sábado, março 17, 2012

Da violência, à resistência

31/5/2003, Paolo Virno*, Clarín, Buenos Aires (trad. ao espanhol de Cristina Sardoy)
http://old.clarin.com/suplementos/cultura/2003/05/31/u-00602.htm
“A cooperação social não remunerada, mesmo o pouco que se encontra dela hoje em dia – e, mesmo que ainda seja vista como fetiche –, tem um potente traço de trabalho humano; recupera para a produção o corpo e a vida de boa qualidade; o sentimento vivido dos relacionamentos; o prazer de conhecer e compreender; e o desejo de organizar, com a máxima inteligência tática disponível, a indignação e a ira de cada um. Dentro dessa zona diacrônica do dia de trabalho também se situa o problema do hedonismo, da felicidade realizada, do poder restaurado da categoria do indivíduo, bem além de todas as paródias ideológicas do self.”
(Paolo Virno, “Sonhadores de uma vida bem-sucedida”, Autonomia, 1980)

“Não se pode questionar o trabalho assalariado sem introduzir uma poderosa ideia de liberdade de expressão; não se pode falar a sério de liberdade de expressão sem, simultaneamente, trabalhar para suprimir o trabalho assalariado.” (Paolo Virno, Lessico Postfordista)

Tudo aconselha a não se deixar arrastar por nenhuma forma de fetichismo no que tenha a ver com violência e não violência. Claro: é idiota identificar a radicalidade de uma luta e sua taxa de ilegalidade. Mas também é idiota elevar a indulgência a critério inoxidável para a ação. Por outro lado, não há por que se preocupar demais: no que se refere ao conflito, a passagem da latência à visibilidade sempre se encarrega de alterar os “princípios eternos” adotados de tempos em tempos pelos políticos profissionais assalariados.

Quanto à velha, mas nunca esgotada, questão das formas de luta, a discussão anda em círculos, dando lugar a sofismas simplórios e a citações sempre repetidas. Se se analisa bem, a questão sofre os efeitos em cadeia de uma mudança drástica de paradigma teórico. Uma tal mudança que é capaz de separar o que parecia inseparável e juntar o que parecia vivem em antípodas. Em resumo: a luta contra o trabalho assalariado, diferente da luta contra a tirania, já nada tem a ver com a enfática perspectiva da “tomada do poder”.

Justamente por causa das características já muito avançadas dessa luta, aparece como transformação inteiramente “social”, que enfrenta bem de perto o “poder”, mas sem sonhar com alguma organização alternativa do Estado. Pelo contrário, visa a fazer contrair-se e a extinguir toda forma de mando sobre a atividade de homens e mulheres e, por tanto, nu e cru, visa a extinguir o Estado. É como se se dissesse: antes, a “revolução política” foi considerada premissa inevitável para modificar e transformar as relações sociais; agora esse botim que se colhia depois, passa a ser o primeiro passo, preliminar.

A luta só pode levar a termo sua índole destrutiva na medida em que já surge outro modo de viver, de comunicar, inclusive de produzir. Só quando já há algo a perder, além das próprias cadeias. O tema da violência, idolatrado e exorcizado, sempre esteve, contudo, associado aos dois gumes da “tomada do poder”. O que acontece quando se considera a forma existente de Estado como a última forma possível, digna de corromper-se e cair em ruínas, mas não – não, certamente não – de ser substituída por algum Hiperestado “de todo o povo”? A não violência passaria por acaso a ser o novo culto a ser ritualmente pregado e praticado? Não entendo por que devesse ser assim.

Em todo caso, há aqui um paradoxo imprevisto: o recurso à força deve ser concebido em relação a uma ordem positiva que se deve defender e salvaguardar. O êxodo do trabalho assalariado não é gesto algébrico, não é o que resta no côncavo quando de lá se retira o convexo. Fugindo do trabalho assalariado, nos obrigamos a construir relações sociais diferentes e novas formas de vida: é preciso amar muito ativamente o presente e é preciso inventar muito. Portanto, o conflito se travará para preservar esse “novo” que, no processo, foi sendo instituído. Violência, se há, não acontece contra as “manhãs que cantam”, mas para prolongar algo que já existe mesmo que exista informalmente.

Ante a hipocrisia ou a credulidade distraída que marcam hoje a discussão sobre o que seria legal ou ilegal, é preciso voltar a uma categoria pré-moderna: o “ius resistentiae” [direito de resistência, direito de resistir].

Com essa expressão, não se entendia no Direito Medieval, é claro, a óbvia faculdade de defender-se se agredido (a chamada ‘legítima defesa’). Mas tampouco se entendia uma sublevação geral contra o poder constituído. É claramente diferente de seditio e rebellio, casos em que o levante dá-se contra o conjunto das instituições vigentes, com o objetivo de edificar outras.

O “direito de resistir” tem significado bastante específico e peculiar. É (ou pode ser) exercido quando uma corporação de artesãos, ou toda uma comunidade ou, mesmo, quando um só indivíduo entende, sente, vê que algumas de suas prerrogativas positivas, válidas de fato ou por tradição, foram modificadas.

O principal ponto do ius resistentiae (direito de resistir, direito de resistência), o que constitui seu principal interesse em termos da questão da legalidade ou ilegalidade, é a defesa de uma transformação efetiva, tangível, “já” ocorrida, das formas de vida. Os passos grandes ou pequenos, os deslizamentos ou as avalanches, da luta contra o trabalho assalariado admitem ilimitado direito de resistir – mas excluem qualquer teoria da guerra civil.



* Sobre Paolo Virno (Nápoles, 1952) ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Paolo_Virno. Para ver relação de suas obras traduzidas ao inglês e francês, ver http://www.generation-online.org/p/pvirno.htm [NTs]