“Rua Fernão Dias, diz uma placa. Onde mora, em São Paulo, também há uma placa com esse nome, disseram-lhe que foi um famoso caçador de índios e escravos fugidos. Percorreram algumas ruas com nomes que ele desconhecia. Depois, para espanto de K., uma avenida General Milton Tavares de Souza. Ele sabia muito bem quem foi: jamais esqueceria este nome. Foi quem criou o Doi-Codi, para onde levaram Herzog e o mataram(…)”
“Como foi possível nunca ter refletido sobre esse estranho costume dos brasileiros de homenagear bandidos, torturadores e golpistas como se fossem heróis ou benfeitores da humanidade”.
Jan 9th, 2012
Até os nazistas registravam os mortos. Os funcionários do “sorvedouro de pessoas” da ditadura brasileira aperfeiçoaram essa metodologia macabra. Lendo K., de B.Kucinski, ficamos sabendo por que seguem fazendo isso, trancafiando nomes, existências e afetos. E somos apresentados a um Brasil desmemoriado, violento e perverso. Uma leitura obrigatória.
“Até os nazistas, que reduziam suas vítimas a cinzas, registravam os mortos”, observa com espanto K., em sua jornada em busca da filha desaparecida em 1974, na ditadura militar brasileira. Professora de Química na Universidade de São Paulo, ela desapareceu sem deixar vestígios, junto com seu marido, militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), organização que pegou em armas contra a ditadura que derrubou o governo constitucional de João Goulart, em 1964. Ao contrário dos nazistas, os militares brasileiros não registravam os mortos. O Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985) registra 358 vítimas do período ditatorial, sendo que 138 são desaparecidos políticos no país. É importante fixar bem o significado da palavra “desaparecido”.
Trata-se de um “sorvedouro de pessoas”, como define Kucinski logo no início de “K.” (Expressão Popular). Ao contrário dos nazistas, que “a cada morte, davam baixa num livro”, os militares e policiais do aparato repressivo da ditadura fizeram muitas pessoas desaparecer, assim como ocorreu na Argentina, no Uruguai, no Chile e em outros países latino-americanos. Nos primeiros dias da invasão da Polônia, assinala o autor, os nazistas praticaram muitas chacinas. “Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto”. Mas os moradores do local sabiam quantos e quais eram os judeus fuzilados. “Não havia a agonia da incerteza”. A ditadura brasileira, ao contrário, alimentou e alimentou-se da agonia da incerteza. Agonia alimentada até hoje, aliás.
O livro de B. Kucinski deveria ser leitura obrigatória nas escolas brasileiras. Por várias razões. A qualidade da narrativa é uma delas. Qualidade, aqui, entendida não apenas como uma virtude estética, mas também como algo que Ítalo Calvino considerava um valor moral. Quando se percorre um ambiente de trevas, a clareza expressa, entre outras coisas, um gesto de solidariedade, compaixão e compromisso com o outro. Mas, talvez, a principal razão pela qual “K.” deva ser lido, principalmente pela juventude brasileira, é que ele fala de um período da história do país até hoje sonegado da ampla maioria da população. Mais do que isso, o livro fala de um país violento, perverso, desmemoriado, obscuro e atravessado por trevas, ambiente, aliás, muito bem retratado pelas ilustrações de Enio Squeff que pontuam a narrativa.
Em sua longa jornada trevas adentro, K. se dá uma conta de uma incômoda característica dos nomes de rua no Brasil:
“Rua Fernão Dias, diz uma placa. Onde mora, em São Paulo, também há uma placa com esse nome, disseram-lhe que foi um famoso caçador de índios e escravos fugidos. Percorreram algumas ruas com nomes que ele desconhecia. Depois, para espanto de K., uma avenida General Milton Tavares de Souza. Ele sabia muito bem quem foi: jamais esqueceria este nome. Foi quem criou o Doi-Codi, para onde levaram Herzog e o mataram(…)”
“Como foi possível nunca ter refletido sobre esse estranho costume dos brasileiros de homenagear bandidos, torturadores e golpistas como se fossem heróis ou benfeitores da humanidade”.
Recentemente, dois vereadores do PSOL de Porto Alegre (Pedro Ruas e Fernanda Melchiona) apresentaram um projeto na Câmara de Vereadores da cidade, propondo que a avenida Castelo Branco passasse a se chamar Avenida da Legalidade, uma tentativa de suprimir a homenagem feita a um dos ditadores golpistas de 1964. O projeto foi rejeitado, mas serviu ao menos para expor não só as viúvas da ditadura, mas também a permanência de “posições” do sistema repressivo no interior dos meios de comunicação e fora deles.
“Centenas de pessoas passam por aqui todos os dias, jovens, crianças, e leem esse nome na placa, e podem pensar que é um herói. Devem pensar isso”, pensou K. ao ver a placa “Viaduto General Milton Tavares”. “Agora ele entendia por que as placas com os nomes dos desaparecidos foram postas num fim de mundo”.
Dezenas de brasileiros tiveram seus nomes e suas vidas lançadas para além do fim do mundo. Num determinado dia, eles “desapareceram”, ou “foram desaparecidos”, simplesmente deixaram de existir. Não é por acaso que os militares brasileiros e seus aliados civis seguem se opondo até hoje ao esclarecimento desses “desaparecimentos”. Além de expressar a sobrevivência do sistema repressivo, ainda que de uma forma mais dispersa e dissimulada, essa resistência cumpre ainda o objetivo de manter vivos os sentimentos de culpa e de medo que acompanham e alimentam esse sistema.
Uma das contribuições mais preciosas de K. é mostrar, em diferentes episódios narrados no livro, como a culpa e a destruição da memória andam de mãos dadas:
“O esclarecimento dos sequestros e execuções, de como e quando se deu cada crime acabaria com maior parte daquelas áreas sombrias que fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a tragédia teria sido abortada (…)”
“O totalitarismo institucional exige que a culpa, alimentada pela dúvida e opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento de indenizações, permaneça dentro de cada sobrevivente como drama pessoal e familiar, e não como a tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois”.
A oposição à abertura dos arquivos da ditadura, ao julgamento de torturadores e assassinos e à Comissão da Verdade expressa, para usar um jargão caro ao meio, a existência de elementos repressivos positivos e operantes ainda hoje. No final do livro, B.Kucinski dá um testemunho disso ao relatar como, em 2010, recebeu uma nova “pista falsa” sobre o suposto paradeiro da irmã desaparecida, um estratagema utilizado à exaustão contra seu pai, em sua jornada em busca da filha. “Esse telefone – concluí – é uma reação à mensagem inserida nas televisões há alguns meses pela Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, na qual uma artista de teatro personificou o seu desaparecimento [da irmã do autor]. O telefone da suposta turista brasileira veio do sistema repressivo, ainda articulado”, afirma.
A sobrevivência desse sistema repressivo depende da manutenção das trevas sobre a memória daquele período. Qual seria a reação da população brasileira se ela soubesse, por exemplo, com detalhes que prisioneiros políticos tiveram seus corpos esquartejados para não serem identificados nunca mais.
B.Kucinski define seu livro como uma “exumação imprevisível de despojos de memória” que o obrigou “a tratar os fatos como literatura e não como História”. Em uma das passagens dessa exumação, Jesuína Gonzaga, após muita resistência, conta a sua terapeuta:
“O Fleury já tinha voltado para São Paulo de madrugada. Eu sozinha tomando conta. Então desci até lá em baixo, fui ver. A garagem não tinha janela, e a porta estava trancada com chave e cadeado. Uma porta de madeira. Mas eu olhei por um buraco que eles tinham feito para passar a mangueira de água. Vi uns ganchos de pendurar carne igual nos açougues, vi uma mesa grande e facas igual de açougueiro, serrotes, martelo. É com isso que tenho pesadelos, vejo esse buraco, pedaços de gente. Braços, pernas, cortadas. Sangue, muito sangue”.
Até os nazistas registravam os mortos. Os funcionários do “sorvedouro de pessoas” brasileiro decidiram aperfeiçoar essa metodologia macabra e fizeram desaparecer também esse registro. Lendo o livro de B.Kucinski ficamos sabendo por que seguem fazendo isso, trancafiando nomes, existências e afetos. E somos apresentados a um Brasil desmemoriado, violento e perverso. Um Brasil com sangue, muito sangue, e muitas verdades encarceradas que precisam vir à luz.
“Até os nazistas, que reduziam suas vítimas a cinzas, registravam os mortos”, observa com espanto K., em sua jornada em busca da filha desaparecida em 1974, na ditadura militar brasileira. Professora de Química na Universidade de São Paulo, ela desapareceu sem deixar vestígios, junto com seu marido, militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), organização que pegou em armas contra a ditadura que derrubou o governo constitucional de João Goulart, em 1964. Ao contrário dos nazistas, os militares brasileiros não registravam os mortos. O Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985) registra 358 vítimas do período ditatorial, sendo que 138 são desaparecidos políticos no país. É importante fixar bem o significado da palavra “desaparecido”.
Trata-se de um “sorvedouro de pessoas”, como define Kucinski logo no início de “K.” (Expressão Popular). Ao contrário dos nazistas, que “a cada morte, davam baixa num livro”, os militares e policiais do aparato repressivo da ditadura fizeram muitas pessoas desaparecer, assim como ocorreu na Argentina, no Uruguai, no Chile e em outros países latino-americanos. Nos primeiros dias da invasão da Polônia, assinala o autor, os nazistas praticaram muitas chacinas. “Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto”. Mas os moradores do local sabiam quantos e quais eram os judeus fuzilados. “Não havia a agonia da incerteza”. A ditadura brasileira, ao contrário, alimentou e alimentou-se da agonia da incerteza. Agonia alimentada até hoje, aliás.
O livro de B. Kucinski deveria ser leitura obrigatória nas escolas brasileiras. Por várias razões. A qualidade da narrativa é uma delas. Qualidade, aqui, entendida não apenas como uma virtude estética, mas também como algo que Ítalo Calvino considerava um valor moral. Quando se percorre um ambiente de trevas, a clareza expressa, entre outras coisas, um gesto de solidariedade, compaixão e compromisso com o outro. Mas, talvez, a principal razão pela qual “K.” deva ser lido, principalmente pela juventude brasileira, é que ele fala de um período da história do país até hoje sonegado da ampla maioria da população. Mais do que isso, o livro fala de um país violento, perverso, desmemoriado, obscuro e atravessado por trevas, ambiente, aliás, muito bem retratado pelas ilustrações de Enio Squeff que pontuam a narrativa.
Em sua longa jornada trevas adentro, K. se dá uma conta de uma incômoda característica dos nomes de rua no Brasil:
“Rua Fernão Dias, diz uma placa. Onde mora, em São Paulo, também há uma placa com esse nome, disseram-lhe que foi um famoso caçador de índios e escravos fugidos. Percorreram algumas ruas com nomes que ele desconhecia. Depois, para espanto de K., uma avenida General Milton Tavares de Souza. Ele sabia muito bem quem foi: jamais esqueceria este nome. Foi quem criou o Doi-Codi, para onde levaram Herzog e o mataram(…)”
“Como foi possível nunca ter refletido sobre esse estranho costume dos brasileiros de homenagear bandidos, torturadores e golpistas como se fossem heróis ou benfeitores da humanidade”.
Recentemente, dois vereadores do PSOL de Porto Alegre (Pedro Ruas e Fernanda Melchiona) apresentaram um projeto na Câmara de Vereadores da cidade, propondo que a avenida Castelo Branco passasse a se chamar Avenida da Legalidade, uma tentativa de suprimir a homenagem feita a um dos ditadores golpistas de 1964. O projeto foi rejeitado, mas serviu ao menos para expor não só as viúvas da ditadura, mas também a permanência de “posições” do sistema repressivo no interior dos meios de comunicação e fora deles.
“Centenas de pessoas passam por aqui todos os dias, jovens, crianças, e leem esse nome na placa, e podem pensar que é um herói. Devem pensar isso”, pensou K. ao ver a placa “Viaduto General Milton Tavares”. “Agora ele entendia por que as placas com os nomes dos desaparecidos foram postas num fim de mundo”.
Dezenas de brasileiros tiveram seus nomes e suas vidas lançadas para além do fim do mundo. Num determinado dia, eles “desapareceram”, ou “foram desaparecidos”, simplesmente deixaram de existir. Não é por acaso que os militares brasileiros e seus aliados civis seguem se opondo até hoje ao esclarecimento desses “desaparecimentos”. Além de expressar a sobrevivência do sistema repressivo, ainda que de uma forma mais dispersa e dissimulada, essa resistência cumpre ainda o objetivo de manter vivos os sentimentos de culpa e de medo que acompanham e alimentam esse sistema.
Uma das contribuições mais preciosas de K. é mostrar, em diferentes episódios narrados no livro, como a culpa e a destruição da memória andam de mãos dadas:
“O esclarecimento dos sequestros e execuções, de como e quando se deu cada crime acabaria com maior parte daquelas áreas sombrias que fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a tragédia teria sido abortada (…)”
“O totalitarismo institucional exige que a culpa, alimentada pela dúvida e opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento de indenizações, permaneça dentro de cada sobrevivente como drama pessoal e familiar, e não como a tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois”.
A oposição à abertura dos arquivos da ditadura, ao julgamento de torturadores e assassinos e à Comissão da Verdade expressa, para usar um jargão caro ao meio, a existência de elementos repressivos positivos e operantes ainda hoje. No final do livro, B.Kucinski dá um testemunho disso ao relatar como, em 2010, recebeu uma nova “pista falsa” sobre o suposto paradeiro da irmã desaparecida, um estratagema utilizado à exaustão contra seu pai, em sua jornada em busca da filha. “Esse telefone – concluí – é uma reação à mensagem inserida nas televisões há alguns meses pela Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, na qual uma artista de teatro personificou o seu desaparecimento [da irmã do autor]. O telefone da suposta turista brasileira veio do sistema repressivo, ainda articulado”, afirma.
A sobrevivência desse sistema repressivo depende da manutenção das trevas sobre a memória daquele período. Qual seria a reação da população brasileira se ela soubesse, por exemplo, com detalhes que prisioneiros políticos tiveram seus corpos esquartejados para não serem identificados nunca mais.
B.Kucinski define seu livro como uma “exumação imprevisível de despojos de memória” que o obrigou “a tratar os fatos como literatura e não como História”. Em uma das passagens dessa exumação, Jesuína Gonzaga, após muita resistência, conta a sua terapeuta:
“O Fleury já tinha voltado para São Paulo de madrugada. Eu sozinha tomando conta. Então desci até lá em baixo, fui ver. A garagem não tinha janela, e a porta estava trancada com chave e cadeado. Uma porta de madeira. Mas eu olhei por um buraco que eles tinham feito para passar a mangueira de água. Vi uns ganchos de pendurar carne igual nos açougues, vi uma mesa grande e facas igual de açougueiro, serrotes, martelo. É com isso que tenho pesadelos, vejo esse buraco, pedaços de gente. Braços, pernas, cortadas. Sangue, muito sangue”.
Até os nazistas registravam os mortos. Os funcionários do “sorvedouro de pessoas” brasileiro decidiram aperfeiçoar essa metodologia macabra e fizeram desaparecer também esse registro. Lendo o livro de B.Kucinski ficamos sabendo por que seguem fazendo isso, trancafiando nomes, existências e afetos. E somos apresentados a um Brasil desmemoriado, violento e perverso. Um Brasil com sangue, muito sangue, e muitas verdades encarceradas que precisam vir à luz.