11/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Pois parece que foi exatamente o que Suleiman disse. Disse que os protestos são “muito perigosos” – referindo-se, sem qualquer sutileza, à interferência da agenda oculta dos jornalistas estrangeiros; à coalizão subversiva de EUA, Israel, Hamás, Hezbollah, Irã e al-Jazeera; à Fraternidade Muçulmana; e a todos os acima listados (e já devidamente evocados pelo regime).
Osama Saraya, editor-chefe do jornal governista al-Ahram, que lá estava quando Suleiman vociferou suas ameaças sinistras, tem certeza de que Suleiman não falou só de golpe militar: falou também de golpe islamista.
A reação da rua foi rápida. O sit-in diante do Parlamento – um segundo front, ao lado da praça Tahrir – agora é permanente; milhares de manifestantes já forçaram o membro da junta militar convertido em primeiro-ministro Ahmed Shafiq a transferir o ministério da Aviação Civil para outra ponta da cidade do Cairo. Recapitulando: a junta militar que está hoje no poder é composta de Suleiman, Shafiq, marechal-de-campo Mohammed Hussein Tantawi (ministro da Defesa há, já, 20 anos) e o tenente-general Sami Annan (comandante do exército).
E quanto aos milhares de trabalhadores que se reuniram diante do ministério do Petróleo? O blogueiro Hossam El-Hamalawy acertou na mosca: a “classe operária entrou oficialmente na batalha”.
A Fraternidade Muçulmana, por sua vez, deu o prazo de “uma semana” para que o regime atenda as demandas populares. O Movimento da Juventude 6 de Abril, em e-mail para todos os membros de sua página Facebook, lembrou que não haverá conversações com o regime até que o presidente Hosni Mubarak se vá. Só então aparece o xis da questão: reformas constitucionais sobre direitos civis, liberdade política e independência do Judiciário; e novas políticas econômicas, chaves para combater a miséria, o desemprego, a injustiça social e a monstruosa corrupção.
Quanto ao “diálogo” entre o Sheik al-Tortura e a oposição, a rua e uma oposição mais institucionalizada já o viram como é: miragem. Não surpreende que as greves se alastrem como fogo em mato seco; empregados da imprensa estatal começam a abandonar o navio; nomeados pelo novo gabinete renunciam. O regime está tentando todos os truques do manual – de processar ex-ministros a oferecer aumento de 15% nos salários. E os protestos de rua crescem e crescem.
Diaa Rashwan, membro do autodesignado Conselho de Sábios, diz que as negociações estão mortas: “A estratégia visava a ganhar tempo e paralisar o movimento (...) Não queriam conversar nada com ninguém. No início dessa semana estavam convencidos de que os protestos logo se esvaziariam.”
Enquanto isso, às margens do Potomac...
Eis o que se ganha, quando se aposta em pangaré viciado em tortura. Os atores do poder em Washington, seus dedicados cortesãos imperiais, as hordas de sicofantas na imprensa, todos estão absolutamente atônitos.
Poucos, praticamente nenhum, em toda essa acolhedora pátria, rica, high-tech, vasta terra de apparatchiks, jamais sequer imaginaram que algum dia enfrentariam revolução não-violenta, não-sectária, não-islamista, não-ideológica, não-hierárquica, sem-liderança, de rua, conduzida por cidadãos comuns, decentes, a boa gente de – Santo Corão! – um estado árabe cliente.
Não há exército (decadente) para combater – nem para armar com ele algum negócio sujo (sim, o “Sheik al-Tortura” e suas coortes militares sempre podem ser comprados. Mas não são o inimigo: esses, agora, são os “nossos” pangarés). Onde se metem os Ho Chi Minh, Che Guevara, Ruhollah Khomeini, Saddam Hussein, Osama bin Laden, quando se precisa deles?!
Ninguém, sequer, a ser demonizado, ninguém a quem dizer “ou estão conosco ou estão contra nós”, nenhum território a bombardear com choque e horror. A menos que se considerem “o inimigo” os grupos de jovens (não “sábios”) que estão à frente da revolução, que, no domingo, formaram uma coalizão chamada “Liderança Unificada dos Jovens da Revolução da Fúria” [orig. Unified Leadership of the Youth of the Rage Revolution]. “Uau! Parece coisa de comunista!” – como se entreouviu, murmurado em Langley.
O “inimigo” são jovens egípcios – os rapazes e moças do Movimento de Juventude 6 de Abril, o Grupo Justiça e Liberdade, a Campanha Popular de Apoio a [Mohamed] ElBaradei, o Partido da Frente Democrática e – alerta antiterroristas! – a Fraternidade Muçulmana. Isso, sob a liderança combinada de 14 jovens, entre 25 e 35 anos aproximadamente. Num mundo ideal de “nós contra eles”, bastaria uma equipe especial de ataque-detonação – ou, para melhor relação custo-benefício, um avião-robô armado Reaper – para enfiar um pouco de realpolitik naqueles cérebros.
Como derrubar Mubarak, se os 325 mil bandidos/informantes da segurança central e os 60 mil soldados da Guarda Nacional obedecem ordens do ministro do Interior de Mubarak? E como derrubar Mubarak, sem derrubar a ditadura – a mesma ditadura que enriqueceu obscenamente sob o mubarakismo? Como conseguir que façam algumas concessões eleitorais superficiais que aplaquem e desmobilizem a revolução da rua? E como tornar críveis essas concessões, agora que a classe trabalhadora entrou na luta, sem que a massa de soldados arregimentados entre os pobres do Egito rural comecem a ter ideias revolucionárias? (E ainda nem falamos do Egito rural, onde vivem 57% dos egípcios, 40% dos quais têm de sobreviver com menos de 2 dólares por dia).
Claro que Washington está com medo: não se aplica ao Egito nenhum manual de ‘surge’ de aviões-robôs armados operados à distância.
Simultaneamente, outras ditaduras-pilares da “estabilidade” no Oriente Médio – descritas rotineiramente pelos sicofantas imperiais como “moderadas” – estão ainda mais apavorados. O rei Abdullah da Jordânia pressiona por uma “transição calma e pacífica” – como se o Sheik al-Tortura e sua gangue fossem figurinhas de filme Disney. A Casa de Saud, aquele bastião da inteligência ilustrada, pelo menos, já cuida de alertar Washington sobre o que virá: qualquer expulsão apressada de Mubarak “comprometerá interesses dos EUA” e “depois dele, seremos nós”.
Pão e tortura
Durante os trinta anos de Mubarak, o Egito foi mantido pobre – 116º lugar na lista dos maiores PIB per capita. É justo dizer que nos últimos tempos foram tornados cada vez ainda mais pobres, também, por Wall Street.
O milho subiu 92% num ano; o trigo, 80% – com os efeitos conhecidos sobre o preço do pão, da carne e dos laticínios. A Organização da ONU para Alimentação e Agricultura [ing. The United Nations' Food and Agriculture Organization] mostrou que os preços globais dos alimentos sofreram alta recorde, acima dos preços da crise de alimentos de 2007/2008. A inflação do preço dos alimentos manda hoje em todo o mundo, não só no Egito (onde os alimentos consomem mais da metade de uma renda média: a inflação no preço dos alimentos atinge no Egito assustadores 17% ao ano).
Mas o ponto absolutamente crucial em tudo isso não é a demanda crescente nos gigantes Índia e China; nem os cortes nos subsídios para alimentos; nem o estado usar mais biocombustíveis; nem as inundações e baixas colheitas na Rússia, Austrália, Argentina ou as próximas, na China. Esses são fatores. É bobagem pedir aos manifestantes que rezem para fazer chover na China.
O ponto absolutamente crucial na carestia da comida é a especulação de cassino, pelos bancos de investimento, nas bolsas de alimentos “futuros”.
Somando tudo: a bolha das hipotecas fez inchar exponencialmente a riqueza dos banqueiros globais (e empurrou milhões para dormirem ao relento); agora, é a bolha dos alimentos, que funciona do mesmo modo (e empurra dezenas de milhões em direção da fome), sem que se veja qualquer luz em futuro próximo.
É consequência direta da desregulação introduzida pelo Commodity Futures Modernization Act de 2000, lei aprovada no governo de Bill Clinton, e o advento de mercados “negros” futuros desregulados, como o Intercontinental Exchange em London – inventado por Wall Street, pelos bancos de investimento europeus e por setores do “Big Oil”.
Robert Alvarez, especialista sênior do Institute for Policy Studies, lembra o que Michael McMasters, gerente de um fundo “hedge”, disse num painel no Senado dos EUA em 2008: “cria-se uma espécie de manada eletrônica, que amplia muito o efeito inflacionário do mercado. Literalmente [aquela lei] significa fome para milhões no mundo pobre.”
McMasters estimou que, nas bolsas dos EUA, 64% de todos os contratos de trigo são exclusivamente especulativos. Hoje, já deve ser mais. É o que George Soros descreveu como “acumular secretamente direitos sobre a comida em época de fome, para auferir lucros dos preços crescentes”.
E há também o Goldman Sachs e seu “commodity index fund” – mais o “choque de demanda” artificialmente criado, que implica, em essência, inventar demanda artificial para comprar trigo, e, em seguida, colher os lucros do preço explodido. Quem se preocupa com os famintos nos países do Norte da África, se deles se podem extrair bilhões de dólares? E a bolha continuará a crescer. E o Egito continuará a sofrer efeitos da bolha.
Por falar em sofrimento. Credores, na “comunidade internacional” já estão à espera, feito bando de urubus. O Egito deve 17,6 bilhões de euros (US$24 bilhões) à França; 10,7 bilhões ao Reino Unido; 6,3 bilhões à Itália; 5,35 bilhões aos EUA; e 2,4 bilhões à Alemanha. O FMI, urubu-em-chefe, está preparando mais ajustes estruturais.
A mesma “comunidade internacional” já cuida de desviar para outros destinos africanos o fluxo de turismo que buscava o Egito (fonte de 55% das divisas externas com que o país contava) – e o capital externo vai, vai, vai, seguindo orientação da oligarquia ligada a Mubarak, que inclui o magnata das telecomunicações Naguib Sawiris e o magnata do aço Ahmed Ezz.
As elites do poder ocidental exigem “estabilidade” política no Egito e preservação do status quo. O que implica total segurança para Israel, isolamento draconiano de Gaza e alinhamento total do Egito ao lado da Arábia Saudita e da Jordânia, todos vassalos confiáveis dos EUA.
Não é, não, de modo algum, o que a revolução da rua quer ver – depois de concluída a fase 1. A “Liderança Unificada dos Jovens da Revolução da Fúria” [orig. Unified Leadership of the Youth of the Rage Revolution], pelo porta-voz, advogado Ziad al-Olaimai, 32, já apresentou suas sete demandas-chave – por hora. São as seguintes: renúncia de Mubarak; fim imediato das leis de emergência; libertação de todos os prisioneiros políticos; dissolução das duas câmaras, alta e baixa, do Parlamento; formação de um governo de unidade nacional para gerir o período de transição; investigação, pelo Judiciário, dos abusos das forças de segurança durante a revolução; e o exército nas ruas, para proteger os manifestantes.
E é só o começo; governo egípcio verdadeiramente soberano não se comportará como fantoche subserviente dos EUA. E não há volta. A rua sabe que não pode simplesmente enrolar o cobertor e voltar para casa – como o regime tanto quer ver acontecer.
A rua sabe que, na calada da noite, Suleiman pode mandar seus imensos esquadrões “secretos” de bandidos recolher centenas de milhares de manifestantes para as câmaras de tortura que ele comanda a serviço da CIA, para a prisão de Abu Zaabal, ou para Scorpion, masmorra de segurança máxima, onde os prisioneiros são afogados em tonéis, eletrocutados de cabeça para baixo, forçados a mentir em camas de metal eletrificado, ou apanham com porretes eletrificados de empurrar gado, ou são estuprados por cães especialmente adestrados, ou terão a coluna dorsal esticada até romper-se, ou passarão dias na assustadora cela conhecida como “caixãozinho”, ou serão deixados ao sol para apodrecer vivos, enrolados em fita adesiva dos pés à cabeça, como múmia.
E Suleiman ali estará para supervisionar. Tudo em segredo, claro, para não perturbar a “comunidade internacional” que só deseja “estabilidade”.
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