terça-feira, novembro 08, 2005


Não deixem de ler,
qualquer semelhança com o Brasil hoje,
não é mera coincidência...




Carta aberta
aos juízes de Negri
por GILLES DELEUZE [1925-1995]



publicado no jornal La Repubblica
em maio de 1979
Tradução Francisco de Guimaraens



A partir dos procedimentos judiciais, está velozmente avançando a impressão de que não há nada, literalmente nada, nos dossiês da acusação, que conduza o julgamento à prisão e a posterior detenção do Professor Negri, seus colegas e camaradas. A voz no telefone durante a ligação à família Moro está, de repente, sendo desconsiderada; os lugares onde Negri supostamente esteve vão, de alguma forma, desaparecendo do caso; e seus escritos, ao contrário de serem 'estratégicas resoluções das Brigadas Vermelhas', se apresentam como textos que expressam clara oposição às posições das Brigadas Vermelhas.


Os promotores, ao longo do processo, têm continuamente deixado de apresentar suas evidências legais - nos foi dito para 'ter paciência'. E, enquanto isso, os procedimentos do julgamento tomaram a forma de um ideológico debate sobre os escritos de Negri, em um espetáculo digno da Inquisição.


De fato, os magistrados têm o tempo a seu lado: a Lei Reale (1975) os autoriza a manter presos, por até quatro anos sem serem julgados, aqueles encaminhados à prisão preventiva. Dois princípios estão em jogo nesse caso, dois princípios que vitalmente dizem respeito a todos os democratas responsáveis.


Primeiramente, a justiça deve satisfazer o princípio segundo o qual o conteúdo da acusação deve conter uma certa identidade. Não apenas deve o acusado ser identificado precisamente, mas também a substância da acusação deve conter uma identidade precisa e não pode ser contraditória. Do contrário, se elementos da acusação emergem posteriormente, então tal fato envolve um novo caso.


Em suma, a acusação feita deve conter em sua substância um mínimo de consistência identificável. A menos que tal precisa identificação exista nas acusações feitas contra o indiciado, a defesa não pode operar caso as acusações permaneçam genéricas e não-específicas.


Este princípio foi violado, por exemplo, na ordem de prisão emitida por Roma. Tal ordem inicia-se pela recapitulação do seqüestro de Moro (como se Negri fosse acusado de estar presente). Então, segue invocando seus escritos e suas idéias (de modo que, mesmo que não estivesse diretamente envolvido, foi 'responsável' pelo ocorrido).


Aqui temos uma fórmula de 'cercar por todos os lados', não uma acusação legalmente consistente; pula-se da ação à instigação e à mera cogitação, de idéias para qualquer evento que se amolde ao prosseguimento do caso. A tal acusação, tão diversificada e indeterminada, falta a mais elementar identidade jurídica: 'serás considerado culpado de qualquer modo...'.



Segundo, os interrogatórios do processo devem conformar-se a um certo princípio de disjunção e exclusão. Ou A é o caso, ou B; se for B, então não é A etc. No caso de Negri, parece que os magistrados têm intenção de 'manter suas opiniões em aberto', de maneira que, os fatos que se opõem, não mais são alternativas que excluem uma à outra. Se Negri não estava em Roma, a ligação telefônica para a família Moro ainda é tida como uma pista incriminadora, ao se deslocar quem fez o telefonema para Paris (ou vice-versa).


Se Negri não estava diretamente envolvido no seqüestro de Moro, então de algum modo ele o inspirou ou 'pensou' a respeito, o que é quase o mesmo do que executar o seqüestro. Se Negri em seus textos e pronunciamentos se opôs claramente às Brigadas Vermelhas, tratava-se apenas de um inteligente 'despiste', provando ainda mais conclusivamente que ele estava em secreto acordo com as mesmas e era seu líder oculto. E assim por diante.


Elementos contraditórios nas acusações não cancelaram um ao outro. Ao contrário, nesse caso eles se tornaram cumulativos. Como Franco Piperno, um dos acusados 'foragidos', expôs, tais fatos implicam em uma extremamente curiosa forma de avaliar o significado de textos políticos e teóricos.


Aqueles que formularam as acusações contra Negri estão tão acostumados em acreditar que em um discurso político é possível dizer qualquer coisa, de modo que a explícita 'política' é sempre um encobrimento, que eles simplesmente não podem conceber a situação em que um intelectual revolucionário não pode escrever outra coisa, senão o que ele realmente pensa.


Andreotti, Berlinguer e seus pares podem sempre esconder o que eles realmente pensam, porque em tal discurso político tudo é oportunismo calculado, o que pode certamente ser dito (citando um notável exemplo de outro intelectual revolucionário) no caso de Gramsci.


Em suma, longe de proceder através da exclusão de alternativas, os interrogatórios do julgamento de Negri e dos outros acusados em seu caso se basearam em um princípio de inclusão, o acréscimo de elementos contraditórios.


Nós devemos agora perguntar como e por que tais negações de justiça se tornaram possíveis. É aqui, acredito, que o papel da impressa e da mídia exerceu, com poucas exceções, e continua exercendo, uma crucial influência no caso de Negri. Não pela primeira vez, evidentemente, mas talvez pela primeira vez através de tão sistemática e organizada forma, a imprensa preparou e pré-esvaziou o terreno para um sensacional 'pré-julgamento' (e a imprensa francesa não menos desejou se juntar a tal campanha de difamação e de calúnia).


O sistema judicial nunca seria capaz de abandonar o princípio da específica identidade nas acusações; os interrogatórios não teriam jamais sido conduzidos nos termos da inclusão, se a imprensa e a mídia não tivessem preparado o terreno, oferecido meios através dos quais tais regras pudessem ser flagrantemente abandonadas e esquecidas sem reação pública.


De fato, a mídia, por sua vez, operou de acordo com outro princípio específico. Fosse no caso dos jornais diários ou semanais ou do rádio e da TV, a mídia é governada pelo princípio de acumulação.


Então, pode haver 'notícias' que relatam cada dia e, como repúdios ou contradições do dia anterior não têm qualquer influência nas 'notícias' do dia seguinte, a imprensa e a mídia podem realizar uma acumulação de tudo que é dito de um dia para o outro, sem se temer qualquer contradição. O uso do 'condicional' permite que todas as possibilidades se multipliquem e coexistam.


Assim, é 'possível' tornar público que Negri esteve em Roma, Paris ou Milão no mesmo dia! Estas três 'possibilidades' estão simplesmente acumuladas. Ele é apresentado, de um lado, como um 'membro ativo' das Brigadas Vermelhas, ou seu 'líder oculto', e por outro como representante de uma tendência e de táticas totalmente opostas. Sem problema...


As diferentes versões estão de novo acumuladas. Se nós acreditarmos no jornal Francês (Le Nouvel Observateur), percebemos o seguinte resultado: mesmo que Negri não estivesse nas Brigadas Vermelhas, ele é um Autonomista, e 'todos nós sabemos quem são os Autonomistas de esquerda na Itália'.


Quaisquer que sejam os fatos, o tratamento de Negri se tornou justificado. A imprensa se lançou nessa tarefa em direção a uma fantástica acumulação de 'fazer-acreditar', que não seguiu depois o judiciário, mas por seu 'pré-julgamento' preparou ativamente o modo pelo qual o judiciário e a polícia esconderam sua total falta de evidência ou substância nas acusações.


O novo espaço para repressão judicial e policial em Europa hoje pode apenas funcionar através de um crucial papel preparatório da imprensa e da mídia. Todos os órgãos da mídia, da esquerda à extrema direita aceitaram essa grosseira violação da justiça e do devido processo legal. Parece que chegou à Europa o tempo em que a velha reivindicação de que a imprensa deve 'manter uma certa distância', deve representar uma certa resistência aos 'slogans oficiais' não mais se aplica.


Dadas as alegadas ramificações de tal conspiração, como informado na imprensa ('A conexão francesa', o 'QG das Brigadas Vermelhas' etc.) não se pode deixar de pensar nessa ocasião que minha carta é uma 'intromissão em assuntos italianos a respeito dos quais somos ignorantes'.


Negri é um cientista político, um intelectual de ponta, tanto na França quanto na Itália. Italianos e franceses têm hoje os mesmos problemas em encarar a escalada da violência, mas também em confrontar uma escalada de repressão, que não sente sequer a necessidade de ser juridicamente legitimada - desde que sua legitimação seja conferida adiantadamente pela imprensa, pela mídia, os 'órgãos da opinião pública'.


O que estamos testemunhando aqui é um autêntico massacre judicial, através das modalidades da mídia, de homens e mulheres que estiveram presos, indefinidamente, sob o fundamento de 'evidência' legal a respeito da qual o mínimo que se pode dizer é que se trata de não-substanciais e vagas acusações.


Enquanto isso, as tão esperadas 'provas' são constantemente adiadas para amanhã. Nós, de fato, não acreditamos nessas 'provas' que têm sido constantemente prometidas. Ao contrário, gostaríamos de mais informação a respeito das condições daqueles que estão presos e do solitário confinamento ao qual eles têm sido submetidos. Talvez, estamos esperando outra 'catástrofe prisional', que, sem dúvida, daria chance à imprensa para achar a tal elusiva e 'definitiva prova' da culpa de Negri?


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Esse livro é literalmente
prova de inocência
por GILLES DELEUZE [1925-1995]

publicado em dezembro de 1979

resenha do livro de Negri
Marx au-delà de Marx (Harmattan, 1979) edição francesa de Marx oltre Marx, quaderno di lavoro sui Grundrisse editado em 1979 na Itália ( Feltrinelli ) e que resultou de nove seminários sobre os "Grundrisse" de Karl Marx na École Normale Supérieure de Paris na primavera de 1978 a convite de Louis Althusser.


Por que a aparição do livro de Negri é importante, não só em si mesmo, mas também em relação à sua situação na prisão especial? Porque, em vários jornais italianos, um curioso empreendimento de depreciação ocorreu: 'Negri não é um pensador importante, ele é um medíocre e até um patético teórico'. Nós notamos que o fascismo, quando prendia um pensador ou teórico, não sentia a necessidade de diminuí-lo; ao contrário, diz que 'nós não temos nada a ver com pensadores, eles são detestáveis e perigosas pessoas'.


A democracia dos dias de hoje precisa depreciar para persuadir a opinião pública que a pessoa em questão é um falso pensador. Mas o livro de Negri mostra claramente o que todos de nós aqui sabemos: que Negri é um novo Marxista teórico extremamente importante. Em segundo lugar, Negri nunca quis ser apenas um teórico; sua teoria, suas interpretações são inseparáveis de um certo tipo de luta social prática.


Agora, o livro de Negri descreve seu campo de luta como uma função que ele chama de capital social, como uma função de uma nova forma de luta dentro do capitalismo; em particular segue-se disso que as lutas não mais se dão na simples estrutura da empresa ou da associação. Mas, em nenhum momento, o tipo de luta prática defendida por Negri passa pelo caminho do terrorismo, nem pode a mesma ser confundida com os métodos promulgados pelas Brigadas Vermelhas.


Neste sentido, desde que os juízes italianos estão tão interessados no estilo de Negri, em suas intenções e seus pensamentos, esse livro é literalmente prova de inocência. Então, poderíamos dizer que Negri é duplo, que como um escritor ele empreende uma teoria de uma certa prática social, mas que, como um agente secreto, ele tem uma prática terrorista completamente diferente? Essa idéia seria particularmente idiota, pois, a não ser que ele esteja sendo pago pela polícia, um escritor revolucionário não pode praticar um tipo de luta diferente daquelas que ele aprova e promulga em seus escritos.







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