segunda-feira, março 11, 2013

A queda da Casa de Europa

Paris: o frio dos que perderam tudo


11/3/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online

The Enchanters came / Cold and old,
Making day gray / And the age of gold
Passed away, / For men fell
Under their spell, / Were doomed to gloom.
Joy fled, / There came instead,
Grief, unbelief, / Lies, sighs,
Lust, mistrust, / Guile, bile,
Hearts grew unkind, / Minds blind,
Glum and numb, / Without hope or scope.
There was hate between states,
A life of strife, / Gaols and wails,
Dont's, wont's, / Chants, shants,
No face with grace, / None glad, all sad.


W H Auden, “The Golden Age”
[Thank You, Fog, NY: Faber and Faber, 1974]

Não se tem, infelizmente, versão pós-moderna de Dante guiado por Virgílio para contar a um mundo perplexo o que está realmente acontecendo na Europa, passada a recente eleição geral na Itália.

Na superfície, os italianos votaram um retumbante “não” – contra a austeridade (imposta à moda alemã); contra mais impostos; contra cortes no orçamento, desenhados, em teoria, para salvar o euro. Nas palavras do prefeito de Florença, de centro-esquerda, Matteo Renzi, “Nossos cidadãos falaram alto e claro, mas talvez ainda não tenhamos entendido completamente sua mensagem.” De fato, não é difícil entender.

Há quatro principais personagens nessa peça moral/existencial digna da mais ensandecida tradição da commedia dell 'arte.

O vencedor pírrico é Pier Luigi Bersani, líder da coalizão de centro-esquerda; mas não consegue formar governo. O perdedor indiscutível é o tecnocrata e ex-serviçal de Goldman Sachs, primeiro-ministro Mario Monti.

E há também os reais vencedores: “dois palhaços” – pelo menos de um ponto de vista alemão e da City de Londres, via The Economist. Os “palhaços” são o movimento comandado pelo comediante Beppe Grillo, “Movimento 5 Estrelas”, e o notório bilionário e ex-primeiro ministro Silvio “Bunga Bunga” Berlusconi.

Para tumultuar ainda mais as coisas, Berlusconi foi condenado a um ano de prisão, na 5ª-feira passada, numa corte de Milão, em processo que inclui escândalo de gravações clandestinas. Haverá apelação; e, como já aconteceu antes, noutra condenação, ele outra vez se safará. O mantra de Berlusconi não muda: “sou perseguido pelo judiciário italiano.”

Há mais, muito mais. Esses quatro personagens – Bersani, Monti, Grillo, Berlusconi – estão, de fato, no coração de imensa, imensíssima tragédia shakespeareana: o fracasso político da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), que, traduzido, implica que a política da União Europeia está sendo espatifada.

É o que acontece quando o projeto da União Europeia não tem nem jamais teve coisa alguma a ver com “união” política – e sempre só teve a ver com inventar o euro como moeda comum europeia. Não surpreende que, nessas circunstâncias, o mais importante mecanismo da unificação da Europa seja o Banco Central Europeu. Mas abandonem qualquer esperança de ver políticos europeus falando a seus esfarrapados cidadãos sobre alguma real união europeia. Será que alguém ainda quer união? E sob que formato?

Eis o Absurdistão
Por que as coisas aconteceram na Itália do jeito que aconteceram? Não encontrei melhor explicação que a de Marco Cattaneo (em http://cattaneo-lescienze.blogautore.espresso.repubblica.it/2013/02/26/le-elezioni-in-assurdistan/?ref=HREA-1), em artigo em que ele tenta entender o “Absurdistão”.

Tudo começou com uma lei eleitoral que até na Itália foi definida como ulna porcata [grande porcaria], validando um sistema “des-proporcional” (cientistas políticos, anotem!) que só poderia levar a situação absolutamente ingovernável.

Na excelente leitura de Cattaneo, a coalizão “Um por Todos, Todos por Um” (de Bersani), obteve 31,6% dos votos. A coalizão “Cada um por Si” (de Berlusconi) obteve 30,7%. E os novíssimos “1 = 1, o Resto = Zero” (de Grillo) obtiveram surpreendentes 23,8%.

Mesmo assim, desafiando qualquer lógica, no final “Cada um por Si” ficou com 116 assentos; “Um por Todos, Todos por Um”, com 113 assentos; e os “1 = 1, o Resto = Zero” ficaram só com 54 assentos – menos que a metade.

Nas ruas, de Nápoles a Turim e de Roma a Palermo, há outra explicação. Nada menos que 45% dos italianos, de aposentados que vivem com 1.000 euros [US$1,300] até banqueiros que fazem 10 milhões/ano, não querem mudança nenhuma. Outros 45% – os desempregados e os subempregados – querem mudança radical. E 10% não ligam – e jamais ligaram. Misture e acrescente tudo isso à lasagna da ingovernabilidade.

E extraia de lá uma colherzinha de sabedoria de cappuccino-no-balcão. Em breve, as finanças do Absurdistão estarão em estado tão lastimável quanto as finanças do Helenistão – terra vizinha, dos descendentes de Platão e Aristóteles. Quando acontecer, então, o Absurdistão será usado como modelo para a Europa e para o mundo: onde 1% da população controla 99% da riqueza nacional. De Lorenzo de Medici a Berlusconi; caso claro de Ascensão e Queda.

Bunga Bunga me, baby
Processado e julgado até o osso (inclusive com uma condenação por fraude fiscal em outubro de 2012; mas safou-se); beneficiário de leis espúrias explicitamente escritas e aprovadas para protegê-lo e seu gigantesco império empresarial: eis a saga Bunga Bunga rabelaisiana. Até agora, derrotou todos. Silvio Berlusconi talvez seja o último comeback kid.[1] Como conseguiu safar-se da cadeia, dessa vez?

É fácil, se você mistura voltagem bilionária de mídia (e controle pelas corporações) com promessas grotescas – como retalhar um muito detestado imposto sobre a propriedade. Como fazer, com a arrecadação que encolheria? Simples: Silvio prometeu novos impostos sobre o jogo, e negócio obscuro para recuperar alguns dos fundos que italianos mantêm em bancos suíços.

Faz alguma diferença que a Suíça já tenha dito bem claramente que seriam necessários muitos anos, até o esquema funcionar? Claro que não. Até a vasta oposição a Silvio teve de reconhecer que a ideia era “golpe de gênio”. Cerca de 25% dos italianos votaram no partido de Silvio. Quase 1/3 apoiou sua coalizão de direita. Na Lombardia – conhecida informalmente como o Texas da Itália – a coalizão reduziu o centro-esquerda a cacos. A Toscana, por sua vez, votou como tradicionalmente com a esquerda; e Roma, por essência, oscila.

Os eleitores de Silvio são, quase todos, pequenos e médios comerciantes; o norte da Itália comanda a economia. Odeiam impostos; vão de legiões de sonegadores aos asfixiados pela carga fiscal. Obviamente, dificilmente se preocupariam menos com o déficit orçamentário de Roma. E todos desejam que a chanceler alemã Angela Merkel apodreça no nono círculo do inferno de Dante.

Frau Merkel, por sua vez, acalenta a ideia de que cruzará tranquilamente as águas da eurozona rumo ao seu terceiro mandato, nas eleições de setembro próximo. Praticamente impossível – graças aos eleitores de Silvio e Beppe Grillo. Pode-se dizer que a um abismo entre norte e sul na Europa. A cúpula da União Europeia, nesse mês de março, será – literalmente, um quebra-quebra.

Aqueles sexy palhaços-políticos
A União Europeia vive o apocalipse. Le Monde insiste que a Europa não agoniza.[2] Ah, está. Está em coma.

E nem assim Bruxelas (aquela Comissão Europeia infestada de burocratas) e Berlin (o governo alemão) sequer cogitam de algum Plano B: é austeridade ou que-se-explodam. Previsivelmente, o ministro alemão das Finanças, Jeroen Dijsselbloem – novo cabeça da espetacularmente opaca, não transparente, comissão que comanda o euro – disse que o que Monti fazia (e foi furiosamente rejeitado pelos italianos) é “crucialmente necessário para toda a eurozona”.

Em 2012, a economia italiana encolheu 2,2%, mais de 100 mil pequenos negócios fecharam as portas (e, sim, todos votaram em Silvio) e o desemprego já passou de 10% (na realidade, já passou de 15%). A Itália talvez tenha a mais alta dívida nacional de toda a Eurozona, depois da Grécia. Mas aqui o Absurdistão manifesta-se outra vez, via a austeridade: o déficit fiscal da Itália é muito inferior ao da França e ao da Holanda.

Estourem a champagne: a França está em decadência vertical. Não se trata só de declínio da indústria, mas também da perene recessão, da turbulência social e de uma dívida pública que ultrapassa 90% do PIB. A França, a segunda maior economia da eurozona, pediu mais um ano à Comissão Europeia para baixar seu déficit para menos de 3% do PIB. Jens Weidman, presidente do Bundesbank, rugiu que “Esqueçam”.

Portugal também está pedindo água à troika. A economia portuguesa encolheu (cerca de 2%) pelo terceiro ano consecutivo, com desemprego acima de 17%.

A Espanha vive sob horrenda recessão, além de enfrentar crise monstro da dívida. O PIB caiu 0,7% em 2012 e, segundo o Citibank, cairá mais 2,2% em 2013. O desemprego alcança inacreditáveis 26%, com mais de 50% dos jovens, desempregados. Nem todos acertam a loteria, jogando no Barcelona ou no Real Madrid. A Irlanda tem o maior déficit da eurozona, 8%, e acaba de reestruturar a dívida de seus bancos.

A Grécia está no quinto ano consecutivo de recessão, com desemprego acima de 30% – e, isso, depois de dois pacotes de austeridade. Atenas corre em círculos, tentando escapar dos credores, ao mesmo tempo em que tenta aliviar alguns dos cortes draconianos. Os gregos já não têm dúvidas: a situação é pior que a da Argentina em 2001. E lembrem: a Argentina deu calote nos bancos.

Até a Holanda enfrenta grave crise bancária. E, como se não bastasse, David Cameron pôs em torvelinho o futuro da Grã-Bretanha.

Assim sendo, é, mais uma vez, a vez de Silvio – e quem mais poderia ser? – de temperar o cozidão. Só o Cavaliere seria capaz de dizer que o famoso spread – a diferença entre o quanto Itália e Alemanha pagam para tomar empréstimos nos mercados de ações – foi “inventado” em 2011 por Berlin (o governo alemão) e Frankfurt (o Banco Central Europeu), para conseguir livrar-se Dele, de Silvio, e “eleger” o tecnocrata Monti.

A imprensa-empresa alemã, também previsivelmente, não quer saber de prisioneiros vivos. A Itália e os italianos são diariamente ridicularizados como “infantiloides”, “ingovernáveis”, “gravíssimo risco para a eurozona”. (Por exemplo, ver Der Spiegel[3].)

O tabloide Bild, ultrapopular, inventou até nova pizza: não “Quatro Estações” [Quattro Stagioni], mas “Quatro Estagnações” [Quattro Stagnazioni].

O veredicto é uma Itália “nas mãos de palhaços-políticos que podem destruir o euro ou forçar o país a sair”. Até o liberal-progressista Der Tagesspiegel em Berlim define a Itália como “um perigo para a Europa”.

Peer Steinbruck, ex-ministro alemão das Finanças e candidato social-democrata contra Merkel em setembro próximo, resumiu: “Em certa medida, estou aterrorizado, agora que dois palhaços venceram as eleições.”

Assim sendo, seja qual for o governo que surja na Itália, a mensagem de Bruxelas, Berlin e Frankfurt é sempre a mesma: se não cortarem, cortarem, cortarem, ficarão por sua própria conta.

A Alemanha, essa, só tem um Plano A. Chama-se “Esqueçam o Club Med”. Significa integração mais íntima com a Europa Oriental (e ali, um pouco depois, na mesma estrada, a Turquia). Um acordo de livre comércio com os EUA. E mais negócios com a Rússia – a chave é a energia – e com os BRICS em geral. Digam o que digam os jornais, fato é que os think-tanks alemães já estão trabalhando com uma eurozona de duas pistas.

O povo quer alívio monetário / The people want quantitative easing
O filme, de título muito adequado, Girlfriend in a Coma [Namorada em Coma],[4] dirigido por Annalisa Piras e escrito em coautoria com Bill Emmett, ex-editor de The Economist, tentou dar conta, com algum sentido, dos vícios e virtudes da Itália.

E mesmo assim, não só via Prada ou Maserati, presunto de Parma ou vinhos Brunello, a Itália continua a ter lampejos de brilho: o melhor aplicativo do mundo – Atom, que permite personalizar as funções de um telefone celular, sem que você tenha de entender de alta programação de computadores – foi criado por quatro jovens de 20 e poucos anos, em Roma, como La Repubblica noticiou.[5]

O filósofo Franco Berardi – que nos anos 1970s participou do movimento italiano dos autonomistas – avalia corretamente que o que a Europa vive hoje é consequência direta dos anos 1990s, quando o capital financeiro sequestrou o modelo europeu e o engessou sob o neoliberalismo.

Subsequentemente, pode-se argumentar, consistentemente, que os Mestres do Universo financeiro usaram o período pós-crise financeira de 2008 para superturbinar a desintegração da União Europeia via um tsunami de cortes nos salários, precarização dos empregos para os mais jovens, achatamento das aposentadorias e privatização hardcore de tudo. Não surpreende que cerca de 75% dos italianos tenham dito “não” a Monti e Merkel.

O resumo da ópera é que os europeus – dos países do Club Med a algumas economias do norte – tenham-se cansado de ter de pagar as dívidas acumuladas pelo sistema financeiro.

O movimento de Grillo per se – apesar de seus 8,7 milhões de votos – não consegue, obviamente, governar a Itália. Algumas de suas (vagas) ideias têm enorme apelo entre as novas gerações, sobretudo no que tenham a ver com calote unilateral na dívida pública (vejam os exemplos de Argentina, Islândia e Rússia), a estatização dos bancos e uma renda “de cidadania” para todos, de 1.000 euros por mês. Daí em diante, haveria referendo e mais referendo, sobre acordos de livre comércio, participação na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e, claro, permanecer ou não na eurozona.

O que o movimento de Grillo já fez é mostrar o quanto a Europa é ingovernável sob o mantra de Monti-Merkel, da austeridade. Agora, a bola está no campo da elite financeira europeia. Muitos não se incomodariam de deixar que a Itália converta-se numa nova Grécia.

Assim, voltamos ao início. A única saída é uma reformulação política da União Europeia. No pé em que estão as coisas, a Europa assiste, impotente, a morte do estado de bem-estar, sacrificado no altar da Recessão. Assim a Europa vai rumando para a irrelevância global – apesar do Real Madrid e do Bayern de Munique.

A Queda da Casa de Europa pode vir a ser história de horror, além de qualquer coisa imaginada por Poe[6] – com elementos (já visíveis) de fascismo, exploração neo-Dickensiana de trabalhadores e guerra social, civil, ampla. Nesse contexto, a lenta reconstrução de uma Europa com base social pode tornar-se sonho movido a ópio.

O que Dante faria dessa matéria bruta? Roberto Benigni, nascido na Toscana, está atualmente lendo e comentando em profundidade os cantos XI até XXII – do Inferno de Dante, ponto alto da Divina Comédia. Assisti, boquiaberto, pela televisão, RAI – a praça em frente à fabulosa igreja Santa Croce em Florença, absolutamente lotada – à perfeição cósmica das palavras do Maestro que dão sentido a tudo isso.

Se, pelo menos, seu espírito iluminasse esses vendilhões do Inferno, de Monti a Merkel, de Silvio aos banqueiros da Europa Central – e alinhassem o Homem outra vez às estrelas e mostrasse o caminho a essa Europa atormentada.


[1] Sobre a expressão, que designa, na gíria dos EUA, no registro pejorativo: (a) alunos que adiam a formatura na escola secundária, para continuar a comer de graça na escola; (b) quem se muda da casa dos pais, mas continua a voltar diariamente para comer e lavar a roupa, ver http://www.urbandictionary.com/define.php?term=comeback%20kid [NTs].
[6] Referência ao conto magistral de Poe, “A queda da casa de Usher”. O conto pode ser lido em português em http://www.beatrix.pro.br/index.php/a-queda-da-casa-de-usher-edgar-allan-poe/ [NTs].

da Vila Vudu