Cosmópolis, a servidão maquínica
Crítica de Cosmópolis (David Cronenberg, 2012).
A limusine de Eric Packer não corre pelas ruas. Ela flui, sem pressa, acompanhada por seguranças e assessores. As conversas também fluem, quase maquinais, sem afeto. Nas telas no interior do carro, fluem tabelas, gráficos, curvas, estatísticas, correntes de cifras e índices desapaixonados. Sua limusine é microcosmo, para onde convergem os dutos de dinheiro. Espaço e tempo de um capital semovente, que não pode parar de fluir. As bolsas de valores passaram a funcionar 24 horas por dia. O mercado mundial está em toda parte. Todos estão incluídos na fluidez infinita do sistema. As próprias pessoas se dissolveram nos fluxos de valor. Elas não existem mais como unidades distintas. O capital se confunde com a textura da vida cotidiana.
Em Videodrome (1983), se perdia o contato com o real mediante sucessivos delírios “orgânicos”, provocados pela televisão. Em Filhos do medo (1979), a alucinação produzia efeitos psicossomáticos, capazes de gerar crianças monstruosas. Em Naked Lunch (1991), as máquinas tinham pele, carne, boca e ânus, e interagiam com os humanos. Em eXistenZ (1999), eram instalados plugues, programas e implantes nos corpos dos personagens, e eles transitavam por múltiplas realidades virtuais. Em Cosmópolis, o tecnossurrealismo de Cronenberg atinge o ápice. O homem e as partes de seu organismo, o cérebro e os sonhos se tornaram peças de uma megamáquina. Os elementos maquínicos estão inteiramente incorporados ao humano e vice-versa, em comunicação interna mútua. Dez mil microconexões no nível do comportamento, da percepção, do desejo, da sensibilidade. A alucinação agora está molecularizada pela realidade. Indissociavelmente.
A maquinaria toda é operada como um elaborado videogame para gênios super-yuppies e supernerds, como Packer. Os elementos maquínicos de seu corpo estão perfeitamente ajustados à megamáquina. Ele é prolongamento, personificação, a realização plena de uma moral. Sem sair da limusine, com breves gestos e falas precisas, ele comanda o império. Eis a utopia do capital em pessoa. Ele é o pequeno deus, o mestre dos jogos, a combinação perfeita entre ego e ciência. Físico, roupas, óculos, gestos, charmoso, elegante, erótico, apenas 6% de gordura corporal: ele é perfeito. A esposa é perfeita. A limusine é perfeita, uma redoma esterilizada à prova de cheiros, ruídos, da mediocridade, do tumulto.
Mas a vida é mais. O capital não consegue controlar tudo. Os vampiros não podem sugar a vida inteira. O problema das bolhas é que mais dia menos dia elas estouram. São estouradas por pressão interna. Há muito mais acontecendo na China do que o iuã. Os fluxos afinal podem ser perturbados. Os esquemas, desarranjados. A festa confinada dos night clubs dá lugar à festa violenta dos protestos de rua. O regime laminar se torna turbulento. A turba de indignados resiste. O processo pára, o valor não se realiza, pop!, colapso do sistema.Cosmópolis é um filme sobre a crise. Não se passa em Nova Iorque por acaso. Enquanto as máquinas bárbaras proliferam fora do carro, ameaçadoras e violentas, Packer não pode fazer mais do que discutir teoria com uma assessora. É a sina do capital, a abstração impassível diante da revolução que bate à janela. Mosaico da decadência do capitalismo contemporâneo. Um road movie Occupy.
A utopia e a miséria, as imagens do sucesso e do fracasso se encontram no final. Nessa altura, a utopia se desfez junto das roupas, do cabelo, do casamento, da fortuna, do glamour. Num mundo em ruínas, Packer encontra Benno, seu gêmeo maligno, o avesso da utopia. Dois subprodutos do sistema, o capital realizado e o irrealizado, duas faces do mesmo trabalho morto e parasitário. Descartáveis. Benno deixou a imperfeição se exprimir. Comiserou-se. Percebeu as coisas. Packer é incapaz todavia de reconhecer a assimetria. Passou o filme tentando, mas não pôde ouvir sequer a própria próstata. Não compreendeu onde dormem as limusines. Como o capital, Packer fluiu pela cidade num caixão. Direto ao colapso derradeiro.