LULA, UM FILHO DO BRASIL
Então o colunista, que faz parte desse grande público, concluiu: se falam tão mal, e com tamanha insistência, a obra tem valor. E por isso fui, e vi.
Já no começo, há um choque no peito, que toma conta da gente, enquanto vê as cenas: terra seca, brasileiros partindo de pau-de-arara rumo a uma tentativa de vida melhor. Como tantos e muitos outros até hoje, poderia ser dito, é certo, mas com a diferença, e aí é que vem o maior choque, o saber que um desses brasileiros partiu da carência de tudo para chegar a ser o presidente mais popular do mundo. É como se fosse uma fábula real. Melhor: é uma fábula verdadeira, é um Andersen de final feliz, o patinho menos que feio se transformar em muito mais que um cisne.
Mas então a gente pigarreia, espanta a emoção, e cai em outras imagens comoventes. Em conceitos moventes, que movem toda a gente. Por exemplo, as ideias dos pobres na crença do valor do trabalho. Em um tempo de tanta sacanagem, como são bem-vindas essas lições/ideias. Há uma cena irresistível, quando o Lula adolescente suja com óleo o macacão limpo, para se exibir à vizinhança e à mãe. Eu sou um trabalhador, mãe. Eu agora sou gente. Ela sorri. E vem crescendo com ele, a partir daí, até ser ultrapassada pela vida do rebento, a pessoa dessa mãe. Ela, ali como aqui, ali como em todo lugar, é uma fundadora de personalidade.
No entanto, não existe apelação, apelo sentimental, sentimentalismo em “Lula, o filho do Brasil”. Os olhos mais críticos já fizeram a justa observação de que o filme é desprovido de ritmo ou tensão dramática. Ou seja, nele não há um conflito básico, ou conflitos cruciais desenvolvidos à emoção veloz ou com paciência multiplicados. Nem mesmo, o que seria propaganda pura, mas dentro da “gloriosa” tradição de Hollywood, o herói sozinho contra o resto do mundo, o self-made-man típico, que se faz só. É inesquecível a cena do discurso no estádio, quando um alto-falante coletivo é construído pela multidão de sindicalistas, que gritam em sucessivas ondas um discurso.
No filme não há tampouco o cara de moral incorruptível. Pelo contrário, em mais de uma oportunidade, vemos a sobrevivência esperta a favor do humano. Assim, um filho mente para o pai analfabeto, e escreve o contrário da vontade do pai, quando escreve à mãe que venha para São Paulo. (“Venha para não morrer”, sabemos.) Ou quando Lula, um secretário do sindicato, usa de toda a argúcia para ganhar o coração da mulher por quem está apaixonado.
É verdade que em mais de uma ocasião a gente vê o personagem Lula transbordar das imagens, porque sabemos algo de sua história e importância. Então sentimos, percebemos o personagem ir além das margens extremas da tela. Isso não se dá só pela duração do filme, pela quantidade de anos de vida selecionados – isso se faz pelos momentos essenciais que ficam ocultos. As coisas mais cruas e duras são omitidas. Por exemplo, quando o Lula menino pegou da boca de um colega o chiclete mascado. Por exemplo, quando bebeu da água que até os animais rejeitam. Ou a intensidade da dor de ver a mulher falecer de parto, como tantos pobres do Brasil já viram, e jamais tiveram a sua dor expressa.
É horrível o esquemático – o corte de qualquer filme na construção de um personagem gera insatisfação. Os recursos com que a literatura conta não sobrevivem na cirurgia da montagem. Pior, a escolha nem sempre é a mais sensível, onde cortar, onde avultar, onde crescer. Lula, o personagem, sabemos todos, é maior que o PT, é bem maior que o sindicalismo, porque ele vem com a força da história, como uma encarnação da força que o povo tem. Dos muitos severinos, joões, marias e lindus.
No fim do filme, na imagem imóvel da posse presidencial, ouvimos Luiz Gonzaga. Então nos levantamos, muito contra a vontade, com uma certeza: toda a luta, a luta toda valeu a pena. “Só trazia a coragem e a cara, viajando num pau-de-arara”, ouvimos. E concluímos, em silêncio: eu penei, mas aqui cheguei.
Leia outras postagens do autor em: Sapoti da Japaranduba
...