Os defensores do mercado usam um
argumento recorrente toda vez que um Estado nacional rompe relações com empresas
privadas, seja por que motivo for. O alerta é de que contratos estão sendo
rompidos, o que gera insegurança jurídica e fuga de investidores. Jamais se ouve
desses arautos a defesa do Estado, mesmo que este tenha sido lesado nos ditos
contratos que tanto prezam. A culpa é sempre dos governos, nacionalistas e
jurássicos, que não sabem gerir negócios com a eficiência
privada.
A cantilena ressurge agora com a
decisão da presidente Cristina Kirchner de expropriar as ações da espanhola
Repsol na YPF, petroleira argentina criada nos anos 1920, em torno de uma idéia
de soberania nacional sobre um produto estratégico, e vendida nos anos 1990,
durante a fúria neoliberal, personificada na Argentina pelo ex-presidente Menem,
que iniciou o processo que levaria o país vizinho a uma das piores recessões da
história e a uma crise institucional sem precedentes num regime
democrático.
Sem entrar no processo de
privatização em si, já motivo de questionamentos, a Repsol teria como
compromisso, ao assumir o controle da empresa, ampliar a exploração e produção
de petróleo e gás no país. Mas o que se viu, foi o movimento inverso. A Repsol
reduziu a produção e duplicou suas receitas no último exercício, privilegiando a
maximização de lucros no curto prazo e as remessas ao
exterior.
De 1999 a 2011, o lucro líquido da
Repsol-YPF foi de 16,45 bilhões de dólares, e a empresa distribuiu dividendos de
13,24 bilhões de dólares. Em 2011, a YPF representou cerca de 35% do Ebitda
(lucro antes de impostos e amortizações) consolidado da Repsol e pagou cerca de
750 milhões de dólares em dividendos. Ou seja, enquanto a empresa extraía o
máximo de resultados, investia o mínimo na expansão da atividade, essencial para
a Argentina e sua população.
A Repsol-YPF reduziu em 30% a 35% sua
produção de petróleo nos últimos anos e em mais de 40% a de gás, o que obrigou a
Argentina a aumentar em mais de 9 bilhões de dólares as importações de
hidrocarbonetos. Os números do governo argentino indicam que, entre 2002 e 2011,
a produção de petróleo no país recuou de 43,9 milhões de metros cúbicos para 33
milhões de metros cúbicos(dos quais 35% são produzidos pela
Repsol-YPF).
Antes do anúncio da expropriação,
províncias petrolíferas argentinas já vinham retirando concessões de exploração
da Repsol por falta de investimento. Um recente documento de dez províncias
argentinas produtoras de hidrocarbonetos indicou quedas de até 18% na produção
de petróleo e gás no país nos últimos dez anos.
Como observou Cristina Kirchner ao
anunciar a expropriação, se “prosseguisse a política de esvaziamento, de falta
de produção e de exploração, nos tornaríamos um país inviável, por políticas
empresariais e não por falta de recursos, já que somos o terceiro país no mundo,
depois da China e dos EUA, em reservas de gás”.
A falta de investimento da Repsol
levou a Argentina a importar ano passado, pela primeira vez em 17 anos, gás e
petróleo. O país que sempre foi conhecido pelo excedente de gás, fornecido a
países vizinhos, passou a comprar o produto que dispõe em abundância, e cuja
produção poderá se multiplicar com a exploração de Vaca Morta, um reservatório
extraordinário descoberto na Bacia de Neuquém.
Depois do desastre neoliberal, a
Argentina recuperou, diga-se de passagem nos governos Kirchner, o crescimento
econômico, que reforçou o contraste entre o declínio da produção de
hidrocarbonetos e a expansão do consumo de combustíveis. Entre 2003 e 2010, o
consumo de petróleo e gás subiu 38% e 25%, respectivamente, e a produção caiu
12% e 2,3%. A balança comercial do setor petrolífero foi de um superávit de
cerca de US$ 2 bilhões em 2010 para um déficit de cerca de US$ 3 bilhões em
2011.
Ao Estado, cabe controlar a produção
de seus recursos estratégicos, com vistas ao futuro e ao bem estar de sua
população. Isso pode ser feito em parceria com empresas privadas, desde que
estas cumpram suas obrigações e tenham compromissos com os países onde operam, o
que não parece ter sido o caso da Repsol. Como observou Cristina Kirchner ao
anunciar a expropriação, “não temos problemas com o lucro, mas sim espero que
eles sejam reinvestidos no país: tenham a certeza que se acompanharem o país
vamos seguir trabalhando lado a lado”.
Mair Pena Neto Jornalista carioca. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil,
Agência Estado e Agência Reuters. No JB foi editor de política e repórter
especial de economia.Direto da Redação.