terça-feira, fevereiro 14, 2006
A ÉTICA DA DESFAÇATEZ
No Roda Viva, o ex-presidente abusa da ligeireza analítica e da memória seletiva
Por Sergio Lirio
À vontade no centro do Roda Viva, da TV Cultura, na noite da segunda-feira 6, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso brindou os telespectadores com uma análise do atual momento. Como o formato e o tempo do programa dificultam um debate esclarecedor, CartaCapital, modestamente, contextualiza algumas ponderações do sociólogo, a bem da verdade dos fatos.
Ataques ao PT vs. pesquisas eleitorais. No início do programa, FHC insinuou que o título de capa da edição do fim de semana da IstoÉ (“A ética do PT é roubar”), resumo de sua entrevista à publicação, estava incorreto. “Não sei exatamente a síntese que a revista quis fazer na capa”, afirmou. Estranhamente, o redator-chefe do semanário, Mário Simas Filho, um dos entrevistadores do Roda Viva, não fez nenhuma objeção. Mais à frente, o ex-presidente negou que o tom adotado nas últimas semanas tenha relação com o crescimento de Lula nas pesquisas. “Quando dei as declarações, não havia pesquisa, não tinha a informação. Não foi por isso.” Distração. Uma semana antes, a própria IstoÉ havia publicado medição do Ibope a apontar a subida de Lula. O PSDB tem realizado pesquisas periódicas para guiar a escolha do candidato do partido. Elas captaram resultados ainda piores para a legenda. Além disso, alguns dias antes da divulgação do Datafolha, no domingo 5, círculos bem informados da política sabiam, em linhas gerais, o que viria do levantamento do instituto paulista. Privatizações. Sobre a proposta de uma CPI para investigar a desestatização no governo tucano, FHC perguntou: “Privatizações, tema a que se volta toda hora, o que é que há com as privatizações?” (em seguida, afirmou que elas renderam US$ 78 bilhões ao Tesouro). O que é que há com as privatizações? CartaCapital relembra alguns fatos. O governo do PSDB agiu diretamente para favorecer o Opportunity e o banqueiro Daniel Dantas no leilão da Telebrás. A voracidade de DD gerou o maior imbróglio comercial do País, afastou investidores estrangeiros do setor de telecomunicações e até hoje causa prejuízos ao patrimônio dos fundos de pensão. Infelizmente, para os que tentam reescrever a história, os grampos do BNDES não podem ser apagados dos arquivos da imprensa e da Justiça. Qualquer um pode consultá-los e lá encontrar, por exemplo, um ilustrativo diálogo entre o então presidente do BNDES, André Lara Resende, e FHC. Preocupado com a formação dos consórcios, Lara Resende sugere ao presidente que faça pressão sobre as fundações. Diz o presidente do banco público: “A idéia é que podemos usá-lo para isso”. FHC responde: “Não tenha dúvidas”. O ex-presidente não estendeu os braços a DD somente na época do leilão da Telebrás. Em 2002, durante um dos momentos mais críticos da relação do Opportunity com os fundos de pensão e alguns dos sócios estrangeiros, FHC recebeu o banqueiro no Palácio do Planalto “na calada da noite”, para usar uma expressão do atual presidente do PT, Ricardo Berzoini. Poucas semanas depois, o governo fez uma dura intervenção nas fundações, o que deu fôlego ao orelhudo. A atuação do governo lembra o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. “Ricardo Sérgio, que controlava os fundos e se acertava com André Lara Resende, que tinha sido sócio de Pérsio Arida, que era sócio de Dantas. Arida, que vivia com Elena Landau, que formulou o programa de privatização e virou consultora do Opportunity. O Opportunity, que amealhou uma fortuna, contratou a Kroll, grampeou concorrentes e ameaça a República...” Apagão. FHC expôs, na entrevista, um dos pontos em que o PSDB pretende se diferenciar do PT. Bateu na tecla do “aparelhamento” do Estado pelos petistas, em contraposição ao “profissionalismo” e à “boa gerência” dos tucanos. Mas como classificar a crise de energia de 2001? A privatização mambembe das distribuidoras e o delirante plano de desregulamentação do setor são obra do consórcio formado pelo PFL baiano, o grupo fernandista no tucanato e técnicos que pularam de estatais para multinacionais em troca de polpudos vencimentos.
O resultado da parceria foi um desastre. O racionamento diminui em 1,5 ponto porcentual o crescimento do PIB, segundo levantamento da Fundação Getulio Vargas. Consumidores e contribuintes desembolsaram R$ 31 bilhões para cobrir as perdas de geradoras e distribuidoras. O BNDES emprestou R$ 22 bilhões aos investidores no processo de privatização, mas só R$ 7 bilhões foram aplicados na expansão da oferta de energia. Apesar da montanha de dinheiro, o governo viu-se obrigado a socorrer as companhias em 2003 e a descascar abacaxis deixados pelo “competente gerenciamento” do setor. A Petrobras acaba de adquirir a última das três usinas térmicas erguidas com parceiros privados. Gastou cerca de R$ 2 bilhões para evitar um prejuízo de R$ 6 bilhões. A Eletropaulo foi praticamente reestatizada. Para solucionar uma dívida de US$ 1,2 bilhão, o BNDES aceitou 50% das ações da holding que controla a empresa paulista. Os franceses da EDF, controladora da Light, não vêem a hora de dar o pé do Rio de Janeiro, depois de muito prejuízo, polpudos socorros federais e serviços de baixa qualidade. A conta do seguro-apagão, criado para remunerar as 54 usinas emergenciais alugadas no fim de 2001, soma R$ 6 bilhões. Em resumo, representou perdas para os consumidores, ganhos fáceis para os donos das usinas e quase nenhum benefício para o sistema. As usinas permaneceram desligadas a maior parte do tempo. Reeleição e campanha. Instigado por um jornalista “camarada”, FHC criticou as viagens de Lula. Disse que o presidente está em campanha. “Fui candidato à reeleição. Veja se existem acusações contra mim”, afirmou. Em 1998, com o Brasil à beira do precipício, o sociólogo não pôde viajar nem exaltar as “conquistas” do seu mandato. Mas isso não significa que o demiurgo não dedicou mais tempo à reeleição do que à administração do País. O PSDB elegeu o discurso do terror e da chantagem. A estratégia foi afirmar que a vitória do PT provocaria a desvalorização do real, a disparada da inflação e o caos na economia. Nos bastidores, com o auxílio de Bill Clinton, o ministro Pedro Malan negociou o acordo de US$ 40 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o maior empréstimo feito a uma nação em dificuldade, prova cabal da insolvência das contas públicas. O pacote adiou a mudança na política econômica e garantiu mais quatro anos de mandato a Fernando Henrique. Em janeiro de 1999, reeleito, FHC desvalorizou o real, lançou os juros nas alturas e aumentou o arrocho da economia. Resultado: o tucano virou o maior cabo eleitoral de Lula em 2002. Corrupção e investigações. Em uma amostra do seu espírito republicano e democrático, o ex-presidente instigou: “Se a imprensa não exagerar, não acontece nada”. Mas, quando um telespectador perguntou sobre a compra de votos para a reeleição, FHC não manteve o mesmo espírito. Disse que a acusação publicada na Folha de S.Paulo era uma infâmia e a insistência em recordar o caso era tática nazista. Em seguida, estranhou o que seria a pouca disposição do Ministério Público Federal em investigar as denúncias contra o PT e o governo Lula. O tucano colocou-se no papel de vítima. “Fui muito investigado, toda hora abriam processos”, garantiu. A memória às vezes trai o indivíduo. Na era fernandista, o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, recebeu o apelido de “Engavetador-Geral”. A alcunha dispensa explicações. À época da CPI da Corrupção, em 2001, os jornais registram as manobras governistas para impedir as investigações. Em uma semana, foram liberados R$ 37 milhões em emendas de parlamentares. Segundo os principais diários do País, FHC mandou um recado ao Congresso. Aliados que não retirassem a assinatura do pedido de instalação da CPI seriam tratados como adversários. O candidato. FHC disse não sonhar com o retorno à Presidência. E confidenciou: “Todos disseram, se você quiser ser?” O ex-presidente sabe que realizar esse sonho não depende só dele. O “príncipe dos sociólogos” detém os maiores índices de rejeição, seja qual for a pesquisa de intenção de voto. Perde até para o ex-governador Anthony Garotinho.
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