O juiz inglês versus os juízes
brasileiros
PAULO NOGUEIRA 25 DE ABRIL DE 2013
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Depois de ver Leveson comandar as
discussões sobre a mídia inglesa, dói ver nosso STF.
Leveson em ação
DE LONDRES
Acompanhei, em Londres, o trabalho
sereno, lúcido, inteligente do juiz Brian Leveson, incumbido de comandar as
discussões sobre a mídia britânica.
Leveson, para lembrar, foi chefe de
um comitê independente montado a pedido do premiê David Cameron depois que a
opinião pública disse basta, exclamação, às práticas da mídia. Já havia um mal
estar, parecido aliás com o que existe no Brasil, mas a situação ficou
insustentável depois que se soube que um jornal de Murdoch invadira
criminosamente a caixa postal do celular de uma garota de 12 anos sequestrada e
morta. O objetivo era conseguir furos.
Leveson e um auxiliar interrogaram,
sempre sob as câmaras de televisão, personagens como o próprio Cameron, Murdoch
(duas vezes), editores de grande destaque, políticos e pessoas vítimas de
invasão telefônica, entre as quais um número expressivo de
celebridades.
Em seu relatório final, Leveson
recomendou a criação de um órgão independente que fiscalize as atividades
jornalísticas. Os britânicos entendem que a auto-regulação fracassou. O
“interesse público” tem sido usado para encobrir interesses privados, e a
“liberdade de expressão” invocada para a prática de barbaridades
editoriais.
Um grupo de políticos conservadores
publicou uma carta aberta que reflete o sentimento geral. “Ninguém deseja que
nossa mídia seja controlada pelo governo, mas, para que ela tenha credibilidade,
qualquer órgão regulador tem que ser independente da imprensa, tanto quanto dos
políticos”, diz a carta.
Este Diário defende vigorosamente
isso no Brasil, aliás: um órgão regulador independente — sem subordinação a
governo nenhum e nem a políticos de qualquer naipe. Mas — vital — também
independente das empresas de mídia. A Inglaterra marcha para isso, e a Dinamarca
— ah, sempre a Escandinávia — já tem um sistema exemplar desses há anos. A
auto-regulação é boa apenas para as empresas de mídia. Para a sociedade, como se
observou na Inglaterra e como se observa no Brasil, pode ser muito
danosa.
Você vê Leveson e depois vê nossos
juízes do STF e o sentimento que resulta disso é alguma coisa entre a desolação
e a indignação. Por que os nossos são tão piores?
Mello
Leveson, para começo de conversa,
fala um inglês simples, claro, sem afetação e sem pompa. Não se paramenta
ridiculamente para entrevistar sequer o premiê: paletó e gravata bastam. Ninguém
merece a visão das capas que fizeram Joaquim Barbosa ser chamado, risos, de
Batman.
Leveson guarda compostura, também. Se
ele fosse a uma festa de um jornalista com um interesse tão claro nos debates
que ele comanda, seria fatalmente substituído antes que a bagunça fosse removida
pelas faxineiras.
Nosso ministro Gilmar Mendes foi,
alegremente, ao lançamento do livro do colunista Reinaldo Azevedo, em aberta
campanha para crucificar os réus julgados por Gilmar, e de lá saiu com um livro
autografado que provavelmente jamais abrirá e com a sensação de que nada fez de
errado.
Leveson também mede palavras. Há
pouco tempo, nosso Marco Aurélio Mello disse que a ditadura militar foi um “mal
necessário”. Mello defendeu uma ditadura, simplesmente – e ei-lo borboleteando
no STF sem ser cobrado para explicar direito isso.
Necessário para quem? O Brasil tinha,
em 1964, um presidente eleito democraticamente, João Goulart. Os americanos
entendiam, então, que para cuidar melhor de seus interesses em várias
partes convinha patrocinar golpes militares e apoiar ditadores que seriam
fantoches de Washington.
Foi assim no Irã e na Guatemala, na
década de 1950, e em países como o Brasil e o Chile, poucos anos depois. O
pretexto era o “risco da bolchevização”. Uma pausa para risos.
Recapitulemos o legado do golpe: a
destruição do ensino público, a mais eficiente escada para a mobilidade social.
A pilhagem dos trabalhadores: foram proibidas greves, uma arma sagrada dos
empregados em qualquer democracia. Direitos trabalhistas foram surrupiados, como
a estabilidade.
De tudo isso nasceu uma sociedade
monstruosamente injusta e desigual, com milhões de brasileiros condenados a uma
miséria sem limites. Quem dava sustentação ideológica ao horror que se criava
era o poderoso ministro da economia Delfim Netto. Ele dizia que era preciso
primeiro deixar crescer o bolo para depois distribuir.
São Paulo, a minha São Paulo onde
nasci e onde pretendo morrer, era antes da ditadura uma cidade dinâmica,
empreendedora, rica – e bonita. Menos de 1% de sua população vivia em favelas.
Com vinte anos de ditadura, já havia um enxame de favelas na cidade, ocupadas
por quase 20% dos residentes.
Este o mundo que adveio do “mal
necessário” defendido por Marco Aurélio Mello. Não tenho condições de avaliar se
ele entende de justiça. Mas de justiça social ele, evidentemente, não sabe nada,
e muito menos de história — a despeito de uma retórica pomposa, solene,
pretensamente erudita e genuinamente arrogante.
Se a ditadura foi um mal necessário,
aspas, Mello pode ser classificado como um mal desnecessário,
exclamação.