quarta-feira, março 21, 2012

O segredo do Sgt. Bales e um impasse afegão

19/3/2012, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/NC20Df04.html

Apesar de Washington repetir e repetir que a matança em Kandahar, há uma semana, foi resultado de um “surto”, de alguém “aparentemente descompensado” ou “provavelmente desequilibrado”, o povo afegão acredita nas provas reunidas por seus parlamentares, segundo as quais entre 15 e 20 soldados dos EUA participaram dos crimes. O presidente do Afeganistão Hamid Karzai também concordou: a versão dos EUA “não é convincente”.

E dentro do establishment militar afegão predominará a opinião exposta publicamente pelo comandante do estado-maior do exército afegão, Sher Mohammad Karimi, que condenou os soldados dos EUA. O tenente-general Karimi, que visitou a cena do crime, disse que acontecera massacre premeditado consumado por vários soldados norte-americanos.

Com tudo isso, torna-se altamente problemática a assinatura de um tratado estratégico entre Washington e Kabul, prevista para acontecer antes da reunião de cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, em Chicago, em maio. Washington espera que Karzai assine na linha pontilhada antes de maio; e Karzai sabe que seu futuro político depende de seu desempenho.

Bernard-Henri Lévy
Em comentário surpreendente, publicado semana passada, o influente criador de casos Bernard-Henri Lévy já disse, em tom de ameaça, que a comunidade internacional jamais deveria ter-se tornado “cegamente dependente do governo corrupto de Hamid Karzai”.[1]

Fazendo eco às ideias de vários comandantes norte-americanos, Henri Lévy pôs-se a criticar furiosamente a retirada planejada para 2014, como “admissão de fracasso e impotência”. Mas disse que prolongar a presença militar além de 2014 também seria difícil, “considerando-se o custo humano”. Assim sendo, a única via possível seria “ficar e sair” – quer dizer: retirar as tropas de combate, “mas deixar lá as bases militares e os instrutores.”

Lévy tem a solução: “Admitir que o Afeganistão não pode ser reduzido (...) a um confronto desesperado entre assassinos Talibã e os membros corruptos do governo Karzai (...). Em Cabul (...) estão também os herdeiros de [o falecido comandante da Aliança do Norte, Ahmad Shah] Massoud. E antes talvez de retirarmos a escada, talvez seja aconselhável aproximar-se dele, numa última tentativa, numa derradeira operação.”

Barack Obama

Karzai mais uma vez volta a ser tratado como se seu sucessor potencial já estivesse pronto e paramentado, à espera, na sala ao lado. O ponto é que, ao longo de uma sequência macabra de eventos ao longo das últimas seis, oito semanas – soldados dos EUA que urinam sobre cadáveres dos Talibã, queimam livros do Corão, massacram civis –, a meta sempre presente é conseguir que Karzai assine um pacto estratégico, que garanta presença militar norte-americana de longo prazo no Afeganistão.

Na 3ª-feira passada, o presidente Barack Obama dos EUA disse, em conferência de imprensa ao lado do primeiro-ministro britânico David Cameron, que Karzai ouvira claramente o que tinha de ouvir.

Mas, depois de Panjwayi, já nada pode continuar reduzido a uma batalha de objetivos, só entre Obama e Karzai.

Moscou entra em cena

Em entrevista exclusiva de 30 minutos, a um canal da televisão afegã, ontem à noite[2], o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, repetiu, nem duas nem três, mas quatro vezes, que a Rússia espera um Afeganistão “neutro” – palavra em código para dizer “sem presença militar estrangeira”.

A política russa está andando por duas trilhas. Uma, Moscou espera trabalhar bem próxima de Karzai. “Diferentes de outros [quer dizer “Washington”], nós não ordenamos ao governo [de Cabul] como construir o processo de reconciliação nacional. Sabemos que, além de pashtuns, há uzbeques, tadjiques, hazaras. Todos esses devem encontrar seu caminho até o sistema político, para que se sintam incluídos, não isolados, no processo. Esse é o princípio geral; como aplicá-lo na prática, não cabe aos russos dizer às autoridades afegãs”.

Por outro lado, Lavrov questionou a ideia de que o governo Obama ou a OTAN possam decidir unilateralmente sobre questão de “transição” ou de “fim da missão de combate”.

Exigiu que a Força Internacional de Assistência à Segurança [orig. International Security Assistance Force (ISAF)] demonstre ao Conselho de Segurança da ONU que cumpriu a missão que lhe foi atribuída, antes, evidentemente, de falar sobre retirada dos soldados de EUA e OTAN sem prestar qualquer satisfação à ONU sobre o resultado de sua missão no Afeganistão.

Lavrov destacou que há contradição fundamental na posição dos EUA: de um lado, (1) Washington assume que, sim, a ISAF teria cumprido a missão que recebeu da ONU e diz que retirará os soldados; de outro lado, (2) Washington continua a discutir com Kabul, “muito empenhadamente, o estabelecimento de quatro ou cinco bases militares no mesmo espaço de onde ‘retira’ os soldados, para o período pós-2014.”

Falando firme, Lavrov demarcou o quadro geral:

“Não se entende por que isso deva ser encaminhado desse modo, porque, se você precisa de presença militar, é sinal de que o mandado do Conselho de Segurança ainda não foi satisfatoriamente cumprido. Se você não quer cumprir o mandado do Conselho de Segurança, ou se supõe que o mandato já foi cumprido... para que seriam necessárias as bases militares? Não me parece que haja aí qualquer lógica. Acho também que o território afegão não deve ser usado para implantar espaços militarizados, que evidentemente preocuparão outros povos.

“Não vejo que lógica haveria em supor que, em 2014, o mandado do Conselho de Segurança possa ser dado por cumprido... se ainda for necessário haver lá muitos soldados, dentro das bases militares. Não se entende que finalidade teriam as tais bases militares e, além disso, os EUA estão em contato com países da Ásia Central, pedindo que autorizem presença militar de longo prazo. NÓS [a Rússia] queremos entender o motivo disso tudo, por que as tais bases seriam necessárias. Não acreditamos que esse grande número de bases militares contribua para a estabilidade da região.”

Para Lavrov:

(1) O terrorismo não foi derrotado, no Afeganistão;

(2) Os terroristas estão sendo “empurrados” para regiões mais ao norte em relação aos pontos onde estão sendo infiltrados, “na direção de países vizinhos da Federação Russa na Ásia Central; e não se pode dizer que contribuam para aumentar a estabilidade nessa região”;

(3) As Forças Internacionais de Assistência, ISAF, estão usando para isso a chamada “Rede Norte de Distribuição”. E “nós [a Rússia] acreditamos que essa é nossa contribuição para que seja cumprido o mandado que as ISAF receberam do Conselho de Segurança da ONU. Assim sendo, “temos o direito de exigir” que as ISAF cumpram realmente a missão para a qual foram mandadas para lá, antes de as ISAF declararem, unilateralmente, que alguma “missão de combate” estaria cumprida.

O que Moscou está fazendo é declarar que o governo Obama já não pode ditar a trajetória dessa guerra. A entrevista de Lavrov foi cuidadosamente agendada: essa semana, o Conselho de Segurança da ONU examinará o mandado que deu às ISAF, para avaliar os resultados.

Moscou está acrescentando o Afeganistão à litania de questões em relação às quais adotará abordagem “muscular” – além do sistema de mísseis de defesa que os EUA planejam, da Síria e do Irã. Semana passada, Moscou anunciou que poderia oferecer à OTAN uma base militar em Ulyanovsk, no Volga, para ser usada como armazém temporário de trânsito ferroviário de suprimentos para os exércitos da OTAN-EUA.

Dempsey, comandante do Estado-maior das Forças Armadas dos EUA

O oferecimento dos russos mete o Pentágono e a OTAN num dilema. Do ponto de vista logístico, seria assegurar uma linha vital de suprimentos; mas do ponto de vista geopolítico, Washington ainda tentou considerar a única alternativa que restava. A alternativa era voltar a discutir com o Paquistão, tentando conseguir a reabertura de duas estradas cujo trânsito está fechado. Isso, exatamente, é o que o Comandante do Estado-maior dos EUA, Martin Dempsey acaba de fazer.

Dempsey disse, em entrevista ao “Charlie Rose Show” dia 16/3,[3] que Washington está em contato “diretamente” e “privadamente” com Rawalpindi e que “estou pessoalmente otimista, que podemos reset as relações, de modo que atenda às necessidades dos dois lados.” Mencionou o general Ashfaq Kayani, comandante do exército paquistanês, com o qual teria tido “conversas absolutamente francas, sinceras”. Kayani disse que “fará o que puder”.

Dempsey chegou a jogar até “a carta da Índia”. Disse que o principal desafio para os EUA seria conseguir que os militares paquistaneses cedessem na certeza, enraizada entre eles, de que a Índia é “grande ameaça existencial contra o Paquistão”. (O general nada disse sobre o que Washington planeja fazer para espantar os medos paquistaneses.)

Bem visivelmente, vários modelos sobrepõem-se essa semana. A Rússia planeja jogar a luva e desafiar a estratégia de Washington para o Afeganistão, no momento da avaliação/renovação, essa semana, do mandado que as ISAF-EUA obtiveram do Conselho de Segurança. Os EUA, por sua vez, esperam ansiosamente algum resultado positivo das eleições parlamentares em Islamabad, que leve o Paquistão a reassumir a parceria de sempre com os EUA. E enquanto isso, um terceiro vetor gira, pendurado no ar: a fúria dos afegãos contra o massacre de Panjwayi.

O melhor que pode acontecer é que os afegãos engulam a versão “Sargento Bales”. Bales permanece preso, confinado em cela solitária, no Fort Leavenworth, no Kansas. Por curiosa ironia, exatamente ali, naquele forte, os dois generais, Dempsey e Kayani, foram colegas de classe, na Escola de Estudos Militares Avançados – onde estudaram Teatro de Operações.

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[1] 13/3/2012, Huffington Post, Bernard-Henri Lévy, “In Afghanistan, Between Plague and Cholera, There's Dr. Abdullah”, em http://www.huffingtonpost.com/bernardhenri-levy/afghanistan-abdullah-abdullah_b_1341268.html