A ânsia dos EUA, de serem amados e temidos, rouba há muito tempo a objetividade da CIA
6/1/2010, Robert Fisk, The Independent, UK
No imenso prédio da embaixada dos EUA nas colinas nos arredores de Amã, capital da Jordânia, há uma sala especial, onde trabalha um oficial das Forças Especiais dos EUA, em escritório também ‘diferente’. Ele compra informação de oficiais da inteligência e do exército jordaniano – paga em dinheiro, é claro –, mas também ajuda a treinar policiais e soldados afegãos e iraquianos. Não lhe interessam só informações sobre a al-Qa'ida, mas também sobre os próprios jordanianos, sobre a lealdade do exército ao rei Abdullah, sobre os guerrilheiros antiamericanos que vivem na Jordânia, sobretudo os iraquianos, e também sobre os contatos entre a al-Qa'ida e o Afeganistão.
É fácil subornar oficiais do exército no Oriente Médio. Os norte-americanos gastaram boa parte de 2001 e 2002 subornando senhores-da-guerra afegãos. Pagaram a soldados jordanianos para unir-se ao exército norte-americano de ocupação no Iraque – motivo pelo qual a embaixada jordaniana em Bagdá foi implacavelmente bombardeada pelos inimigos de Washington.
O que o agente duplo da CIA Humam Khalil Abu-Mulal al-Balawi fez – era médico, como tantos seguidores da al-Qa'ida – foi serviço de rotina. Trabalhava para os dois lados, porque os inimigos dos EUA estão há muito tempo infiltrados entre os ‘aliados’ de Washington nas forças de inteligência árabes. Abu Musab al-Zarqawi, que efetivamente liderou o ramo da al-Qa'ida da guerrilha iraquiana, ele próprio cidadão jordaniano, manteve contatos com o Departamento Geral de Inteligência de Amã, cujo oficial responsável n. 1, Sharif Ali bin Zeid, foi assassinado com sete norte-americanos, essa semana, no maior desastre da CIA desde que a embaixada dos EUA em Beirute foi bombardeada em 1983.
Mas nada há de romântico em torno dos espiões, no Oriente Médio. Muitos dos homens da CIA mortos no Afeganistão eram, de fato, mercenários contratados; e os espiões “mukhabbarat” jordanianos, para os quais ambos, bin Zeid e al-Balawi trabalhavam, são torturadores muito experientes, para quem a tortura é rotina; de fato, sempre torturaram gente que, também rotineiramente, foi levada para Amã pela CIA do governo Bush.
O mistério, porém, não está na existência de agentes duplos dentro do aparelho de segurança dos EUA no Oriente Médio. O mistério está em que utilidade teria, no Afeganistão, uma ‘mula’ jordaniana. Poucos árabes falam pashtun ou dari ou urdu, embora muitos afegãos falem árabe. A coisa toda sugere, isso sim, que houve laços muito mais íntimos entre os guerrilheiros iraquianos anti-americanos baseados em Amã e no Afeganistão.
O que se vê é que – apesar do enorme Irã que separa os dois países – agentes iraquianos e afegãos da al-Qa’ida tem trabalhado juntos. Em outras palavras, enquanto a CIA simploriamente assume que poderia ‘ser amiga’ e confiar na inteligência local no mundo muçulmano, os grupos guerrilheiros bem podem ter resolvido trabalhar pelo mesmo plano. A presença de um espião jordaniano antiamericano no Afeganistão – capaz de ofercer-se ao martírio tão longe de casa – prova o quanto são profundos os laços entre os inimigos dos EUA em Amã e no Afeganistão oriental. Não exageraria quem sugerisse que os jordanianos antiamericanos têm conexões até em Islamabad.
Quem veja aí excesso de fantasia, lembre que assim como a CIA apoiou os combatentes árabes contra o exército soviético no Afeganistão, assim também os mesmos combatentes árabes eram pagos com dinheiro saudita. No início dos anos 80s, o próprio comandante da inteligência saudita mantinha reuniões regulares com Osama bin Laden na embaixada saudita em Islamabad e com o serviço secreto paquistanês – que dava apoio logístico aos “mujahedin” e, depois, aos Talibã – como até hoje. Se os norte-americanos creem que os sauditas não mandam dinheiro para os inimigos dos EUA no Afeganistão – ou para outros inimigos dos EUA também fundamentalistas no Iraque e na Jordânia –, então a CIA ainda não faz nem ideia do que está acontecendo no Oriente Médio.
Infelizmente, a CIA, provavelmente, ainda não faz nem ideia etc. O desejo dos norte-americanos, de serem ao mesmo tempo amados e temidos, há muito tempo tem arrastado a inteligência norte-americana a confiar nos ‘amigos’ ostensivos e, simultanemante, a seviciar, violentar, bestializar os pressupostos inimigos. Foi precisamente o que aconteceu no Líbano antes de um suicida-bomba muçulmano xiita fazer explodir a embaixada dos EUA em Beirute em 1983 – num momento em que quase todos os agentes da CIA em operação no Oriente Médio lá estavam reunidos. A maioria deles morreu ali. A entrada principal dos escritórios da CIA na parte fronteira da embaixada estavam bem protegidos. Mas a CIA recrutara, como agentes locais no Líbano, homens e mulheres que trabalhavam para os dois lados: para Israel e para o que, então, era a versão inicial do Hizbollah. O pessoal de apoio local da inteligência dos EUA na embaixada em Beirute encontrava-se com mulheres libanesas cuja existência a inteligência dos EUA ignorava.
Mas o eixo jordanianos-norte-americanos era diferente. Aqui, a CIA operava em ambiente quase totalmente muçulmano sunita, entre jordanianos que, ao mesmo tempo em que embolsavam o dinheiro da CIA, tinha centenas de motivos para opor-se às políticas de Washington e do rei da Jordânia. Minoria significativa dos “muhabarrat” jordanianos são de origem palestina; para esses, o apoio ilimitado, sem regras ou critério, que os EUA dão a Israel, destruiu a ‘nação’ palestina e está destruindo o povo palestino. O desejo da CIA de confiar em “operadores locais” não é muito diferente da fé que os britânicos depositavam em seus sepoys indianos, na véspera do Motim: os regimentos locais “deles” jamais se oporiam ao império inglês, os oficiais “deles” continuariam leais. Exatament e o contrário do que aconteceu. [...]
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