Robert Fisk
9/2/2011, The Independent, UK
http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fisk-week-3-day-16-and-with-every-passing-hour-the-regime-digs-in-deeper-2208625.html
9/2/2011, The Independent, UK
http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fisk-week-3-day-16-and-with-every-passing-hour-the-regime-digs-in-deeper-2208625.html
Dezenas de milhares de manifestantes anti-Mubarak sacudiam as bandeiras nacionais e reuniam-se para o 15º dia consecutivo de manifestações na praça Tahrir no centro do Cairo, dia 8/2/2011, exigindo a saída do depauperado presidente Hosni Mubarak.
Velho, o sangue fica escuro, marrom. As revoluções não. Numa esquina da praça, há farrapos, restos das roupas usadas pelos mártires de Tahrir: entre eles, um médico, um advogado, uma moça, suas fotografias carregadas como troféus pela multidão, o tecido das camisetas e calças manchadas de marrom escuro. Ontem, a multidão homenageou seus mortos, desfilando, às centenas de milhares, na maior manifestação até agora contra a ditadura de Hosni Mubarak, gente suada, aos gritos,empurrões, lágrimas, impaciente, temerosa de que o mundo esqueça seu sacrifício e sua coragem. Demoramos três horas para conseguir chegar à praça, duas horas para atravessar um mar de corpos humanos e sair. Acima de nós, uma fotomontagem oscilava ao vento: uma cabeça de Hosni Mubarak aplicada sobre a foto terrível de Saddam Hussein com a corda da forca em volta do pescoço.
Levantes não seguem cronogramas. Mubarak tentará alguma vingança pela renovada manifestação de ontem, de frustração e ira contra seus 30 anos de governo.
Durante dois dias, o novo governo ‘de volta à normalidade’ tentou pintar uma imagem do Egito como nação que estaria voltando ao velho torpor da ditadura de sempre. Postos de gasolina funcionando, os obrigatórios engarrafamentos no trânsito, bancos abertos – embora só se permitam saques de pequenas quantias – lojas voltando aos negócios, ministros sentados frente às câmeras da televisão estatal, como instruídos pelo homem que quer manter-se rei por mais cinco meses, para impor ordem ao caos – único motivo alegado para agarrar-se tão alucinadamente ao poder.
Issam Etman provou que o rei errou. Empurrado e apertado pelos milhares que o cercavam, levava sobre os ombros a filhinha de cinco anos – Hadiga. “Estou aqui por causa dela” – gritava para ser ouvido acima das vozes da multidão. “Pela liberdade dela, quero que Mubarak se vá. Não sou pobre. Tenho uma empresa de transportes e um posto de gasolina. Está tudo parado e as coisas estão difíceis, mas não reclamo. Estou pagando meus empregados, mesmo sem trabalhar, do meu próprio bolso. Aqui, é questão de liberdade. A liberdade vale qualquer sacrifício.” Nos ombros de Issam Etman, seu pai, Hadiga assistia ao movimento épico daquela multidão em ação. Nenhuma aventura de Harry Potter algum dia superará essa experiência.
Muitos dos manifestantes – tantos, na noite passada, que a multidão chegava às pontes sobre o Nilo e avançava para outras praças no centro do Cairo – estavam ali pela primeira vez. Os soldados do 3º Exército do Egito pareciam poucos, 40 mil manifestantes para cada soldado, sentados nos tanques e carros blindados de transporte, sorrindo nervosos, cercados por velhos e jovens, homens e mulheres que escalavam os tanques, ou dormindo sobre a carroceria, a cabeça sobre as grandes engrenagens das esteiras. Uma força militar tornada impotente ante um exército popular.
Velho, o sangue fica escuro, marrom. As revoluções não. Numa esquina da praça, há farrapos, restos das roupas usadas pelos mártires de Tahrir: entre eles, um médico, um advogado, uma moça, suas fotografias carregadas como troféus pela multidão, o tecido das camisetas e calças manchadas de marrom escuro. Ontem, a multidão homenageou seus mortos, desfilando, às centenas de milhares, na maior manifestação até agora contra a ditadura de Hosni Mubarak, gente suada, aos gritos,empurrões, lágrimas, impaciente, temerosa de que o mundo esqueça seu sacrifício e sua coragem. Demoramos três horas para conseguir chegar à praça, duas horas para atravessar um mar de corpos humanos e sair. Acima de nós, uma fotomontagem oscilava ao vento: uma cabeça de Hosni Mubarak aplicada sobre a foto terrível de Saddam Hussein com a corda da forca em volta do pescoço.
Levantes não seguem cronogramas. Mubarak tentará alguma vingança pela renovada manifestação de ontem, de frustração e ira contra seus 30 anos de governo.
Durante dois dias, o novo governo ‘de volta à normalidade’ tentou pintar uma imagem do Egito como nação que estaria voltando ao velho torpor da ditadura de sempre. Postos de gasolina funcionando, os obrigatórios engarrafamentos no trânsito, bancos abertos – embora só se permitam saques de pequenas quantias – lojas voltando aos negócios, ministros sentados frente às câmeras da televisão estatal, como instruídos pelo homem que quer manter-se rei por mais cinco meses, para impor ordem ao caos – único motivo alegado para agarrar-se tão alucinadamente ao poder.
Issam Etman provou que o rei errou. Empurrado e apertado pelos milhares que o cercavam, levava sobre os ombros a filhinha de cinco anos – Hadiga. “Estou aqui por causa dela” – gritava para ser ouvido acima das vozes da multidão. “Pela liberdade dela, quero que Mubarak se vá. Não sou pobre. Tenho uma empresa de transportes e um posto de gasolina. Está tudo parado e as coisas estão difíceis, mas não reclamo. Estou pagando meus empregados, mesmo sem trabalhar, do meu próprio bolso. Aqui, é questão de liberdade. A liberdade vale qualquer sacrifício.” Nos ombros de Issam Etman, seu pai, Hadiga assistia ao movimento épico daquela multidão em ação. Nenhuma aventura de Harry Potter algum dia superará essa experiência.
Muitos dos manifestantes – tantos, na noite passada, que a multidão chegava às pontes sobre o Nilo e avançava para outras praças no centro do Cairo – estavam ali pela primeira vez. Os soldados do 3º Exército do Egito pareciam poucos, 40 mil manifestantes para cada soldado, sentados nos tanques e carros blindados de transporte, sorrindo nervosos, cercados por velhos e jovens, homens e mulheres que escalavam os tanques, ou dormindo sobre a carroceria, a cabeça sobre as grandes engrenagens das esteiras. Uma força militar tornada impotente ante um exército popular.
Muitos disseram que vieram à praça, porque tiveram medo de que o mundo estivesse começando a desinteressar-se daquela luta, porque Mubarak continuava no palácio, porque nos últimos dias a multidão diminuíra, porque muitas das equipes de televisão haviam sumido à caça de outras tragédias e outros ditadores, porque se sentia no ar o cheiro da traição.
Se a República de Tahrir secar, acabou-se o despertar nacional. Mas ontem se viu que a revolução continua viva.
O único erro até agora subestimar a capacidade de sobrevivência também do regime, de ele vencer a indignação das ruas, de fazer desligar as câmeras de televisão, de calar a única voz dessa multidão – os jornalistas – e de persuadir os velhos inimigos da revolução, os ‘moderados’ que o ocidente tanto ama, a esquecer as reivindicações do povo na praça.
O que são cinco meses, se o velho partir em setembro? Até Amr Moussa, o mais respeitado dos favoritos dos egípcios, já começa a admitir que Mubarak complete o mandato. E, de fato, é bem frágil a compreensão política dessa massa ingênua e sem liderança.
Os governos plantam para eles mesmos raízes de aço. Quando os sírios deixaram o Líbano em 2005, os libaneses supunham que bastaria levantar a cabeça, mandar embora os soldados e os agentes de inteligência. Mas lembro com que surpresa todos nós descobrimos o quanto ia fundo o comando sírio sobre o Líbano. Como se se tivessem plantado muito profundamente na terra, até o âmago, na rocha viva. Os assassinatos prosseguiram. E é assim, também no Egito. Os bandidos mantidos pelo ministério do Interior, a polícia política, o ditador que lhes dá ordens continuam ativos e operantes – e se uma cabeça rolar, outras serão coladas nos retratos oficiais, para ordenar que aquelas polícias cruéis voltem às ruas.
Vários egípcios – encontrei um ontem à noite, meu amigo –, ricos e apoiadores sinceros do movimento democrático, que querem o fim da ditadura de Mubarak, mas temem que, se Mubarak partir agora, os militares conseguirão impor suas próprias leis de exceção, antes mesmo de que o país discuta qualquer reforma.
“Quero que as reformas estejam votadas e aprovadas, antes que o velho deixe o palácio” – disse o meu amigo. “Se ele sair agora, ninguém que o substitua terá qualquer obrigação de promover reformas. As reformas têm de ser decididas e aprovadas agora, e rapidamente – reforma do Legislativo, do Judiciário, a reforma da Constituição, a questão das eleições e do mandato presidencial. No instante em que Mubarak se for, o primeiro general que se apresentar, com divisas no ombro, dirá “Pronto. Queriam que o presidente se fosse, e ele foi-se. Agora, voltem para casa.” E ficaremos sob o governo de uma junta militar por mais cinco anos. O melhor é Mubarak ficar até setembro.”
Mas é fácil demais acusar as centenas de milhares de egípcios que pedem democracia, de ingenuidade, de falta de astúcia política, de excessiva confiança na Internet, no Facebook. De fato, é cada dia mais evidente que a “realidade virtual” ganhou plena realidade para os jovens egípcios que criam mais na tela que na rua – e que, quando tomaram as ruas, sofreram choque intenso no contato com a violência do regime e com a força brutal, física, sempre renovada do Estado. Seja como for, o contato físico com qualquer nova liberdade é embriagador.
Como um povo que só conhece a ditadura, há tanto tempo, planejará sua revolução? No ocidente, tendemos a esquecer essa dificuldade. Vivemos tão fortemente institucionalizados, que tudo, no nosso futuro está programado.
O Egito é uma tempestade sem direção, uma avalanche, uma inundação de manifestação popular que não cabe perfeitamente nos nossos livros de história revolucionária nem em nossa meteorologia política.
Todas as revoluções têm seus mártires e os rostos de Ahmed Bassiouni e da jovem Sally Zahrani e de Moahmoud Mohamed Hassan flutuam em cartazes sobre a praça, ao lado de fotos de cabeças horrivelmente mutiladas, com a palavra “não identificado” escrita abaixo da foto com aterradora objetividade. Se a multidão deixar a praça Tahrir agora, esses mortos terão sido traídos. E se acreditarmos na teoria do ‘ou Mubarak ou o caos’ que ainda domina Washington e Londres e Paris, também trairemos a natureza civilizada, secular, democrática desse grande protesto.
O stalinismo assustador do prédios do Mugamma [lit. “combinado”; é o conjunto de prédios onde funciona o governo do Egito, na parte sul da praça (ar. Midan) Tahrir (NTs)], onde tremula também a bandeira da patética Liga Árabe; o Museu do Cairo, guardado por militares, onde repousa a máscara de ouro de Tutankhamen – símbolo do poder passado do Egito; esse é o cenário completo no qual nasce a República de Tahrir.
3ª semana – 16º dia – já sem o romance e a promessa do “Dia de Fúria” e das grandes batalhas contra os bandidos do ministério do Interior de Mubarak, e o momento, faz apenas uma semana, quando o exército desobedeceu a ordem de Mubarak para esmagar, literalmente, o povo na praça.
Haverá 6ª semana, algum 32º dia? As câmeras de televisão ficarão aqui? E o povo? E nós? Ontem, outra vez, nossas previsões foram derrotadas. Mas será que os egípcios lembrarão que as unhas de aço da ditadura estão plantadas muito fundas na areia, mais fundas que as pirâmides, mais poderosas que qualquer ideologia? Ainda não vimos o corpo inteiro do monstro. Nem a extensão de sua vingança.
Se a República de Tahrir secar, acabou-se o despertar nacional. Mas ontem se viu que a revolução continua viva.
O único erro até agora subestimar a capacidade de sobrevivência também do regime, de ele vencer a indignação das ruas, de fazer desligar as câmeras de televisão, de calar a única voz dessa multidão – os jornalistas – e de persuadir os velhos inimigos da revolução, os ‘moderados’ que o ocidente tanto ama, a esquecer as reivindicações do povo na praça.
O que são cinco meses, se o velho partir em setembro? Até Amr Moussa, o mais respeitado dos favoritos dos egípcios, já começa a admitir que Mubarak complete o mandato. E, de fato, é bem frágil a compreensão política dessa massa ingênua e sem liderança.
Os governos plantam para eles mesmos raízes de aço. Quando os sírios deixaram o Líbano em 2005, os libaneses supunham que bastaria levantar a cabeça, mandar embora os soldados e os agentes de inteligência. Mas lembro com que surpresa todos nós descobrimos o quanto ia fundo o comando sírio sobre o Líbano. Como se se tivessem plantado muito profundamente na terra, até o âmago, na rocha viva. Os assassinatos prosseguiram. E é assim, também no Egito. Os bandidos mantidos pelo ministério do Interior, a polícia política, o ditador que lhes dá ordens continuam ativos e operantes – e se uma cabeça rolar, outras serão coladas nos retratos oficiais, para ordenar que aquelas polícias cruéis voltem às ruas.
Vários egípcios – encontrei um ontem à noite, meu amigo –, ricos e apoiadores sinceros do movimento democrático, que querem o fim da ditadura de Mubarak, mas temem que, se Mubarak partir agora, os militares conseguirão impor suas próprias leis de exceção, antes mesmo de que o país discuta qualquer reforma.
“Quero que as reformas estejam votadas e aprovadas, antes que o velho deixe o palácio” – disse o meu amigo. “Se ele sair agora, ninguém que o substitua terá qualquer obrigação de promover reformas. As reformas têm de ser decididas e aprovadas agora, e rapidamente – reforma do Legislativo, do Judiciário, a reforma da Constituição, a questão das eleições e do mandato presidencial. No instante em que Mubarak se for, o primeiro general que se apresentar, com divisas no ombro, dirá “Pronto. Queriam que o presidente se fosse, e ele foi-se. Agora, voltem para casa.” E ficaremos sob o governo de uma junta militar por mais cinco anos. O melhor é Mubarak ficar até setembro.”
Mas é fácil demais acusar as centenas de milhares de egípcios que pedem democracia, de ingenuidade, de falta de astúcia política, de excessiva confiança na Internet, no Facebook. De fato, é cada dia mais evidente que a “realidade virtual” ganhou plena realidade para os jovens egípcios que criam mais na tela que na rua – e que, quando tomaram as ruas, sofreram choque intenso no contato com a violência do regime e com a força brutal, física, sempre renovada do Estado. Seja como for, o contato físico com qualquer nova liberdade é embriagador.
Como um povo que só conhece a ditadura, há tanto tempo, planejará sua revolução? No ocidente, tendemos a esquecer essa dificuldade. Vivemos tão fortemente institucionalizados, que tudo, no nosso futuro está programado.
O Egito é uma tempestade sem direção, uma avalanche, uma inundação de manifestação popular que não cabe perfeitamente nos nossos livros de história revolucionária nem em nossa meteorologia política.
Todas as revoluções têm seus mártires e os rostos de Ahmed Bassiouni e da jovem Sally Zahrani e de Moahmoud Mohamed Hassan flutuam em cartazes sobre a praça, ao lado de fotos de cabeças horrivelmente mutiladas, com a palavra “não identificado” escrita abaixo da foto com aterradora objetividade. Se a multidão deixar a praça Tahrir agora, esses mortos terão sido traídos. E se acreditarmos na teoria do ‘ou Mubarak ou o caos’ que ainda domina Washington e Londres e Paris, também trairemos a natureza civilizada, secular, democrática desse grande protesto.
O stalinismo assustador do prédios do Mugamma [lit. “combinado”; é o conjunto de prédios onde funciona o governo do Egito, na parte sul da praça (ar. Midan) Tahrir (NTs)], onde tremula também a bandeira da patética Liga Árabe; o Museu do Cairo, guardado por militares, onde repousa a máscara de ouro de Tutankhamen – símbolo do poder passado do Egito; esse é o cenário completo no qual nasce a República de Tahrir.
3ª semana – 16º dia – já sem o romance e a promessa do “Dia de Fúria” e das grandes batalhas contra os bandidos do ministério do Interior de Mubarak, e o momento, faz apenas uma semana, quando o exército desobedeceu a ordem de Mubarak para esmagar, literalmente, o povo na praça.
Haverá 6ª semana, algum 32º dia? As câmeras de televisão ficarão aqui? E o povo? E nós? Ontem, outra vez, nossas previsões foram derrotadas. Mas será que os egípcios lembrarão que as unhas de aço da ditadura estão plantadas muito fundas na areia, mais fundas que as pirâmides, mais poderosas que qualquer ideologia? Ainda não vimos o corpo inteiro do monstro. Nem a extensão de sua vingança.
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