DEBATE ABERTO
A política brasileira, a virtude e a fortuna Depois de 27 anos de redemocratização do país, e de um período prolongado de luta aberta entre forças que se opõem no cenário político, talvez seja conveniente lembrar Maquiavel também no nosso pedaço de mundo, onde atribuímos à velha ordem excessivo poder para decidir nosso futuro.
A política brasileira, a virtude e a fortuna Depois de 27 anos de redemocratização do país, e de um período prolongado de luta aberta entre forças que se opõem no cenário político, talvez seja conveniente lembrar Maquiavel também no nosso pedaço de mundo, onde atribuímos à velha ordem excessivo poder para decidir nosso futuro.
Do Carta Maior Maria Inês Nassif
Houve um tempo em que a desenvoltura
de velhas raposas da política tradicional, e uma vocação dessas lideranças para
remar a favor da maré, davam a impressão, para quem as assistia do lado de fora
do palco institucional, de que elas tinham um quase monopólio, um poder
ilimitado de construir a história. Depois de 27 anos de redemocratização do
país, e de um período prolongado de luta aberta entre forças que se opõem no
cenário político, talvez seja conveniente lembrar Maquiavel também no nosso
pedaço de mundo, onde atribuímos à velha ordem excessivo poder para decidir
nosso futuro. Dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva e pouco mais de um ano
com Dilma Rousseff – três gestões onde a disputa política saiu dos porões do
poder e se escancarou para outros setores sociais – mostraram que o jogo
político, mesmo quando escamoteado, é virtude e fortuna. Ou seja, nunca é
produto exclusivamente da vontade de um governante, embora a virtude seja
fundamental para mover um governo, e a fortuna, isto é, a roda da história,
nunca acontece descolada da virtude. As virtudes de um e outro governante não
são iguais, mas já se pode dizer, com um alto grau de certeza, que o correr dos
acontecimentos – a fortuna – foi adequada às diferenças entre Dilma e Lula.
Dilma está no lugar e na hora onde tem que estar; Lula cumpriu o seu papel no
seu momento. E o processo histórico, como se move, saiu de uma realidade onde o
governo era defensivo e tinha como contraponto um presidente com raras
qualidades de conciliação; para uma outra, em que o governo é ofensivo e a
presidenta, sem habilidades específicas para manobrar a política institucional,
encontra terreno para exercer a sua vocação maior, que é a de se contrapor. A
rápida intervenção de Dilma nos juros domésticos (o pesadelo para todos os
governantes das últimas duas décadas) tanto pela via institucional, o Copom,
como da pressão direta sobre os bancos, é o estilo Dilma, beneficiado pelo
gradual abandono da ortodoxia econômica iniciada no governo Lula e pela crise
mundial. A volta por cima da crise política do chamado “mensalão” de 2005, via
apoio popular, é estilo Lula. Nos mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010), exceto em um breve primeiro ano de lua-de-mel com as elites
políticas brasileiras, o governo foi mantido acuado na política institucional
por uma minoria oposicionista amplificada por uma mídia hegemônica; e, no plano
da sociedade civil, manteve uma aproximação permanente com setores não
organizados, beneficiados pelos programas sociais e/ou atraídos pelo carisma do
chefe do Executivo. Com os movimentos sociais organizados o governo Lula não
teve sempre um bom diálogo, mas o fato de ser entendido como um mal menor,
contra um partido, o PSDB, que criminalizou a ação política desses setores,
poupou-o de uma oposição forte à esquerda. O MST, por exemplo, nunca se declarou
feliz com o PT no governo federal, mas foi atraído pelas suas próprias bases e
pela opção do “mal menor” a se encontrar com o partido em períodos eleitorais, e
a aliviar a pressão quando os setores conservadores tocavam fogo na política
institucional. O governo Dilma Rousseff mostrou algumas coisas mais. Primeiro,
que no final das contas os estilos diferentes dos dois presidentes petistas
vieram na hora certa. Em segundo, que a vontade pessoal de um mandatário popular
conta, mas desde que ele entenda, conflua e aproveite o processo histórico que o
levou ao poder. Dificilmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria
chegado ao final de seu mandato, se não tivesse algumas qualidades essenciais: a
habilidade e pragmatismo de negociador sindical e uma grande facilidade para se
fazer ouvir pelas massas, que deram a ele a sustentação política necessária para
se contrapor a uma oposição fraca, porém associada a uma mídia tradicional
hegemônica. Suas duas administrações, exceto a trégua inicial – necessária para
atenuar os efeitos da investida especulativa do mercado financeiro no ano
eleitoral de 2002 – ocorreram sob forte ofensiva. A pequena oposição falou
grosso pela voz da mídia. Dilma Rousseff tem outro perfil. Não teria cintura
para sobreviver numa conjuntura política tão desfavorável como a enfrentada por
Lula, mas o fato é que o governo de seu antecessor, os compromissos políticos
assumidos por ele e a montagem de seu palanque permitem, ironicamente, que ela
seja ela mesma. Se tivesse tentado ser Lula, teria fracassado. Além disso, uma
gestão econômica que é continuidade do governo Lula, mas que é a sua praia, numa
conjuntura que o mundo chafurda na lama do neoliberalismo, simplesmente desmonta
qualquer oposição significativa às orientações de governo, e dão a ela dimensão
própria no âmbito internacional, mesmo fazendo uma política externa de
continuidade à anterior. Dilma falou de igual para igual na Cúpula das Américas
porque sabe ser positiva; mas tem o respeito da comunidade internacional não
apenas porque é positiva, mas porque o ex-presidente Lula, que atuou com
desenvoltura nessa área, deixou no passado o complexo de vira-lata neoliberal.
Antes disso, a elite brasileira tomava como referência os países ricos nas
formulações econômicas externas e extasiada, olhando para fora, deixava visível
a enorme vergonha do próprio país. Os êxitos do governo Lula encheram o palanque
de Dilma e sua base aliada. A habilidade política de Lula costurou o resto. Sem
isso, no entanto, dificilmente a presidenta teria condições de tentar mudar os
termos de relacionamento com a sua base parlamentar. E sem o estilo Dilma, seria
complicado levar essa tentativa muito longe. Também seria difícil manter o
estilo Dilma nas relações políticas institucionais se a oposição, menor ainda do
que era no governo Lula, não tivesse sido severamente atingida pela enorme crise
decorrente das denúncias contra seu principal porta-voz, o senador Demóstenes
Torres, envolvido com uma quadrilha comandada pelo contraventor Carlinhos
Cachoeira. Não foi apenas a oposição que perdeu a credibilidade, mas a banda de
música do DEM e do PSDB passou a ser menos crível numa mídia que acuou o governo
passado, mas está acuada agora. Por mais irônico que seja, fica mais fácil agora
para Dilma definir novas relações com o Legislativo. Ela não está na posição
permanente defensiva em que Lula foi mantido nos seus dois governos, não tem as
dívidas de gratidão que seu antecessor tinha com políticos tradicionais da base
aliada e lida numa situação em que foi escancarado não apenas o uso da máquina
administrativa pelos aliados, mas pelos próprios oposicionistas, ao que tudo
indica um avanço sobre território alheio obtido pelo expediente da chantagem. O
momento é outro e o processo histórico anda, sempre. Qualquer análise política
sobre o Brasil de hoje tem que se livrar dos fantasmas do passado e dar a eles
sua devida dimensão. Esta é a condição para virtude e fortuna. (*) Colunista
política, editora da Carta Maior em São Paulo.