Começou o 2º tempo: e a zaga bate
cabeça
O mundo literalmente desaba em
déficits fiscais decorrentes da fuzarca instaurada pelas finanças desreguladas.
Mas no Brasil o governo resolveu posar como o último combatente da batalha do
dia anterior.
Numa reverência ao Tea Party ortodoxo-tucano, fez um malabarismo contábil vertiginoso. Deu cambalhotas em saltos triplos. Raspou o tacho aqui e ali. E cumpriu formalmente a meta do superávit de 3,1% para 2012.
O que o país ganhou com isso? Nada.
Ao menos saciou a ressaca da restauração conservadora, que amanheceu o ano novo disposta a fazer de Aécio Neves o Bonaparte dos livres mercados em 2014?
Não.
A ortodoxia borbulha com o champagne grátis oferecido a quem atravessou o ano falando sozinho diante da ceia magra.
Editoriais, manchetes, colunistas foram à desforra.
Festejam o recibo passado pelo governo: os R$ 15,8 bilhões de receita-extra para fechar as contas de 2012 rapidamente evoluíram para outras arguições dogmáticas.
Savonarolas de diferentes linhagens adicionam o seu graveto à fogueira em fraldas.
Centuriões impetuosos falam em descontrole orçamentário. O nome do videogame é 'desconstruindo Dilma'.
Em 2012 o país realizou um esforço respeitável para contrastar a estagnação gerada pela desordem capitalista mundial que está longe do fim (leia análise de Nouriel Roubini nesta pág)
Corretamente --ao contrário do que fizeram sábios tucanos em crises anteriores-- o Estado acionou sucessivas reduções de tributos para reaquecer a economia.
A presidenta Dilma concedeu isenções e subsídios ao investimento produtivo. Aspergiu crédito no mercado de consumo. Ampliou em vez de golpear os programas sociais de transferência de renda. Golpeou em vez de adular os banqueiros e rentistas.Trouxe os juros da Selic para a inédita taxa de 1% ao ano em termos reais.
Fez o que tinha que fazer. Poderia ter feito até mais. O superávit fiscal ficou menor do que o previsto.
E daí? Nada.
Em vez de explicar à Nação seu zelo em preservar o emprego, a produção e o investimento, deu milho ao bode santo da ortodoxia.
O ruminante avança agora da espiga para a mão .
Economistas aliados do governo sacodem a cabeça entre irritados e estupefatos.
O que dizem em seguida revela que estão preocupados.
O episódio não é apenas tolo.
A essa altura do segundo tempo, a bobeada deixa o adversário livre diante do gol mais uma vez.
O lance revela uma hesitação recorrente num jogo de vida ou morte. É preciso por ordem em campo.
Embora comungue políticas e valores distintos, o governo parece refém da arquibancada adversária.
Moureja ao sol o ano inteiro. À meia-noite reza a missa do galo ortodoxo.
Em vez de reforçar o discernimento da sociedade dando à crise o seu verdadeiro nome e dimensão, empresta legitimidade ao catecismo que a originou.
Se é justo por que não o cumpriu?
De alguma forma, Brasília continua presa à ilusão de que os mercados farão o serviço pela Nação.
Confunde-se confiança com genuflexão.
É um erro.
Subestimar a luta política é uma forma de ceder ao adversário um pedaço crucial do terreno onde será definida a sorte de governos e nações na crise mundial do capitalismo.
A margem de manobra da economia, dentro das regras do jogo, é estreita.
Para reverter a espiral descendente pró-cíclica do capital privado é decisivo conquistar corações e mentes. De toda a sociedade. Não apenas o espírito animal dos capitalistas, que num certo sentido se nutre do consenso hegemônico.
O que define isso é a política. Não a meta cheia do superávit fiscal.
O mimo de fim de ano oferecido à ortodoxia revela o quanto o governo está confuso nesse front decisivo da batalha.
O mito da gestão eficiente como resposta aos males do capitalismo desregulado - e do Estado abastardado - fica escancarado nesse episódio.
O fetiche gestor, no limite, é tão inoperante quanto o mapa completo do conto de Borges: o detalhamento obsessivo equipara a escala ao perímetro da realidade. Anula-se.
Gestão competente é aquela capaz de enxergar a dimensão política do desenvolvimento.
Algo que se faz coletivamente. Com partido, pluralidade midiática, democracia e movimentos sociais.
O que vai definir o novo ciclo de investimento brasileiro - e por conseguinte uma boa parte do escrutínio de 2014 - é a ação firme, convicta e coerente do Estado na liderança desse processo.
O déficit fiscal dos países ricos, informa o FMI, fechou 2012 em 5,9%; com muita, mas muita sorte, cai a 5% este ano.
Nos EUA de Obama, o déficit chega a 8,7% do PIB. No Japão, o déficit fiscal é de 9% do PIB. E o novo governo --conservador-- fala em um estímulo adicional de US$ 130 bi par atirar a economia do pântano.
Em resumo, chove azeite fiscal lá fora.
Embora o lubrificante não chegue onde deveria, empoçado nas mãos da finança, o desequilíbrio internacional não avulta entre as preocupações dos nossos vigilantes orçamentários.
No Brasil, ao contrário, os estímulos seguem na direção correta.Mas o governo hesita em defender o papel do Estado, ajoelhando-se no altar da gororoba conservadora que originou a crise .
O ônus dessa ambiguidade não se circunscreve ao plano das idéias.
Aderir ao enredo do adversário legitima o cerco dos interditos que emperram obras públicas inadiáveis e decisões estratégicas urgentes.
Se o Planalto não se sente confortável em afrontar um fiscalismo anacrônico e desmoralizado pela crise, quando terá a coragem de dizer ao Tribunal de Contas, por exemplo: -'A legalidade não lhe faculta paralisar projetos, mas tão somente conferir a aplicação do recurso público efetivado'.
Quando irá transformar o Ministério do Planejamento numa máquina eficiente de planejar e tirar do papel obras que patinam no labirinto entre a judicialização ilegítima e os aditivos pantagruélicos?
Postado por Saul Leblon às
20:34