquanto a CIA o faz no exterior, mesmo que às vezes o FBI seja convocado para ir ao exterior, a fim de fazer perícias e trabalhos técnicos, e a CIA seja chamada a prestar informações de inteligência sobre suspeitos terroristas estrangeiros que tentem operar em território estadunidense. Mas a competência de cada um dos órgãos é respeitada. Assim como no exterior a CIA “pisa” regularmente nas operações do DEA e do FBI, isto é, exerce a titularidade da atribuição de freá-las, invocando razões de segurança nacional, dentro dos EUA o FBI receia e desconfia de tudo o que a CIA faz.
A DEA, assim como o FBI, são subordinados ao Departamento de Justiça, enquanto a CIA se reporta diretamente a Casa Branca e mantém vínculos históricos com o Departamento de Estado e certa distância do Pentágono e do Departamento de Defesa. A DEA não tem a competência de combater o terrorismo, como o têm a CIA e o FBI, mas em troca a CIA e o FBI tem como missão combater o narcotráfico, mesmo que a CIA só possa fazê-lo no exterior. Isso faz com que as competências se cruzem e superponham. É comum que a DEA detenha um narcotraficante depois de meses de investigação só para se inteirar de que o suspeito é informante do FBI. Ou que o FBI detenha um terrorista e descubra que é um operador infiltrado da CIA.
Outras agências, como o Serviço Secreto (Casa Branca), o Bureau do Álcool, do Tabaco e das Armas de Fogo (Departamento do Tesouro), o Serviço Aduaneiro (Departamento de Estado) e as agências de inteligências do Departamento de Estado e da Defesa mantêm competências distintas de combater o narcotráfico e terrorismo. Estas competências se baseiam em leis e são financiadas com recursos orçamentários aprovados pelo Congresso dos EUA, a partir de informes detalhados dos Comitês de Inteligência das duas câmaras. Esse complexo de competências e interesses tende a desalentar a participação do FBI e a DEA em complôs, assassinatos , sequestros e golpes de estado gestados pela CIA, que por acaso ocorram fora dos Estados Unidos.
Aqui [no México], pelas estranhas características do caso, as três agências tomaram parte na investigação do ministério público. A denúncia supostamente apareceu em meio a uma investigação de narcotráfico que a DEA comandava. Como envolvia um ato terrorista nos EUA, o FBI assumiu a dianteira, e ao se agregar extraoficialmente outros supostos complôs no exterior, a CIA foi convocada. Como o vendedor de carros usados foi detido em Nova York, no seu regresso de uma viagem frustrada ao México, para contratar traficantes, interveio a justiça mexicana. Nos Estados Unidos o FBI mantém um prestígio que a CIA há tempos perdeu e existe uma larga tradição de independência judicial do órgão, apesar de o seu diretor geral ser parte do gabinete presidencial. Por isso chama a atenção que o FBI e o juiz de Nova York avalizem uma denúncia que sob todos os aspectos parece duvidosa.
Que o Irã contrate um vendedor de carros usados, dá para passar. O homem tinha perdido o seu trabalho em meio à recessão. No ano passado viajou ao Irã, a mãe pátria, e ali pode ter entrado em contato com alguém. Mas que um estado teocrático contrate sicários de um cartel do narcotráfico, que um corpo de elite como os Kuds planeje uma operação tão torpe escapa à lógica. O ceticismo com que a denúncia foi recebida em todo o mundo ecoou na imprensa estadunidense. “Isso parece uma salada de cozinha fusion das ansiedades de segurança estadunidense”, descreveu um analista citado pelo Huffington Post. Para agregar mais confusão, enquanto os porta-vozes do Departamento de Defesa e do Pentágono saíam a declarar que se tratava de um tema judicial que devia ser resolvido pela via legal e diplomática, a chanceler Hillary Clinton fazia apelos à comunidade internacional para isolar o Irã.
Vinte e quatro horas depois do anúncio, o próprio Obama teve de vir a público para defender a acusação. “Não teríamos feito esta denúncia se não tivéssemos elementos para respaldá-la”, disse o presidente estadunidense. Sua lógica é bastante razoável. Ou seja, está bem, soa incrível que o governo iraniano autorize tamanha palhaçada. Mas também é ridículo pensar que eu vá inventá-la, parece dizer Obama. Eu não sou Bush, o FBI não é a CIA, parece dizer. Se nós vamos inventar algo, nós que inventamos Hollywood, então vamos inventar bem.
Em todo caso, em se comprovando que foi tudo armado, o dano para a credibilidade estadunidense, dadas as instituições e os personagens envolvidos, será muito maior que a mentira das armas de destruição em massa de Saddam Hussein.
Num ponto o tema é sensível. A denúncia judicial sustenta que escutas telefônicas e uma transferência bancária comprovam o envolvimento de altos oficiais Kuds no complô. O Irã nega que essas provas existam. Diz que é impossível transferir 100 mil dólares do Irã para os EUA e que dizer que “o Chevrolet está pronto” não quer dizer “assassinem o embaixador”. Quanto há de verdade, quanto de mentira e quanto de exagero? Em breve se saberá, ou em algum dia, ou nunca.
Seja como for, o que se evidencia é a ansiedade do governo dos EUA frente à situação de vulnerabilidade e a uma sensação de insegurança, que são duas coisas distintas. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos acostumou-se a uma hegemonia econômica e militar que já não é a mesma. A perda do poder relativo coincide com uma crise moral derivada deum sistema esgotado, com o fim do sonho americano.
Se a denúncia do complô é um pretexto vil para se tentar isolar o Irã, o ataque a um tigre ferido que se recusa a bater em retirada, um ajoelhar-se de Obama para aplacar os neocons e o lobby militar, então os Estados Unidos está muito pior do que muitos pensavam.
Mas se o que Obama disse está mais ou menos próximo da verdade, se houve algum tipo de luz verde de algum estamento do governo iraniano, então haverá de celebrar que a coisa toda se encaminhou pela via da justiça e da diplomacia. O que hoje se percebe como uma patética performance exagerada passará a ser um sinal de maturidade de uma potência que aceita os limites e impõe sua nova realidade.
Mmmmmm, esquisito. Muito esquisito e bizarro este complô. Difícil dizer como esta história segue, ou se acaba de começar ou se já terminou.
Tradução: Katarina Peixoto
Nada é como parece. Uma coisa é inventar uma desculpa para justificar uma invasão e disso os EUA está cheio de exemplos longínquos e recentes. Outra coisa é fabricar um incidente, quando o país está se retirando derrotado de duas guerras e está em meio à pior crise econômica desde a Grande Depressão.
Há que se ver o contexto. Tanto no Afeganistão, onde a invasão substituiu o regime do talibã que se confrontava com as tribos xiitas, como no Iraque, onde os Estados Unidos transferiu o poder à maioria xiita depois da derrocada de Saddam Hussein, Washington depende da colaboração iraniana para levar suas missões adiante. No Oriente Médio ocorre algo parecido com a influência iraniana sobre o movimento xiita libanês Hezbollah. Isto não quer dizer que os EUA e o Irã sejam aliados, nem um pouco. Washington alentou os protestos no Irã, após as eleições de 2009 e acusou o regime islâmico de alentar a insurgência de facções xiitas no Iraque. Os Estados Unidos também encabeçam a lista dos países que buscam sancionar e isolar o Irã por conta de seu programa nuclear. Mas fica claro que Ahmadinejad, o carismático presidente iraniano, não é um Kadafi indefeso. Se Washington quis inventar um conflito, o fez num momento inoportuno, dada a correlação de forças.
Também chama a atenção a quantidade de agências envolvidas no suposto complô: o Departamento de Repressão às Drogas, o FBI, a CIA, o Migraciones Mexicanas, a Aduana dos Estados Unidos, dois fiscais federais, um juiz do Estado de Nova York. Normalmente os complôs estadunidenses se armam com a ajuda de alguma agência de inteligência, algum general apresentando a armação no Capitólio, depois algum funcionário a leva às Nações Unidas, como Collin Powell o fez com o conto das armas de destruição em massa para invadir o Iraque. E isso se faz assim porque as agências de segurança têm uma larga história de vigilância entre si, já que competem na distribuição do orçamento no Congresso. O caso mais notório dessa competição é o de Watergate, em que o FBI desbaratou o encobrimento da CIA da rede de espionagem do Richard Nixon, pelo que o então presidente veio a renunciar.
Por lei, o FBI se encarrega dos atentados terroristas no território dos EUA, atuando como agência líder, enquanto a CIA o faz no exterior, mesmo que às vezes o FBI seja convocado para ir ao exterior, a fim de fazer perícias e trabalhos técnicos, e a CIA seja chamada a prestar informações de inteligência sobre suspeitos terroristas estrangeiros que tentem operar em território estadunidense. Mas a competência de cada um dos órgãos é respeitada. Assim como no exterior a CIA “pisa” regularmente nas operações do DEA e do FBI, isto é, exerce a titularidade da atribuição de freá-las, invocando razões de segurança nacional, dentro dos EUA o FBI receia e desconfia de tudo o que a CIA faz.
A DEA, assim como o FBI, são subordinados ao Departamento de Justiça, enquanto a CIA se reporta diretamente a Casa Branca e mantém vínculos históricos com o Departamento de Estado e certa distância do Pentágono e do Departamento de Defesa. A DEA não tem a competência de combater o terrorismo, como o têm a CIA e o FBI, mas em troca a CIA e o FBI tem como missão combater o narcotráfico, mesmo que a CIA só possa fazê-lo no exterior. Isso faz com que as competências se cruzem e superponham. É comum que a DEA detenha um narcotraficante depois de meses de investigação só para se inteirar de que o suspeito é informante do FBI. Ou que o FBI detenha um terrorista e descubra que é um operador infiltrado da CIA.
Outras agências, como o Serviço Secreto (Casa Branca), o Bureau do Álcool, do Tabaco e das Armas de Fogo (Departamento do Tesouro), o Serviço Aduaneiro (Departamento de Estado) e as agências de inteligências do Departamento de Estado e da Defesa mantêm competências distintas de combater o narcotráfico e terrorismo. Estas competências se baseiam em leis e são financiadas com recursos orçamentários aprovados pelo Congresso dos EUA, a partir de informes detalhados dos Comitês de Inteligência das duas câmaras. Esse complexo de competências e interesses tende a desalentar a participação do FBI e a DEA em complôs, assassinatos , sequestros e golpes de estado gestados pela CIA, que por acaso ocorram fora dos Estados Unidos.
Aqui [no México], pelas estranhas características do caso, as três agências tomaram parte na investigação do ministério público. A denúncia supostamente apareceu em meio a uma investigação de narcotráfico que a DEA comandava. Como envolvia um ato terrorista nos EUA, o FBI assumiu a dianteira, e ao se agregar extraoficialmente outros supostos complôs no exterior, a CIA foi convocada. Como o vendedor de carros usados foi detido em Nova York, no seu regresso de uma viagem frustrada ao México, para contratar traficantes, interveio a justiça mexicana. Nos Estados Unidos o FBI mantém um prestígio que a CIA há tempos perdeu e existe uma larga tradição de independência judicial do órgão, apesar de o seu diretor geral ser parte do gabinete presidencial. Por isso chama a atenção que o FBI e o juiz de Nova York avalizem uma denúncia que sob todos os aspectos parece duvidosa.
Que o Irã contrate um vendedor de carros usados, dá para passar. O homem tinha perdido o seu trabalho em meio à recessão. No ano passado viajou ao Irã, a mãe pátria, e ali pode ter entrado em contato com alguém. Mas que um estado teocrático contrate sicários de um cartel do narcotráfico, que um corpo de elite como os Kuds planeje uma operação tão torpe escapa à lógica. O ceticismo com que a denúncia foi recebida em todo o mundo ecoou na imprensa estadunidense. “Isso parece uma salada de cozinha fusion das ansiedades de segurança estadunidense”, descreveu um analista citado pelo Huffington Post. Para agregar mais confusão, enquanto os porta-vozes do Departamento de Defesa e do Pentágono saíam a declarar que se tratava de um tema judicial que devia ser resolvido pela via legal e diplomática, a chanceler Hillary Clinton fazia apelos à comunidade internacional para isolar o Irã.
Vinte e quatro horas depois do anúncio, o próprio Obama teve de vir a público para defender a acusação. “Não teríamos feito esta denúncia se não tivéssemos elementos para respaldá-la”, disse o presidente estadunidense. Sua lógica é bastante razoável. Ou seja, está bem, soa incrível que o governo iraniano autorize tamanha palhaçada. Mas também é ridículo pensar que eu vá inventá-la, parece dizer Obama. Eu não sou Bush, o FBI não é a CIA, parece dizer. Se nós vamos inventar algo, nós que inventamos Hollywood, então vamos inventar bem.
Em todo caso, em se comprovando que foi tudo armado, o dano para a credibilidade estadunidense, dadas as instituições e os personagens envolvidos, será muito maior que a mentira das armas de destruição em massa de Saddam Hussein.
Num ponto o tema é sensível. A denúncia judicial sustenta que escutas telefônicas e uma transferência bancária comprovam o envolvimento de altos oficiais Kuds no complô. O Irã nega que essas provas existam. Diz que é impossível transferir 100 mil dólares do Irã para os EUA e que dizer que “o Chevrolet está pronto” não quer dizer “assassinem o embaixador”. Quanto há de verdade, quanto de mentira e quanto de exagero? Em breve se saberá, ou em algum dia, ou nunca.
Seja como for, o que se evidencia é a ansiedade do governo dos EUA frente à situação de vulnerabilidade e a uma sensação de insegurança, que são duas coisas distintas. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos acostumou-se a uma hegemonia econômica e militar que já não é a mesma. A perda do poder relativo coincide com uma crise moral derivada deum sistema esgotado, com o fim do sonho americano.
Se a denúncia do complô é um pretexto vil para se tentar isolar o Irã, o ataque a um tigre ferido que se recusa a bater em retirada, um ajoelhar-se de Obama para aplacar os neocons e o lobby militar, então os Estados Unidos está muito pior do que muitos pensavam.
Mas se o que Obama disse está mais ou menos próximo da verdade, se houve algum tipo de luz verde de algum estamento do governo iraniano, então haverá de celebrar que a coisa toda se encaminhou pela via da justiça e da diplomacia. O que hoje se percebe como uma patética performance exagerada passará a ser um sinal de maturidade de uma potência que aceita os limites e impõe sua nova realidade.
Mmmmmm, esquisito. Muito esquisito e bizarro este complô. Difícil dizer como esta história segue, ou se acaba de começar ou se já terminou.
Tradução: Katarina Peixoto