sexta-feira, janeiro 18, 2008

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Os torneiros mecânicos brasileiros têm se revelado à altura das tarefas encomendadas, os letrados pedantes, não. Nestes incluídos os velhos e novos acadêmicos repetitivos e bolorentos.


O Brasil e o grande salto à sua frente
Wanderley Guilherme dos Santos

18/01/2008

Os economistas prevêem um futuro de "grande moderação" no progresso material do país. É uma aposta, mas há outras. Ao que tudo indica, o importante salto à frente do país continuará atabalhoado como até agora. Iniciado com a desastrada e comprometedora gestão de Fernando Collor de Melo, seguida pelo tecnicismo insensível dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, teve modificadas as prioridades de classe com a eleição e reeleição do presidente Luiz Inácio. A gigantesca incorporação dos segmentos C e D da população ao mercado de consumo, por via do controle da inflação e das políticas sociais agressivas do atual governo, vai em breve revelar seu papel econômico de amortecedor dos estímulos externos negativos, rompendo com a rotina de os países subdesenvolvidos crescerem quando crescem os desenvolvidos e entrarem em crise juntamente com estes. O aspecto ideológico do fenômeno da globalização tende a ficar mais exposto. Em tudo, a mão invisível da democracia.
O Brasil é o único país continental que emerge para o desenvolvimento econômico em condições de normalidade democrática. Não conta com o unipartidarismo e o recurso de ilimitada coação como a China, com a corrupção econômica e política como iniciativa de Estado como a Rússia, nem com o disciplinado conformismo de uma sociedade de extremada estratificação social como a Índia. Ao contrário. O cenário político é ultrapovoado por partidos e grupos de interesse de toda espécie e a simples idéia de um corte nas verbas das políticas distributivas dos parlamentares é denunciada como ameaça de tirania. Desde o impedimento do ex-presidente Fernando Collor e o escândalo dos Anões do Orçamento, no início dos anos 1990, têm endurecido os controles sobre o uso dos recursos públicos, em todas as instâncias de governo, com número recorde de cassações de mandato e processos de vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, e até governadores, senadores e ministros. Há em andamento um caudaloso processo de "mãos limpas", sem exibicionismos publicitários ou diferenciação institucional, ofuscado, entretanto, pela visibilidade extravagante dos casos em que os supostos culpados conseguem escapar por entre as persianas dos calhamaços jurídicos. São esses casos, além dos conhecidos preconceitos, que sustentam os relatórios de agências internacionais, nem todas de boa-fé, em jogo de cartas marcadas. Muitas águas ainda rolarão, por exemplo, antes que a Freedom House seja obrigada a reconhecer que a democracia chilena caminha a passos de cágado em relação à brasileira. Pior para os que confiam em tais relatórios, bem como para os incapazes de perceber a extraordinária fluidez do sistema social brasileiro, em que a inexistência de barreiras institucionais expõe qualquer discriminação, assim que descoberta, à execração pública. Descontadas a taxa de hipocrisia e as violações ocasionais, o conjunto de valores aceitos pela sociedade brasileira repudia a cristalização de "intocáveis", seja pela cor, pelo gênero, pela preferência sexual ou pela origem econômica. O visível desconforto com que os ricos convivem com pobres em lugares públicos só existe justamente porque não há como evitar a convivência. Os cegos para a promiscuidade social brasileira são vítimas de um preconceito de segunda ordem: o pré-conceito contra os preconceitos. Extensa participação sob múltiplas formas, permanente vigilância quanto a procedimentos governamentais e generosa licença social são acidentes da conjuntura nacional ausentes dos países que são cartas na manga dos conservadores (quem diria?): China, Rússia e Índia. Nem tudo são flores, porém.
O produto democrático brasileiro não é de boa qualidade. Os Legislativos pós-Constituinte têm estado modestos em grandes figuras parlamentares, úteis para disfarçar a mediocridade rapace da maioria. A hegemonia governamental petista, surpreendentemente, deu meia razão à crítica oposicionista de que o partido não teria quadros, não os técnicos, que a oposição insinuava, mas operadores, hábeis parlamentares e negociadores - o que parecia marca do partido. Entregues as lideranças do governo a aliados ao PT, está o Executivo submetido a um estilo de administração política que esgotou a paciência do país. Talvez esteja próxima a hora de mandar o PMDB às favas e de trancar as portas do Estado brasileiro à desfaçatez da política predatória. Uma das condições indispensáveis para melhorar a qualidade do produto democrático brasileiro.

Nem tudo são flores, porém. O produto democrático brasileiro não é de boa qualidade

A oposição caiu cativa de um grupo suicida. Se pudessem, ateavam fogo às vestes e, com tal radicalismo, alimentam o temor do Executivo, engessando-o em uma parceria de efeitos negativos sobre o salto à frente. O Democratas não tem nada a perder, exceto a máscara, mas o PSDB aprofundou sua dependência das quizílias bandeirantes: antes estava subordinado ao núcleo paulista em luta contra o PT paulista; agora, perfilou-se em favor de um subnúcleo paulista, adversário de outro subnúcleo paulista. Uma oposição menos provinciana e menos contaminada pelo delírio dos "demos" (no sentido ateniense da expressão, está claro) é outra condição para o aperfeiçoamento da democracia brasileira.
Felizmente, em nenhum lugar do mundo a imprensa só retrata o denominado mundo objetivo. Fosse verdade e seria um tédio, cada país tendo um só jornal para leitura, pois não haveria nada diferente a informar, nem uma segunda opinião para interpretar o acontecido. É nos países ditatoriais que se leva a sério a tese de que a imprensa apenas fotografa a realidade. Por isso, têm dois jornais, por assim dizer, um de manhã, outro à tarde, conforme os anúncios meteorológicos.
O grande salto à frente nacional conta com a hostilidade da mídia e a incompreensão da quase totalidade da elite intelectual. A mídia ruim expulsa a mídia boa e a qualidade da imprensa brasileira, como jornalismo informativo e interpretativo, decaiu consideravelmente, se comparada com a qualidade da imprensa antes do golpe de 1964. A lembrança vem ao caso porque possivelmente foram os 21 anos ditatoriais a principal causa da deterioração tanto do jornalismo quanto da representação parlamentar. Paga-se o preço, em cultura e inteligência, não apenas em pobreza, pelo descaso seletivo e arbítrio generalizado comuns às ditaduras. Repórteres que mal entendem alguma coisa a respeito do que estão, a mando, reportando; entrevistadores cujo grau de desinformação provoca o embaraço de quem está sendo entrevistado; comentaristas possuídos por crença fundamentalista nos humores do próprio fígado, transtornados pelo quebra-cabeça da vida pública e amputados do salutar hábito da leitura. O progresso gráfico e, no caso das televisões, o apuro da carpintaria não foram acompanhados de similar investimento na mão-de-obra. Os torneiros mecânicos brasileiros têm se revelado à altura das tarefas encomendadas, os letrados pedantes, não. Nestes incluídos os velhos e novos acadêmicos repetitivos e bolorentos.
Finalmente, o Judiciário é a casa forte do conservadorismo político. Não são, os ministros do Supremo, pessoas vulneráveis aos apelos do partidarismo, mas estão expostos à politização como qualquer mortal. Em cada parecer luzem os valores que defendem, os preconceitos que os movem e os clichês que conformam a percepção que têm da vida pública. É conservador o sistema de valores predominantes no Judiciário, atrasado, aquém da acuidade necessária ao entendimento das grandes linhas da história em curso. Ao contrário da imprensa, entretanto, pela integridade de seus membros, teriam boa estampa no Brasil pré-64.
A democracia brasileira pode melhorar em alguns aspectos, no curto prazo, e contribuir produtivamente para o grande salto à frente. Em outros, entretanto, deverá esperar por épocas mais felizes, quando o Senhor Tempo houver cumprido a tarefa de limpar o palco de tantos larápios e canastrões.

Wanderley Guilherme dos Santos, membro da Academia Brasileira de Ciências, escreve quinzenalmente neste espaço

Email: leex@candidomendes.edu.br

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