A dívida é uma escravidão. Vai destruir todos, se não a fizerem parar 5/12/2011, Michael Hudson, Frankfurter Algemeine Zeitung (ing. in Counterpunch)http://www.counterpunch.org/2011/12/02/debt-slavery-%E2%80%93-why-it-destroyed-rome-why-it-will-destroy-us-unless-it%E2%80%99s-stopped/
O Livro V da Política de Aristóteles descreve a eterna transição das oligarquias, que se convertem elas mesmas em aristocracias hereditárias – que terminam por ser derrubadas por tiranos ou desenvolvem rivalidades internas, quando algumas famílias decidem “cercar a multidão” no campo delas e abrem caminho para a democracia, dentro da qual uma oligarquia reemerge, seguida de aristocracia, depois democracia, sempre, ao longo da história.
A principal dinâmica que move essas derivas é a dívida – sempre com novas viradas e mudanças. A dívida polariza a riqueza, para criar uma classe de senhores do crédito, cujo governo oligárquico termina quando novos líderes (para Aristóteles, “tiranos”) ganham apoio popular porque cancelam as dívidas e redistribuem a propriedade, ou assumem, para o Estado, o usufruto da propriedade.
Contudo, desde o Renascimento, os banqueiros passaram a garantir apoio político às democracias. Não que isso reflita alguma convicção igualitária, ou convicções políticas liberais, mas, sim, porque os banqueiros entenderam que, nas democracias, seus empréstimos estão mais bem garantidos. Como James Steuart explicou em 1767, os empréstimos reais continuaram a ser negócio privado, muito mais do que dívidas públicas. Para que a dívida do soberano e o dever de pagá-la fossem distribuídos para toda a nação, os representantes eleitos criariam impostos, com os quais se pagariam os juros e encargos das dívidas dos reis.
Ao dar voz nos governos aos contribuintes, as democracias holandesa e britânica ofereceram aos emprestadores de dinheiro garantias muito mais firmes de pagamento das dívidas, do que, antes, os reis e príncipes tinham a oferecer, porque, então, as dívidas morriam com os devedores reais. Mas os recentes protestos populares, da Islândia à Grécia e Espanha começam a mostra aos emprestadores de dinheiro que não devem continuar a confiar na garantia democrática, razão pela qual já começam também a retirar seu apoio às democracias. Exigem já austeridade fiscal e privatizações ao ritmo de liquidação de queima de estoque.
Com isso, a finança internacional entra agora em modo de guerra. Seu objetivo é idêntico ao objetivo dos exércitos militares de conquista do passado: apropriar-se de terras, de recursos minerais e da infraestrutura comunal, e cobrar impostos sobre tudo. Em resposta, as democracias exigem referendos para decidir o que pagar e o que não pagar aos senhores do crédito, que lhes dão só liquidação de bens públicos e impostos sempre crescentes, para assim imporem o desemprego, reduzir salários e criar depressão econômica. A única alternativa é auditar as dívidas, ou, mesmo, anulá-las, e impor controle regulatório sobre o setor financeiro.
Governos do Oriente Próximo proclamaram novas regras para os devedores, para preservar o equilíbrio econômico
Cobrar juros nos empréstimos de bens ou dinheiro não foi pensado, no início, para polarizar as economias. O juro (de 20%, que em cinco anos dobrava o valor emprestado) foi inventado no início do 3º milênio a.C., como arranjo contratual entre os templos e palácios sumerianos com mercadores e empresários que, quase todos, trabalhavam na burocracia do reino. E visava a remunerar com justiça os riscos das viagens no comércio de longa distância, ou do empréstimo de terra e outros bens públicos, a serem usados para neles localizar oficinas, barcos e tavernas.
Quando a prática começou a ser privatizada por cobradores do rei, que recolhiam impostos sobre o uso ou aluguéis, “a divindade” dos reis protegia os devedores da terra. As leis de Hammurabi (c. 1750 a.C.) cancelavam as dívidas dos pobres em tempos de seca e de inundações. Todos os reis dessa dinastia babilônica começavam o seu primeiro dia no trono cancelando as dívidas agrárias, dispensavam o pagamento pelo arrendamento do ano e reiniciavam-se, do zero, todos os contratos. Direitos sobre a terra, sobre colheitas futuras e outros direitos eram devolvidos aos servos devedores para “restaurar a ordem” numa condição “original” idealizada de equilíbrio. Essa prática sobreviveu ao Ano do Jubileu da Lei de Moisés, e lê-se sobre ela em Levítico 25.
A lógica era bem clara. As sociedades antigas precisavam de exércitos em campo para defender a posse da terra, e, para encontrar soldados, era preciso liberar da servidão os cidadãos endividados. As leis de Hammurabi protegiam os que dirigiam carroças e carros, e outros combatentes, para que não fossem aprisionados na servidão das dívidas; e proibia os senhores do crédito de tomar as colheitas dos servos reais que vivessem em terras do rei ou de outras comunidades das quais se recrutavam a força de trabalho e os soldados do palácio.
No Egito, o faraó Bakenranef (c. 720-715 a.C., “Bocchoris”, em grego) proclamou uma anistia de todas as dívidas e aboliu a servidão das dívidas, quando teve de enfrentar ameaça militar da Etiópia. Segundo Deodoro da Sicilia (que escreveu nos anos 40-30 a.C.), Bakenranef determinou que, se um devedor se recusasse a pagar, a dívida seria anulada, se o credor não pudesse apresentar contrato escrito. (Os credores sempre exageraram o que lhes coubesse receber.) O faraó argumentou que “o corpo dos cidadãos deve pertencer ao Estado, para que o Estado dele se possa servir e receber o serviço devido pelos cidadãos ao Estado, em tempos de guerra e de paz. Porque entendia que seria absurdo um soldado (...) ser metido na prisão por um credor, por dívida não paga; e que a ganância de cidadãos privados, se isso fosse permitido, poria em risco a segurança de todos.”
O fato de que os principais credores no Oriente Próximo fossem o palácio, os templos e seus arrecadadores tornava politicamente muito fácil cancelar dívidas. Sempre se pode cancelar dívidas, se o credor é você mesmo. Até imperadores romanos queimaram registros de impostos devidos, para evitar crises. Mas muito mais difícil ficou cancelar dívidas devidas a credores privados, quando a prática de cobrar juros espalhou-se pelos reinos a oeste do Mediterrâneo, depois de, aproximadamente, os anos 750 a.C. Em vez de servir de ponte pelas quais as famílias acertavam os livros de entrada e saída, a dívida tornou-se principal alavanca para expropriação de terras, polarizando as comunidades entre oligarquias de credores, de um lado; e clientes endividados, de outro. Na Judeia, o profeta Isaías (5:8-9) denunciou despejos por credores que “somam casa a casa e somam campo a campo, até que não haja espaço para nada, e você fique sozinho na terra”.
Poder aos credores e crescimento estável raramente andaram juntos. Muitas dívidas pessoais nesse período clássico eram efeito de pequenas quantias de dinheiro emprestado a indivíduos que viviam no limite da subsistência e que nunca conseguiam fechar as contas. Garantias em terra e patrimônio – e em liberdade pessoal – forçaram os devedores inadimplentes a uma servidão que se tornou irreversível. À altura do século 7º a.C., os “tiranos” (líderes populares) emergiram, para derrubar as aristocracias em Corinto e outras ricas cidades gregas. E arregimentaram apoios, porque cancelavam dívidas. Em movimento menos tirânico, Sólon fundou a democracia ateniense, em 594 a.C., extinguindo a servidão por dívidas.
Mas as oligarquias reemergiram e apareceram em Roma, quando os reis egeus de Esparta, Cleomenes e seu sucessor Nabis, tentaram cancelar dívidas, no final do século 3º a.C. Ambos foram mortos, e seus apoiadores foram expulsos. É uma constante política na história, desde a antiguidade, que os interesses dos credores oponham-se, simultaneamente, às democracias populares e ao poder real capaz de limitar a conquista financeira da sociedade – conquista que se consuma quando os juros exigidos nas dívidas a receber passam a equivaler a todo o excedente que haja na economia.
Quando os irmãos Graco e seguidores tentaram reformar as leis do crédito em 133 a.C., a classe senatorial dominante agiu com violência; os irmãos Graco e seguidores foram mortos, e ali se iniciou um século de Guerra Social, só resolvida com a ascensão de Augusto, coroado imperador em 29 a.C.
A oligarquia romana dos credores vence a Guerra Social, escraviza populações e inaugura uma Idade das Trevas
Longe dali, as coisas eram mais sangrentas. Aristóteles não fala da construção dos impérios como parte de seu esquema político, mas conquistas estrangeiras sempre foram fatores importantes para impor dívidas, e dívidas de guerra sempre foram a principal causa das dívidas públicas em tempos modernos. A mais dura onda de endividamento aconteceu em Roma, cujos financistas espalharam-se como praga pela Ásia Menor, a mais próspera das províncias romanas. A ordem legal praticamente desapareceu, quando chegaram os “cavaleiros” financistas. Mitrídates de Pontus liderou três revoltas populares, e as populações locais em Éfeso e outras cidades levantaram-se e, segundo relatos, mataram 80 mil romanos em 88 a.C. O exército romano retaliou, e Sula impôs um tributo de guerra de 20 mil talentos em 84 a.C. Em 70 a.C., os juros já haviam multiplicado por seis aquele valor.
Dentre os principais historiadores romanos, Tito Lívio, Plutarco e Deodoro atribuíram a queda da República à intransigência dos credores, que insistiram em manter a Guerra Social, marcada por assassinatos políticos, de 133 a 29 a.C. Líderes populistas tentaram ganhar seguidores pregando o cancelamento das dívidas (p.ex., a conspiração de Catilina em 63-62 a.C). Foram mortos. No século 2º d.C., cerca de um quarto da população estava reduzida à servidão. No século 5º, a economia de Roma entrou em colapso, já completamente sem dinheiro. O campo regrediu à economia de subsistência.
Os credores encontram motivação legalista para apoiar a democracia parlamentar
Quando os banqueiros recuperaram-se, depois de os Cruzados terem saqueado Bizâncio, e distribuíram ouro e prata para reativar o comércio na Europa Ocidental, a oposição dos cristãos à “usura”, à cobrança de juros, foi superada por uma combinação de emprestadores prestigiados (os Cavaleiros Templários e a Ordem dos Hospitalários, que garantiam o crédito durante as Cruzadas) e seus grandes clientes – os reis, de início para pagar a Igreja, e em seguida, cada vez mais, para fazer guerras. Mas dívidas contraídas por reis iam-se por água abaixo quando os reis morriam. Os Bardi e os Peruzzi faliram, em 1345, quando o rei Eduardo III renegou suas dívidas de guerra. Famílias de banqueiros perderam ainda mais em empréstimos aos Habsburgo e aos Bourbon que ocupavam os tronos de Espanha, Áustria e França.
As coisas mudaram com a democracia holandesa, que buscava vencer e assegurar a própria liberdade contra a Espanha dos Habsburgo. O fato de que o parlamento holandês contraíra débitos públicos permanentes em nome do Estado permitiu que os Países Baixos tomassem empréstimos para pagar mercenários, numa época em que dinheiro e crédito eram alimento para as guerras. O acesso ao crédito “era proporcional à arma mais poderosa na luta pela liberdade”, escreveu Richard Ehrenberg em Capital and Finance in the Age of the Renaissance (1928): “Quem emprestava a um príncipe sabia que o pagamento da dívida dependia só de o devedor ter capacidade para pagar e vontade de pagar. No caso de cidades, tudo mudava; as cidades tinham poder, mas também eram formadas de corporações, associações de indivíduos mantidos ligados por um laço comum. Segundo a lei geralmente aceita, cada burguês individual era executável, seu corpo e suas propriedades, para ressarcimento de dívidas que a cidade não pagasse.”
A grande realização dos governos parlamentares, para o mundo da finança, foi, portanto, estabelecer dívidas que não eram meras obrigações de príncipes, mas realmente eram “públicas”, no sentido de que ligavam entre eles todos os cidadãos, independente de quem estivesse no trono. Por isso, as duas primeiras nações democráticas, os Países Baixos e a Grã-Bretanha depois de sua revolução de 1688, desenvolveram os mais ativos mercados financeiros e vieram a ser as potências militares dominantes. A ironia está em que foi a necessidade de financiar guerras que promoveu a democracia, formando uma trindade simbiótica entre fazer guerras, construir estruturas de crédito e construir democracias parlamentares que durou até nossos dias.
Naquele momento, “a posição legal do rei qua tomador de empréstimos era obscura, e não se sabia com certeza, sequer, se os credores teriam alguma arma contra o rei, em caso de calote” (Charles Wilson, England’s Apprenticeship: 1603-1763, 1965). Quanto mais despóticas iam-se tornando Espanha, Áustria e França, maior dificuldade encontravam para obter financiamento para suas aventuras militares. Ao final do século 18, a Áustria foi deixada “sem crédito e, consequentemente, sem muitas dívidas”, o país mais mal armado e menos confiável da Europa, do ponto de vista dos financistas, completamente dependente dos subsídios e garantias britânicos, ao tempo das Guerras Napoleônicas.
A finança acomoda-se na democracia, mas em seguida começa a pressionar na direção da oligarquia
Quando as reformas democráticas do século 19 reduziram o poder das aristocracias da terra para controlar os parlamentos, os banqueiros moveram-se agilmente na direção de uma relação simbiótica com praticamente qualquer tipo de governo. Na França, seguidores de Saint-Simon promoveram a ideia de os bancos atuarem como fundos mútuos, estendendo o crédito, contra a participação equitativa no lucro. O Estado germânico fez uma aliança com grandes bancos e a indústria pesada. Marx escreveu com otimismo sobre como o socialismo reduziria o parasitismo e tornaria produtivas as finanças. Nos EUA, a regulação dos bens públicos andou de mãos dadas com os retornos garantidos. Na China, Sun-Yat-Sen escreveu em 1922: “Pretendo converter todas as indústrias nacionais da China num Grande Trust, de propriedade do povo chinês e financiado com capital internacional para benefício mútuo.”
A 1ª Guerra Mundial viu os EUA substituírem a Grã-Bretanha como principal nação credora, e ao final da 2ª Guerra Mundial os EUA já haviam sequestrado cerca de 80% do ouro monetário do mundo. Seus diplomatas formataram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial por linhas orientadas pelos emprestadores que financiaram a dependência comercial, sobretudo nos EUA. Empréstimos para financiar o comércio e déficits na balança de pagamentos foram submetidos a “condicionalidades” que orientaram o planejamento econômico na direção de oligarquias clientes e ditaduras militares. A resposta democrática aos planos de austeridade resultantes que sangraram para fora dos países o serviço das dívidas nunca conseguiu ir muito além de “protestos contra o FMI”. Até que a Argentina deu calote na sua dívida externa.
Austeridade similar, também orientada para os interesses dos credores está agora sendo imposta à Europa pelo Banco Central Europeu (BCE) e pela burocracia da União Europeia (UE). Ostensivamente, governos social-democratas foram dirigidos para salvar os bancos, em vez de reviver o crescimento econômico e o emprego. Perdas em maus empréstimos bancários e especulações são incluídas no orçamento público, enquanto se reduz o gasto público e até se vende infraestrutura. A resposta dos contribuintes, confrontados com a dívida resultante tem-se resumido a protestos populares que começaram na Islândia e na Latvia em janeiro de 2009, e às mais amplas manifestações na Grécia e na Espanha, no outono passado, para protestar contra a recusa, pelos respectivos governos, a organizarem referendos para decidir sobre os malfadados “resgates” de acionistas de bancos estrangeiros.
O planejamento distancia-se dos representantes públicos eleitos e aproxima-se dos banqueiros
Todas as economias dependem de planejamento. Tradicionalmente, os governos planejam as economias, até abrir mão desse papel e, sob o slogan do “livre mercado”, entregam a tarefa de planejar a economia aos bancos. Mas o privilégio de planejar a criação e a alocação do crédito torna-se ainda mais centralizado do que quando essas tarefas cabiam a funcionários públicos eleitos. E, para piorar, o prazo financeiro é sempre curto prazo, bater-e-correr, e leva sempre a ‘torrar’ patrimônio. Ao buscar primeiro os próprios ganhos, os bancos tendem a destruir a economia. O excedente acaba por ser consumido pelo juro e outros encargos financeiros, deixando resto zero para capital de investimento ou gasto social básico.
Por isso, delegar a política de controle à classe dos donos do crédito raramente anda de mãos dadas com crescimento econômico e melhoria dos padrões de vida. A tendência das dívidas, de cresceram mais depressa que a capacidade das sociedades para pagar, tem sido constante básica em toda a história conhecida da humanidade. As dívidas crescem exponencialmente, absorvendo excedentes e reduzindo a maioria da população a servidão equivalente à do servo. Para restaurar o balanço econômico, o grito ancestral pelo cancelamento de dívidas buscou o que o Oriente Médio da Idade do Bronze quase conseguiu por Fiat dos reis: cancelar o crescimento das dívidas.
Em tempos mais modernos, as democracias exigiram Estado forte que impusesse taxas e impostos sobre a riqueza e a renda dos financistas, e, quando fosse preciso, para cancelar dívidas. É mais fácil de fazer quando o próprio Estado cria dinheiro e crédito. É menos fácil de fazer quando os bancos traduzem seus lucros em poder político. Quando os bancos sejam autorizados a se autorregular e têm poder para vetar regulações pelos governos, a economia sofre distorção, para permitir que os senhores do crédito metam-se nas jogatinas especulativas e na descarada fraude que marcaram a década passada. A queda do Império Romano mostra o que acontece quando nada controla as exigências dos senhores do crédito. Nessas condições, a alternativa de governos planejarem e regularem o setor financeiro converte-se em estrada direta para a servidão da dívida.
Finança vs. Governo; oligarquia vs. democracia
Democracia envolve subordinar a dinâmica financeira para servir ao equilíbrio econômico e ao crescimento – e taxar a renda financeira ou manter como propriedade pública os monopólios básicos. ‘Destaxar’ ou privatizar a renda da propriedade deixa a propriedade ‘desamparada’ ante a sanha dos bancos, para ser capitalizada em empréstimos cada vez maiores. Financiada pela alavancagem da dívida, a inflação dos preços aumenta a riqueza dos bancos e, no longo prazo, leva toda a economia ao endividamento. A economia encolhe e entra em “equidade negativa” [que ocorre quando o valor de mercado de um bem hipotecado é menor que a hipoteca ainda por pagar].
O setor financeiro ganhou influência suficiente para usá-la nessas emergências como uma oportunidade para convencer os governos de que a economia entrará em colapso se os governos não “salvarem os bancos”. Na prática, significa consolidar o controle dos bancos sobre a política, que os bancos usam de modo que polariza ainda mais as economias. O modelo básico é o que aconteceu na antiga Roma, quando se converteu, de democracia, em oligarquia. De fato, dar prioridade aos banqueiros e deixar o planejamento econômico entregue à União Europeia, ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional ameaça tirar do estado-nação o poder de cunhar moeda e aumentar impostos.
O conflito daí resultante implica jogar os interesses financeiros contra a autodeterminação dos estados. A ideia de que banco central independente seria “marca registrada das democracias” é eufemismo para o movimento pelo qual a mais importante ferramenta de decisão política – a capacidade para criar dinheiro e crédito – é delegada ao setor financeiro. Em vez de deixar a escolha política para o referendo popular, o resgate dos bancos organizado pela União Europeia e pelo Banco Central Europeu é, hoje, a mais refinada forma de aumentar o endividamento nacional. As dívidas dos bancos privados assumidas nos orçamentos do governo na Irlanda e na Grécia são hoje obrigações que pesam sobre os contribuintes. E é verdade também para os 13 trilhões a mais, na dívida dos EUA, desde setembro de 2008 (incluindo os $5,3 trilhões dos papéis podres no cofre de Fannie Mae e Freddie Mac em hipotecas ruins, que estão hoje no balanço do governo, e os $2 trilhões dos swaps cash-for-trash (dá-dinheiro-recebe-lixo) do Federal Reserve).
Tudo isso está sendo ditado por fantoches das finanças, chamados, eufemisticamente, de “tecnocratas”. Definido por lobbystas dos senhores do crédito, o papel desses “tecnocratas” é calcular quanto de desemprego e depressão é preciso criar para arrancar algum excedente para pagar as dívidas que, agora, são oficiais. É conta de autodestruição, porque, com a economia encolhida – deflação da dívida –, a dívida torna-se cada vez mais impagável.
Nem os bancos, nem as autoridades públicas (nem, sequer, os economistas das tendências dominantes na academia) calcularam em termos realistas a capacidade da economia para pagar – quer dizer, para pagar sem exaurir cada vez mais a economia. Usando para isso a empresa-imprensa e seus think-tanks, todos convenceram as populações de que o jeito mais rápido de enriquecer é tomar dinheiro emprestado para comprar propriedade, estoques e ações cujos preços estejam aumentando – inflados pelo crédito bancário – e voltar à taxação progressiva da riqueza, do século passado.
Dizendo claramente, o resultado é economia-lixo. O objetivo da economia-lixo é desarmar os controles públicos, passando o poder de planejar para as mãos da alta finança, sob o pretexto de que isso seria mais eficiente que os controles públicos. O planejamento e o poder de impor impostos entregues ao Estado são acusados de ser “o caminho da servidão”, como se “livres mercados” controlados por banqueiros que ninguém controla e livres para agir como lhes interesse não fosse alto planejamento, planejado por interesses, por métodos e vias oligárquicas, não democráticas. Dizem aos governos que “resgate” dívidas feitas, não como antigamente, para manter exércitos que defendiam as nações, mas, exclusivamente, para beneficiar a camada mais rica da população. E as perdas são transferidas para os contribuintes.
A evidência de que o desejo dos eleitores não está sendo levado em consideração põe as dívidas nacionais em terreno político pouco firme, pouco firme, também, em termos legais. Dívidas criadas ‘porque-sim’, por governos ou agências financeiras internacionais, que enfrentem forte oposição popular, podem sem tão ‘incobráveis’ quanto as dívidas dos Habsburgos e outros déspotas de outros tempos. Sem validação popular, aquelas dívidas podem morrer com o governo que as tenha assumido. Novos governos podem decidir, democraticamente, subordinar os setores bancário e financeiro e fazê-los servir à economia, não o contrário.
No mínimo, novos governos podem tentar saldar suas dívidas com a reintrodução do imposto progressivo sobre riqueza e renda, passando a carga fiscal para as costas da riqueza e da propriedade. Re-regular os bancos e oferecer alternativa pública para a obtenção de crédito e prestação de serviços bancários renovariam o programa social democrático que parecia estar num bom caminho há um século.
A Islândia e a Argentina são exemplos bem recentes, mas também se pode olhar a moratória nas dívidas entre os Aliados e as reparações alemãs em 1931. Estavam ativados ali matemática e um princípio político elementares: dívidas impagáveis nunca serão pagas.
A principal dinâmica que move essas derivas é a dívida – sempre com novas viradas e mudanças. A dívida polariza a riqueza, para criar uma classe de senhores do crédito, cujo governo oligárquico termina quando novos líderes (para Aristóteles, “tiranos”) ganham apoio popular porque cancelam as dívidas e redistribuem a propriedade, ou assumem, para o Estado, o usufruto da propriedade.
Contudo, desde o Renascimento, os banqueiros passaram a garantir apoio político às democracias. Não que isso reflita alguma convicção igualitária, ou convicções políticas liberais, mas, sim, porque os banqueiros entenderam que, nas democracias, seus empréstimos estão mais bem garantidos. Como James Steuart explicou em 1767, os empréstimos reais continuaram a ser negócio privado, muito mais do que dívidas públicas. Para que a dívida do soberano e o dever de pagá-la fossem distribuídos para toda a nação, os representantes eleitos criariam impostos, com os quais se pagariam os juros e encargos das dívidas dos reis.
Ao dar voz nos governos aos contribuintes, as democracias holandesa e britânica ofereceram aos emprestadores de dinheiro garantias muito mais firmes de pagamento das dívidas, do que, antes, os reis e príncipes tinham a oferecer, porque, então, as dívidas morriam com os devedores reais. Mas os recentes protestos populares, da Islândia à Grécia e Espanha começam a mostra aos emprestadores de dinheiro que não devem continuar a confiar na garantia democrática, razão pela qual já começam também a retirar seu apoio às democracias. Exigem já austeridade fiscal e privatizações ao ritmo de liquidação de queima de estoque.
Com isso, a finança internacional entra agora em modo de guerra. Seu objetivo é idêntico ao objetivo dos exércitos militares de conquista do passado: apropriar-se de terras, de recursos minerais e da infraestrutura comunal, e cobrar impostos sobre tudo. Em resposta, as democracias exigem referendos para decidir o que pagar e o que não pagar aos senhores do crédito, que lhes dão só liquidação de bens públicos e impostos sempre crescentes, para assim imporem o desemprego, reduzir salários e criar depressão econômica. A única alternativa é auditar as dívidas, ou, mesmo, anulá-las, e impor controle regulatório sobre o setor financeiro.
Governos do Oriente Próximo proclamaram novas regras para os devedores, para preservar o equilíbrio econômico
Cobrar juros nos empréstimos de bens ou dinheiro não foi pensado, no início, para polarizar as economias. O juro (de 20%, que em cinco anos dobrava o valor emprestado) foi inventado no início do 3º milênio a.C., como arranjo contratual entre os templos e palácios sumerianos com mercadores e empresários que, quase todos, trabalhavam na burocracia do reino. E visava a remunerar com justiça os riscos das viagens no comércio de longa distância, ou do empréstimo de terra e outros bens públicos, a serem usados para neles localizar oficinas, barcos e tavernas.
Quando a prática começou a ser privatizada por cobradores do rei, que recolhiam impostos sobre o uso ou aluguéis, “a divindade” dos reis protegia os devedores da terra. As leis de Hammurabi (c. 1750 a.C.) cancelavam as dívidas dos pobres em tempos de seca e de inundações. Todos os reis dessa dinastia babilônica começavam o seu primeiro dia no trono cancelando as dívidas agrárias, dispensavam o pagamento pelo arrendamento do ano e reiniciavam-se, do zero, todos os contratos. Direitos sobre a terra, sobre colheitas futuras e outros direitos eram devolvidos aos servos devedores para “restaurar a ordem” numa condição “original” idealizada de equilíbrio. Essa prática sobreviveu ao Ano do Jubileu da Lei de Moisés, e lê-se sobre ela em Levítico 25.
A lógica era bem clara. As sociedades antigas precisavam de exércitos em campo para defender a posse da terra, e, para encontrar soldados, era preciso liberar da servidão os cidadãos endividados. As leis de Hammurabi protegiam os que dirigiam carroças e carros, e outros combatentes, para que não fossem aprisionados na servidão das dívidas; e proibia os senhores do crédito de tomar as colheitas dos servos reais que vivessem em terras do rei ou de outras comunidades das quais se recrutavam a força de trabalho e os soldados do palácio.
No Egito, o faraó Bakenranef (c. 720-715 a.C., “Bocchoris”, em grego) proclamou uma anistia de todas as dívidas e aboliu a servidão das dívidas, quando teve de enfrentar ameaça militar da Etiópia. Segundo Deodoro da Sicilia (que escreveu nos anos 40-30 a.C.), Bakenranef determinou que, se um devedor se recusasse a pagar, a dívida seria anulada, se o credor não pudesse apresentar contrato escrito. (Os credores sempre exageraram o que lhes coubesse receber.) O faraó argumentou que “o corpo dos cidadãos deve pertencer ao Estado, para que o Estado dele se possa servir e receber o serviço devido pelos cidadãos ao Estado, em tempos de guerra e de paz. Porque entendia que seria absurdo um soldado (...) ser metido na prisão por um credor, por dívida não paga; e que a ganância de cidadãos privados, se isso fosse permitido, poria em risco a segurança de todos.”
O fato de que os principais credores no Oriente Próximo fossem o palácio, os templos e seus arrecadadores tornava politicamente muito fácil cancelar dívidas. Sempre se pode cancelar dívidas, se o credor é você mesmo. Até imperadores romanos queimaram registros de impostos devidos, para evitar crises. Mas muito mais difícil ficou cancelar dívidas devidas a credores privados, quando a prática de cobrar juros espalhou-se pelos reinos a oeste do Mediterrâneo, depois de, aproximadamente, os anos 750 a.C. Em vez de servir de ponte pelas quais as famílias acertavam os livros de entrada e saída, a dívida tornou-se principal alavanca para expropriação de terras, polarizando as comunidades entre oligarquias de credores, de um lado; e clientes endividados, de outro. Na Judeia, o profeta Isaías (5:8-9) denunciou despejos por credores que “somam casa a casa e somam campo a campo, até que não haja espaço para nada, e você fique sozinho na terra”.
Poder aos credores e crescimento estável raramente andaram juntos. Muitas dívidas pessoais nesse período clássico eram efeito de pequenas quantias de dinheiro emprestado a indivíduos que viviam no limite da subsistência e que nunca conseguiam fechar as contas. Garantias em terra e patrimônio – e em liberdade pessoal – forçaram os devedores inadimplentes a uma servidão que se tornou irreversível. À altura do século 7º a.C., os “tiranos” (líderes populares) emergiram, para derrubar as aristocracias em Corinto e outras ricas cidades gregas. E arregimentaram apoios, porque cancelavam dívidas. Em movimento menos tirânico, Sólon fundou a democracia ateniense, em 594 a.C., extinguindo a servidão por dívidas.
Mas as oligarquias reemergiram e apareceram em Roma, quando os reis egeus de Esparta, Cleomenes e seu sucessor Nabis, tentaram cancelar dívidas, no final do século 3º a.C. Ambos foram mortos, e seus apoiadores foram expulsos. É uma constante política na história, desde a antiguidade, que os interesses dos credores oponham-se, simultaneamente, às democracias populares e ao poder real capaz de limitar a conquista financeira da sociedade – conquista que se consuma quando os juros exigidos nas dívidas a receber passam a equivaler a todo o excedente que haja na economia.
Quando os irmãos Graco e seguidores tentaram reformar as leis do crédito em 133 a.C., a classe senatorial dominante agiu com violência; os irmãos Graco e seguidores foram mortos, e ali se iniciou um século de Guerra Social, só resolvida com a ascensão de Augusto, coroado imperador em 29 a.C.
A oligarquia romana dos credores vence a Guerra Social, escraviza populações e inaugura uma Idade das Trevas
Longe dali, as coisas eram mais sangrentas. Aristóteles não fala da construção dos impérios como parte de seu esquema político, mas conquistas estrangeiras sempre foram fatores importantes para impor dívidas, e dívidas de guerra sempre foram a principal causa das dívidas públicas em tempos modernos. A mais dura onda de endividamento aconteceu em Roma, cujos financistas espalharam-se como praga pela Ásia Menor, a mais próspera das províncias romanas. A ordem legal praticamente desapareceu, quando chegaram os “cavaleiros” financistas. Mitrídates de Pontus liderou três revoltas populares, e as populações locais em Éfeso e outras cidades levantaram-se e, segundo relatos, mataram 80 mil romanos em 88 a.C. O exército romano retaliou, e Sula impôs um tributo de guerra de 20 mil talentos em 84 a.C. Em 70 a.C., os juros já haviam multiplicado por seis aquele valor.
Dentre os principais historiadores romanos, Tito Lívio, Plutarco e Deodoro atribuíram a queda da República à intransigência dos credores, que insistiram em manter a Guerra Social, marcada por assassinatos políticos, de 133 a 29 a.C. Líderes populistas tentaram ganhar seguidores pregando o cancelamento das dívidas (p.ex., a conspiração de Catilina em 63-62 a.C). Foram mortos. No século 2º d.C., cerca de um quarto da população estava reduzida à servidão. No século 5º, a economia de Roma entrou em colapso, já completamente sem dinheiro. O campo regrediu à economia de subsistência.
Os credores encontram motivação legalista para apoiar a democracia parlamentar
Quando os banqueiros recuperaram-se, depois de os Cruzados terem saqueado Bizâncio, e distribuíram ouro e prata para reativar o comércio na Europa Ocidental, a oposição dos cristãos à “usura”, à cobrança de juros, foi superada por uma combinação de emprestadores prestigiados (os Cavaleiros Templários e a Ordem dos Hospitalários, que garantiam o crédito durante as Cruzadas) e seus grandes clientes – os reis, de início para pagar a Igreja, e em seguida, cada vez mais, para fazer guerras. Mas dívidas contraídas por reis iam-se por água abaixo quando os reis morriam. Os Bardi e os Peruzzi faliram, em 1345, quando o rei Eduardo III renegou suas dívidas de guerra. Famílias de banqueiros perderam ainda mais em empréstimos aos Habsburgo e aos Bourbon que ocupavam os tronos de Espanha, Áustria e França.
As coisas mudaram com a democracia holandesa, que buscava vencer e assegurar a própria liberdade contra a Espanha dos Habsburgo. O fato de que o parlamento holandês contraíra débitos públicos permanentes em nome do Estado permitiu que os Países Baixos tomassem empréstimos para pagar mercenários, numa época em que dinheiro e crédito eram alimento para as guerras. O acesso ao crédito “era proporcional à arma mais poderosa na luta pela liberdade”, escreveu Richard Ehrenberg em Capital and Finance in the Age of the Renaissance (1928): “Quem emprestava a um príncipe sabia que o pagamento da dívida dependia só de o devedor ter capacidade para pagar e vontade de pagar. No caso de cidades, tudo mudava; as cidades tinham poder, mas também eram formadas de corporações, associações de indivíduos mantidos ligados por um laço comum. Segundo a lei geralmente aceita, cada burguês individual era executável, seu corpo e suas propriedades, para ressarcimento de dívidas que a cidade não pagasse.”
A grande realização dos governos parlamentares, para o mundo da finança, foi, portanto, estabelecer dívidas que não eram meras obrigações de príncipes, mas realmente eram “públicas”, no sentido de que ligavam entre eles todos os cidadãos, independente de quem estivesse no trono. Por isso, as duas primeiras nações democráticas, os Países Baixos e a Grã-Bretanha depois de sua revolução de 1688, desenvolveram os mais ativos mercados financeiros e vieram a ser as potências militares dominantes. A ironia está em que foi a necessidade de financiar guerras que promoveu a democracia, formando uma trindade simbiótica entre fazer guerras, construir estruturas de crédito e construir democracias parlamentares que durou até nossos dias.
Naquele momento, “a posição legal do rei qua tomador de empréstimos era obscura, e não se sabia com certeza, sequer, se os credores teriam alguma arma contra o rei, em caso de calote” (Charles Wilson, England’s Apprenticeship: 1603-1763, 1965). Quanto mais despóticas iam-se tornando Espanha, Áustria e França, maior dificuldade encontravam para obter financiamento para suas aventuras militares. Ao final do século 18, a Áustria foi deixada “sem crédito e, consequentemente, sem muitas dívidas”, o país mais mal armado e menos confiável da Europa, do ponto de vista dos financistas, completamente dependente dos subsídios e garantias britânicos, ao tempo das Guerras Napoleônicas.
A finança acomoda-se na democracia, mas em seguida começa a pressionar na direção da oligarquia
Quando as reformas democráticas do século 19 reduziram o poder das aristocracias da terra para controlar os parlamentos, os banqueiros moveram-se agilmente na direção de uma relação simbiótica com praticamente qualquer tipo de governo. Na França, seguidores de Saint-Simon promoveram a ideia de os bancos atuarem como fundos mútuos, estendendo o crédito, contra a participação equitativa no lucro. O Estado germânico fez uma aliança com grandes bancos e a indústria pesada. Marx escreveu com otimismo sobre como o socialismo reduziria o parasitismo e tornaria produtivas as finanças. Nos EUA, a regulação dos bens públicos andou de mãos dadas com os retornos garantidos. Na China, Sun-Yat-Sen escreveu em 1922: “Pretendo converter todas as indústrias nacionais da China num Grande Trust, de propriedade do povo chinês e financiado com capital internacional para benefício mútuo.”
A 1ª Guerra Mundial viu os EUA substituírem a Grã-Bretanha como principal nação credora, e ao final da 2ª Guerra Mundial os EUA já haviam sequestrado cerca de 80% do ouro monetário do mundo. Seus diplomatas formataram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial por linhas orientadas pelos emprestadores que financiaram a dependência comercial, sobretudo nos EUA. Empréstimos para financiar o comércio e déficits na balança de pagamentos foram submetidos a “condicionalidades” que orientaram o planejamento econômico na direção de oligarquias clientes e ditaduras militares. A resposta democrática aos planos de austeridade resultantes que sangraram para fora dos países o serviço das dívidas nunca conseguiu ir muito além de “protestos contra o FMI”. Até que a Argentina deu calote na sua dívida externa.
Austeridade similar, também orientada para os interesses dos credores está agora sendo imposta à Europa pelo Banco Central Europeu (BCE) e pela burocracia da União Europeia (UE). Ostensivamente, governos social-democratas foram dirigidos para salvar os bancos, em vez de reviver o crescimento econômico e o emprego. Perdas em maus empréstimos bancários e especulações são incluídas no orçamento público, enquanto se reduz o gasto público e até se vende infraestrutura. A resposta dos contribuintes, confrontados com a dívida resultante tem-se resumido a protestos populares que começaram na Islândia e na Latvia em janeiro de 2009, e às mais amplas manifestações na Grécia e na Espanha, no outono passado, para protestar contra a recusa, pelos respectivos governos, a organizarem referendos para decidir sobre os malfadados “resgates” de acionistas de bancos estrangeiros.
O planejamento distancia-se dos representantes públicos eleitos e aproxima-se dos banqueiros
Todas as economias dependem de planejamento. Tradicionalmente, os governos planejam as economias, até abrir mão desse papel e, sob o slogan do “livre mercado”, entregam a tarefa de planejar a economia aos bancos. Mas o privilégio de planejar a criação e a alocação do crédito torna-se ainda mais centralizado do que quando essas tarefas cabiam a funcionários públicos eleitos. E, para piorar, o prazo financeiro é sempre curto prazo, bater-e-correr, e leva sempre a ‘torrar’ patrimônio. Ao buscar primeiro os próprios ganhos, os bancos tendem a destruir a economia. O excedente acaba por ser consumido pelo juro e outros encargos financeiros, deixando resto zero para capital de investimento ou gasto social básico.
Por isso, delegar a política de controle à classe dos donos do crédito raramente anda de mãos dadas com crescimento econômico e melhoria dos padrões de vida. A tendência das dívidas, de cresceram mais depressa que a capacidade das sociedades para pagar, tem sido constante básica em toda a história conhecida da humanidade. As dívidas crescem exponencialmente, absorvendo excedentes e reduzindo a maioria da população a servidão equivalente à do servo. Para restaurar o balanço econômico, o grito ancestral pelo cancelamento de dívidas buscou o que o Oriente Médio da Idade do Bronze quase conseguiu por Fiat dos reis: cancelar o crescimento das dívidas.
Em tempos mais modernos, as democracias exigiram Estado forte que impusesse taxas e impostos sobre a riqueza e a renda dos financistas, e, quando fosse preciso, para cancelar dívidas. É mais fácil de fazer quando o próprio Estado cria dinheiro e crédito. É menos fácil de fazer quando os bancos traduzem seus lucros em poder político. Quando os bancos sejam autorizados a se autorregular e têm poder para vetar regulações pelos governos, a economia sofre distorção, para permitir que os senhores do crédito metam-se nas jogatinas especulativas e na descarada fraude que marcaram a década passada. A queda do Império Romano mostra o que acontece quando nada controla as exigências dos senhores do crédito. Nessas condições, a alternativa de governos planejarem e regularem o setor financeiro converte-se em estrada direta para a servidão da dívida.
Finança vs. Governo; oligarquia vs. democracia
Democracia envolve subordinar a dinâmica financeira para servir ao equilíbrio econômico e ao crescimento – e taxar a renda financeira ou manter como propriedade pública os monopólios básicos. ‘Destaxar’ ou privatizar a renda da propriedade deixa a propriedade ‘desamparada’ ante a sanha dos bancos, para ser capitalizada em empréstimos cada vez maiores. Financiada pela alavancagem da dívida, a inflação dos preços aumenta a riqueza dos bancos e, no longo prazo, leva toda a economia ao endividamento. A economia encolhe e entra em “equidade negativa” [que ocorre quando o valor de mercado de um bem hipotecado é menor que a hipoteca ainda por pagar].
O setor financeiro ganhou influência suficiente para usá-la nessas emergências como uma oportunidade para convencer os governos de que a economia entrará em colapso se os governos não “salvarem os bancos”. Na prática, significa consolidar o controle dos bancos sobre a política, que os bancos usam de modo que polariza ainda mais as economias. O modelo básico é o que aconteceu na antiga Roma, quando se converteu, de democracia, em oligarquia. De fato, dar prioridade aos banqueiros e deixar o planejamento econômico entregue à União Europeia, ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional ameaça tirar do estado-nação o poder de cunhar moeda e aumentar impostos.
O conflito daí resultante implica jogar os interesses financeiros contra a autodeterminação dos estados. A ideia de que banco central independente seria “marca registrada das democracias” é eufemismo para o movimento pelo qual a mais importante ferramenta de decisão política – a capacidade para criar dinheiro e crédito – é delegada ao setor financeiro. Em vez de deixar a escolha política para o referendo popular, o resgate dos bancos organizado pela União Europeia e pelo Banco Central Europeu é, hoje, a mais refinada forma de aumentar o endividamento nacional. As dívidas dos bancos privados assumidas nos orçamentos do governo na Irlanda e na Grécia são hoje obrigações que pesam sobre os contribuintes. E é verdade também para os 13 trilhões a mais, na dívida dos EUA, desde setembro de 2008 (incluindo os $5,3 trilhões dos papéis podres no cofre de Fannie Mae e Freddie Mac em hipotecas ruins, que estão hoje no balanço do governo, e os $2 trilhões dos swaps cash-for-trash (dá-dinheiro-recebe-lixo) do Federal Reserve).
Tudo isso está sendo ditado por fantoches das finanças, chamados, eufemisticamente, de “tecnocratas”. Definido por lobbystas dos senhores do crédito, o papel desses “tecnocratas” é calcular quanto de desemprego e depressão é preciso criar para arrancar algum excedente para pagar as dívidas que, agora, são oficiais. É conta de autodestruição, porque, com a economia encolhida – deflação da dívida –, a dívida torna-se cada vez mais impagável.
Nem os bancos, nem as autoridades públicas (nem, sequer, os economistas das tendências dominantes na academia) calcularam em termos realistas a capacidade da economia para pagar – quer dizer, para pagar sem exaurir cada vez mais a economia. Usando para isso a empresa-imprensa e seus think-tanks, todos convenceram as populações de que o jeito mais rápido de enriquecer é tomar dinheiro emprestado para comprar propriedade, estoques e ações cujos preços estejam aumentando – inflados pelo crédito bancário – e voltar à taxação progressiva da riqueza, do século passado.
Dizendo claramente, o resultado é economia-lixo. O objetivo da economia-lixo é desarmar os controles públicos, passando o poder de planejar para as mãos da alta finança, sob o pretexto de que isso seria mais eficiente que os controles públicos. O planejamento e o poder de impor impostos entregues ao Estado são acusados de ser “o caminho da servidão”, como se “livres mercados” controlados por banqueiros que ninguém controla e livres para agir como lhes interesse não fosse alto planejamento, planejado por interesses, por métodos e vias oligárquicas, não democráticas. Dizem aos governos que “resgate” dívidas feitas, não como antigamente, para manter exércitos que defendiam as nações, mas, exclusivamente, para beneficiar a camada mais rica da população. E as perdas são transferidas para os contribuintes.
A evidência de que o desejo dos eleitores não está sendo levado em consideração põe as dívidas nacionais em terreno político pouco firme, pouco firme, também, em termos legais. Dívidas criadas ‘porque-sim’, por governos ou agências financeiras internacionais, que enfrentem forte oposição popular, podem sem tão ‘incobráveis’ quanto as dívidas dos Habsburgos e outros déspotas de outros tempos. Sem validação popular, aquelas dívidas podem morrer com o governo que as tenha assumido. Novos governos podem decidir, democraticamente, subordinar os setores bancário e financeiro e fazê-los servir à economia, não o contrário.
No mínimo, novos governos podem tentar saldar suas dívidas com a reintrodução do imposto progressivo sobre riqueza e renda, passando a carga fiscal para as costas da riqueza e da propriedade. Re-regular os bancos e oferecer alternativa pública para a obtenção de crédito e prestação de serviços bancários renovariam o programa social democrático que parecia estar num bom caminho há um século.
A Islândia e a Argentina são exemplos bem recentes, mas também se pode olhar a moratória nas dívidas entre os Aliados e as reparações alemãs em 1931. Estavam ativados ali matemática e um princípio político elementares: dívidas impagáveis nunca serão pagas.