Segundo as sondagens, a maioria dos árabes considera que os EUA e Israel são as principais ameaças. Washington marcha vigorosamente para o desastre.
Os aliados ocidentais do mundo árabe estão a perder rapidamente a sua influência. Foto do Movimento de Juventude 6 de Abril
"O mundo árabe está em chamas", informou a Al Jazira em 27 de Janeiro, ao mesmo tempo que, em toda a região, os aliados ocidentais "estão a perder rapidamente a sua influência."
A onda de choque foi desencadeada pela dramática insurreição na Tunísia, que expulsou um ditador apoiado pelo Ocidente, com repercussões principalmente no Egipto, onde os manifestantes superaram a brutal polícia do ditador.
Observadores comparam estes eventos com a queda dos domínios russos em 1989, mas há grandes diferenças.
A mais importante é que não existe um Mikhail Gorbachev entre as grandes potências que apoiam os ditadores árabes. Em vez disso, Washington e os seus aliados continuam a afirmar o bem-conhecido princípio de que a democracia só é aceitável na medida em que esteja em conformidade com os seus objectivos estratégicos e económicos: é muito boa em território inimigo (até certo ponto), mas não no nosso quintal, por favor, a menos que seja devidamente domesticada.
Uma comparação com 1989 tem alguma validade: com a Roménia, onde Washington manteve o seu apoio a Nicolae Ceausescu, o mais cruel dos ditadores do Leste Europeu, até se ter tornado insustentável. Em seguida, Washington elogiou o seu derrube, ao mesmo tempo em que apagava o passado.
Esse é o padrão habitual: Ferdinand Marcos, Jean-Claude Duvalier, Chun Doo Hwan, Suharto e muitos outros gangsters úteis. Também ele pode estar em curso no caso de Hosni Mubarak, juntamente com os esforços de rotina para tentar garantir que o novo regime não se afaste muito do caminho traçado.
A esperança actual parece ser o general Omar Suleiman, leal a Mubarak, nomeado vice-presidente do Egipto. Suleiman, o antigo chefe dos serviços de informações, é desprezado pelo povo insurrecto quase tanto quanto o próprio ditador.
Um refrão comum entre os especialistas é que o medo do islamismo radical exige uma (relutante) oposição à democracia, por razões pragmáticas. Embora não sem algum mérito, a formulação é enganosa. A ameaça geral sempre foi a independência. No mundo árabe, os Estados Unidos e os seus aliados apoiaram com frequência radicais islâmicos, por vezes para evitar a ameaça do nacionalismo secular.
Um exemplo conhecido é a Arábia Saudita, o centro ideológico do islamismo radical (e do terror islâmico). Outro exemplo, de uma longa lista, é Zia ul-Haq, o mais brutal dos ditadores do Paquistão e favorito do presidente Reagan, que promoveu um programa de islamização radical (com financiamento saudita).
"O argumento tradicionalmente avançado dentro e fora do mundo árabe é que não há nada de errado, tudo está sob controle", diz Marwan Muasher, ex-funcionário jordaniano e actualmente director de investigação sobre o Médio Oriente do Carnegie Endowment. "Com esta linha de pensamento, as forças entrincheiradas argumentam que os opositores e as pressões externas que pedem reformas estão a exagerar as condições no terreno".
Assim, o povo pode ser demitido. As raízes desta doutrina vêm de longe e estão generalizadas em todo o mundo, também no território dos EUA. No caso de haver agitação, pode ser necessário fazer mudanças tácticas, mas sempre cuidando de reassumir o controlo.
O vibrante movimento pela democracia na Tunísia foi dirigido contra "um estado policial, com pouca liberdade de expressão ou de associação, e graves problemas de direitos humanos", governado por um ditador, cuja família era odiada pela sua corrupção. Esta foi a avaliação do embaixador dos EUA, Robert Godec, num telegrama de Julho de 2009 divulgado pela WikiLeaks.
Portanto, para alguns observadores, os documentos da WikiLeaks "deveriam criar entre o povo americano um sentimento reconfortante de que as autoridades não estão a dormir no ponto" – de facto, os telegramas são tão favoráveis às políticas dos EUA, que é quase como se Obama estivesse a promover fugas dele mesmo (ou assim escreve Jacob Heilbrunn no The National Interest.)
"A América devia dar uma medalha a Assange", diz o título do Financial Times. O principal analista de política externa do jornal, Gideon Rachman, escreve que "a política externa dos Estados Unidos aparece como principista, inteligente e pragmática – a posição pública assumida pelos EUA sobre qualquer questão dada é normalmente coincidente com a posição privada."
Neste ponto de vista, a WikiLeaks contradiz os "teóricos da conspiração" que questionam os motivos nobres habitualmente proclamados por Washington.
O telegrama de Godec sustenta estas opiniões – pelo menos, se não formos mais longe. Se o fizermos, como relata o analista Stephen Zunes no Foreign Policy in Focus, descobrimos que, com as informações de Godec na mão, Washington forneceu 12 milhões de dólares de ajuda militar para a Tunísia. Quando isso aconteceu, a Tunísia era um dos apenas cinco beneficiários estrangeiros: Israel (rotina); o Egipto e a Jordânia, duas ditaduras do Médio Oriente; e a Colômbia, que há muito tem o pior histórico de direitos humanos e recebe a maior parte da ajuda militar norte-americana no hemisfério.
O destaque de Heilbrunn vai para o apoio árabe às políticas dos EUA em relação ao Irão, revelada pelas fugas de informação. Rachman também aproveita este exemplo, como fizeram os média em geral, saudando essas revelações encorajadoras. As reacções mostram quão profundo é o desprezo pela democracia nas elites.
Ninguém diz o que pensa a população – o que se descobre facilmente. De acordo com sondagens divulgadas pelo Brookings Institution, em Agosto, alguns árabes concordam com Washington e com os comentadores ocidentais que o Irão é uma ameaça: 10 por cento. Em contraste, consideram os EUA e Israel como as principais ameaças (77 por cento, 88 por cento).
A opinião árabe é tão hostil às políticas de Washington que a maioria (57 por cento) acha que a segurança regional aumentaria se o Irão tivesse armas nucleares. Ainda assim, "não há nada de errado, tudo está sob controlo" (é como Marwan Muasher descreve a fantasia dominante). Os ditadores apoiam-nos [aos EUA]. Os seus súbditos podem ser ignorados, a menos que quebrem as suas cadeias, nesse caso a política precisa ser ajustada.
Outras fugas também parecem dar apoio às opiniões entusiasmadas com a nobreza de Washington. Em Julho de 2009, Hugo Llorens, embaixador dos EUA em Honduras, informou Washington de uma investigação da embaixada sobre "questões jurídicas e constitucionais em torno do afastamento forçado em 28 de Junho do presidente Manuel 'Mel' Zelaya.”
A embaixada concluiu que "não há dúvida de que os militares, o Supremo Tribunal e o Congresso Nacional conspiraram em 28 de Junho, no que constituiu um golpe ilegal e inconstitucional contra o Poder Executivo." Admirável, excepto pelo facto de o presidente Obama ter actuado em ruptura com quase toda a América Latina e a Europa, apoiando o regime golpista e desvalorizando as atrocidades subsequentes.
Talvez as revelações mais notáveis da WikiLeaks tenham a ver com o Paquistão, revistas pelo analista político Fred Branfman na Truthdig.
Os telegramas revelam que a embaixada dos EUA está bem ciente de que a guerra de Washington no Afeganistão e no Paquistão não só intensifica o desenfreado anti-americanismo, mas também “os riscos de desestabilização do estado paquistanês” e ainda levanta a ameaça do pesadelo supremo: que as armas nucleares possam cair nas mãos de terroristas islâmicos.
Mais uma vez, as revelações "deveriam criar uma reconfortante sensação – de que os funcionários não estão a dormir no ponto" (palavras de Heilbrunn) – enquanto Washington marcha vigorosamente para o desastre.
3/2/2011
Publicado originalmente in In These Times
Retirado de Zspace
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net