quinta-feira, dezembro 01, 2011

 O Irã não é (ainda) o monstro que tem sido pintado
Washington não se cansa de denunciar o Irã como fonte de quase todo o mal no Oriente Médio. Arábia Saudita e seus aliados sunitas veem a mão tenebrosa de Teerã por trás dos protestos no Bahrain e na Província Leste da Arábia Saudita, rica em petróleo. Dado que as últimas forças dos EUA devem estar fora do Iraque ao final do ano, já se diz também que há a ameaça de o Iraque ser convertido em peão dos iranianos.

Essa demonização do Irã parece estar construindo o cenário para um ataque militar contra o país, que virá dos EUA ou de Israel ou de ambos. A construção de propaganda é muito semelhante à que se viu contra Saddam Hussein do Iraque em 2002. Nos dois casos, um estado isolado, com recursos limitados é apresentado como perigo real para a região e para o mundo.

Teorias conspiracionais, não raras vezes cômicas têm recebido o aval de credibilidade do estado norte-americano, como no caso do suposto complô em que um vendedor de carros iraniano-norte-americano do Texas, estaria a serviço dos Guardas Revolucionários Iranianos, para assassinar o embaixador saudita em Washington. O programa nuclear iraniano é apresentado como ameaça, exatamente como as inexistentes armas de destruição em massa que Saddam Hussein teria armazenadas, e armas que, como depois se viu, nunca existiram.

Nesse contexto, houve susto generalizado quando um conhecido e respeitado advogado egípcio-norte-americano, Cherif Bassiouni, que presidiu a Comissão Independente do Bahrain que investigou os levantes do início do ano, declara, sem meias palavras, em relatório de 500 páginas divulgado semana passada, que não há qualquer prova de qualquer tipo de envolvimento do Irã nos eventos do Bahrain[1]. A família real do Bahrain e os monarcas do Golfo não têm nem admitem qualquer dúvida de que, sim, os xiitas iranianos estiveram por trás do levante popular no Bahrain. O medo de uma intervenção militar iraniana foi a justificativa que o Bahrain apresentou para enviar pesada força militar saudita, de 1.500 soldados armados e tanques, que, dia 14 de março passado, atacou furiosamente os manifestantes nas ruas do Bahrain. O Bahrain conseguiu até que navios de guerra do Kuwait passassem a patrulhar as costas da ilha, como medida para impedir que o Irã tentasse entregar armas aos manifestantes xiitas pró-democracia.

Não vale a pena duvidar de que os reis e emires do golfo creem sinceramente em suas próprias teorias conspiracionais. Muitos dos que foram torturados durante a brutal repressão no Bahrain já repetiram inúmeras vezes que os torturadores insistiam em perguntar sobre suas relações com o Irã. Médicos de meia idade foram forçados a assinar confissões em que admitiram participar de um complô revolucionário iraniano. Depois de receber o relatório de Bassiouni, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa disse que, embora seu governo não pudesse produzir provas irrefutáveis, o papel de Teerã teria sido “muito claro, para quem tenha olhos e ouvidos”.

A mesma paranóia sobre o Irã consome os sunitas em todo o Oriente Médio. Um dissidente do Bahrain, que fugiu para o Qatar no início desse ano, contou-me que “as pessoas no Qatar só fazem perguntar se havia um túnel entre a Rotatória da Pérola (onde se reuniram os manifestantes) e o Irã. É piada, sim, mas só em parte.”

A identificação do ativismo político xiita com o Irã, na mente dos sunitas, é hoje profunda demais para ser facilmente apagada. Semana passada, ressurgiram os protestos entre os dois milhões de xiitas na Arábia Saudita, principalmente na Província Leste. Os tumultos começaram quando um jovem de 19 anos, Nasser al-Mheishi, foi assassinado num dos pontos de controle em Qatif – conforme relato de Hamza al-Hassan, ativista oposicionista. Nasser diz que a ira popular foi despertada pelas autoridades no posto de controle que, durante várias horas, impediram que o corpo do rapaz fosse entregue à família. Como no passado, o ministro saudita do Interior disse que o confronto entre policiais e manifestantes fora “ordenado por chefes que vivem fora do país” – expressão que o estado saudita sempre usa como sinônimo de “Irã”.

A oposição saudita diz que comentários postados na Internet e no Twitter por sauditas não xiitas parecem já não manifestar a convicção de antes. “Estamos diante das muralhas de fogo” – escreveu uma mulher, pictoricamente.

Tudo leva a crer que os protestos na Província Leste da Arábia Saudita recrudescerão. Como em outros pontos do mundo árabe, os jovens já não obedecem aos líderes políticos tradicionais. Os monarcas sauditas e bahrainis podem culpar a televisão iraniana por insuflar a revolta, mas o que realmente põe em fogo os xiitas é o que veem pelo YouTube ou leem pela Internet e Twitter. O que de fato influencia os que protestam é muito menos o Irã e muito mais o exemplo de jovens em tudo semelhantes a eles mesmos, que exigem direitos políticos e civis, nas ruas, no Cairo e na Síria.

No ano da Primavera Árabe, o modo saudita tradicional de usar notáveis locais para controlar as coisas já não funciona. Semana passada, vários líderes locais reclamaram ao governador da Província Leste, príncipe Mohammad bin Fahd – que os convocava para uma reunião em Dammam, capital provincial –, que já não conseguiam persuadir as pessoas a porem fim aos protestos, porque já haviam pedido moderação no início do ano, mas nada receberam em troca, então, em termos de concessões do governo saudita, em relação ao fim da discriminação contra os xiitas. Há prisioneiros xiitas que continuam presos, sem julgamento, desde 1996.

Na Arábia Saudita e no Bahrain, a crença inabalável de que há mão iraniana por trás dos protestos levou os dois governos a cometer um erro muito grave. Convenceram-se de que enfrentam ameaça revolucionária quando, de fato, os xiitas bahrainis e sauditas dar-se-iam por satisfeitos com partilha mais equitativa das oportunidades de emprego, cargos no governo e enquadramento mais equitativo também no mundo do comércio. Os xiitas querem ser aceitos no clube; não querem incendiar o clube. Ao se recusarem a ver isso, os monarcas sauditas e bahrainis trabalham contra a estabilidade de seus próprios estados.

O Irã jamais foi tão poderoso quanto o pintam seus inimigos ou quanto o próprio Irã gostaria de ser. Em muitos sentidos, a demonização dos líderes iranianos como ameaça regional contribui para inflar a ambição iraniana: o Irã sempre sonhou, isso sim, com poder apresentar-se como potência regional. Na prática, a retórica belicista do Irã sempre veio combinada com uma política externa extremamente cautelosa e muito cuidadosamente arquitetada.

O presidente George W Bush e Tony Blair sempre falaram do Irã como se existisse só para tentar desestabilizar o governo do Iraque. Sempre foi rematada tolice, uma vez que nada jamais agradaria tanto Teerã quanto assistir à destruição de Saddam Hussein, velho inimigo dos iranianos, e vê-lo substituído por governo iraquiano eleito dominado pelos partidos religiosos xiitas. O ministro das Relações Exteriores do Iraque, Hoshyar Zebari, costumava dizer que achava divertido, nas conferências internacionais nas quais havia representantes de EUA e Irã, ver os dois lados denunciarem-se furiosamente, um ao outro, pelos estragos que teriam feito no Iraque, e, imediatamente depois, ouvir, dos mesmos norte-americanos e iranianos, discursos muito semelhantes de apoio ao governo iraquiano.

Será que os iranianos se movimentarão para preencher o vácuo que se criará depois que os EUA partirem do Iraque? Não há dúvida de que a importância dos EUA no Iraque diminuirá muito sem a presença dos soldados e porque, doravante, gastarão menos dinheiro no país. Pela primeira vez, por exemplo, os gastos com a polícia secreta (mukhabarat) não aparecem no orçamento do Iraque, porque sempre foram inteiramente pagos pela CIA.

É ingenuidade acreditar em alguma inevitável dominação iraniana no Iraque: há outros atores muito mais poderosos em cena, como Turquia e Arábia Saudita. Os xiitas iraquianos seguem tradição e crenças marcadamente diferentes dos xiitas iranianos. E os curdos e sunitas sempre se oporiam. Se o Irã exagerar, como fizeram os EUA em 2003, rapidamente se porá como alvo de uma horda de inimigos.

No Bahrain, na Arábia Saudita e no Iraque, o papel no Irã como agente que teria provocado os tumultos populares, foi completamente inventado ou, no mínimo, foi muito exagerado. Tratar manifestantes desarmados e pacíficos como se fossem revolucionários que agiriam em nome do Irã é uma dessas ‘profecias’ que se podem facilmente autocumprir. Da próxima vez, os mesmos reformadores cansados e frustrados, sim, talvez procurem ajuda externa
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