27/12/2011, Pepe Escobar (entrevistado por Lars Schall), Consortium News
http://consortiumnews.com/2011/12/27/shifting-ground-for-vital-resources/
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A disputa por petróleo, água e outros recursos intensifica-se, as relações globais mudam, criando o pano de fundo para uma cadeia de conflitos, do Iraque à Líbia. Pepe Escobar, jornalista nascido no Brasil e um dos mais sensíveis analistas dessas tendências, fala aqui, em entrevista ao jornalista alemão Lars Schall.
Lars Schall: Pepe Escobar, dada sua experiência nesse campo, qual, em sua opinião, o principal mal-entendido que se constata na opinião pública em geral, relacionado à chamada “Guerra ao Terror”?
Pepe Escobar: A “Guerra ao Terror” foi história-de-capa e cobertura para um “Choque de Civilizações” e uma guerra fria oculta, mas que talvez ‘esquente’, entre os EUA e seus dois concorrentes estratégicos, China e Rússia. Os EUA não poderiam atacar diretamente nenhum desses dois países membros do grupo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os países emergentes].
Lembremos que antes da “Guerra ao Terror” e depois da queda do Muro de Berlim, os norte-americanos tentavam definir quem seria seu próximo inimigo. Fazia falta um inimigo externo pré-fabricado – antes, foram a União Soviética, a Cortina de Ferro e o demônio do comunismo. Depois que o demônio foi derrotado pela realpolitik – OK, quem é o próximo?
Primeiro, pensaram na China, mas disseram “não, não podemos tomar a China, é uma grande potência, tem armas nucleares. Com a Rússia, a mesma coisa. E os russos estão agindo bem, há lá um fantoche, no Kremlin, Boris Yeltsin, privatizando tudo feito louco e saqueando os recursos da Rússia, hipoteticamente a favor das corporações ocidentais”. Foi assim, até que [Vladimir] Putin virou tudo isso de ponta cabeça.
Assim, a “Guerra ao Terror” pareceu perfeita, porque o Islã pôde ser rotulado como o inimigo. E o 11/9 não poderia ter sido mais conveniente, porque então, embora o conceito já existisse desde antes, havia o ‘fator Pearl Harbor’. A “Guerra ao Terror” foi conceito que pôde ser vendido não só ao público norte-americano, mas, também, à opinião pública mundial. Mas a agenda oculta, por baixo da “Guerra ao Terror” global, que o Pentágono chama de “A Longa Guerra” – guerra infinita – é, de fato, a emergência de duas potências que são ameaça real e grave aos EUA, Rússia e China.
A Rússia, basicamente porque tem armas atômicas. Naquele momento, sequer pensavam na Rússia como grande exportador de petróleo e gás – foi antes de Putin ter reorganizado a Gazprom, que viria a tornar-se a principal empresa internacional de petróleo e gás.
E a China, a qual, naquele momento, há 10 anos, os americanos viam como ainda desorganizada, talvez enfrentando alguma revolta camponesa, sabe-se lá! Fato é que os EUA não pensavam na China, naquele momento, como concorrente de peso. Hoje, claro, a China tem 3,2 trilhões de dólares norte-americanos nas suas reservas, além dos papéis do Tesouro do EUA etc.
11/9 foi pretexto perfeito, mas, por baixo, oculta, intensificou-se a disputa para chegar às reservas de energia do Golfo Persa e da Ásia Central. E os EUA tinham o plano máster dos neoconservadores. É o mesmo plano que – por difícil que seja acreditar –, está sendo implantado hoje. Esse plano implica desestabilizar esse “Arco de Instabilidade” – expressão cunhada, claro, pelo Pentágono –, do Maghreb pelo norte da África pelo Oriente Médio e direto até a Ásia Central via Afeganistão/Paquistão – que é a intersecção entre a Ásia Central e o Sul da Ásia – até a fronteira da China, em Xinjiang.
Eles precisavam implantar sua estratégica, que foi concebida em sua forma final, depois do 11/9. É a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” do Pentágono, tema sobre o qual você jamais lerá na imprensa dominante nos EUA ou na Europa.
Desde 2002, a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” é doutrina oficial do Pentágono. É intrinsecamente ligada à Segurança Nacional dos EUA: temos de ser principal potência, não só em terra, mar e ar, mas também no ciberespaço e no espaço sideral. Essa é a essência da doutrina da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”.
[Ver, por exemplo, GARAMONE, Jim (American Forces Press Service): “Joint Vision 2020 Emphazises Full Spectrum Dominance“, 2/6/2000, Departamento de Defesa dos EUA, em http://www.defense.gov/news/newsarticle.aspx?id=45289]
Está sendo aplicada agora, depois da “Primavera Árabe”. E é inacreditável que ninguém, absolutamente, fale sobre isso. Todos se puseram a falar de uma “Primavera Árabe”, que é termo impreciso, porque faz crer que os árabes tenham estado adormecidos ao longo dos últimos cem anos, e estivessem ‘despertando’ – o que não é verdade. A palavra “Primavera” não é a palavra certa. Eu diria que estamos assistindo a um processo de maior consciência das classes trabalhadoras e classes médias na Tunísia, no Egito, no Bahrain e também em outras partes do Oriente Médio.
E, em seguida, veio a contrarrevolução, e esse processo contrarrevolucionário está levando diretamente à implantação de outras etapas da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”. Adiante, podemos voltar a falar sobre isso.
O que estou querendo dizer, basicamente, é que a contrarrevolução, orquestrada pelos EUA e, especialmente, pela Casa de Saud, reinstrumentalizou o que aconteceu na Tunísia e no Egito. Dispararam a contrarrevolução no Golfo Persa e hoje tentam subornar a ditadura militar no Egito para mantê-la lá como ditadura militar. Já deram quase 4 bilhões de dólares à junta militar chefiada por Tantawi, e mais dinheiro virá da Arábia Saudita. Enquanto isso, os EUA, na Ásia Central, tentam reorganizar-se, porque se deram conta de que estão perdendo terreno – e para quem seria? – para China e Rússia.
Isso está acontecendo ao ritmo de novos negócios de petróleo e gás que estão sendo construídos entre China e Rússia, entre o Turcomenistão e a China, e também entre todos esses atores e o Irã – Rússia e China já mantêm cooperação bem próxima com o Irã nos campos de petróleo e gás. Então, disseram os americanos, “OK. Como, então, reorganizamos a coisa toda?”
Do modo como o Pentágono vê o mundo, a “Guerra ao Terror” está mais ou menos acabada para todas as suas finalidades práticas. E volta a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”: “os EUA temos de controlar tudo”. Significa controlar o Mar Mediterrâneo como “lago da OTAN”, projeto que já implementaram na Líbia e hoje tentam implementar na Síria; controlar o resto da África, enviar tropas para Uganda, como Obama fez há poucas semanas. Mas não se trata só de Uganda; trata-se de todo o coração da África Central, Uganda, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Congo – muito petróleo, muitos minérios, muitas terras raras, todos esses recursos extremamente valiosos.
O Ocidente não pode estar ausente, e os EUA têm de manter-se no controle (“esqueçam a China”). Tudo isso implica ampliar o Comando dos EUA na África (AFRICOM), cuja sede está ainda em Stuttgart, Alemanha, mas logo, provavelmente, será transferida para Benghazi, Líbia.
Há poucos dias, conversei com gente da União Europeia em Bruxelas, dissidentes inteligentes que não concordam com o que está sendo feito lá. Disseram-me off the record que, sim, haverá uma base militar na Líbia; e que o plano sempre foi esse, desde o início.
Haverá muitos ‘coturnos em terra’, coturnos europeus, turcos, do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos, aqueles mercenários que estão sendo treinados pela empresa Blackwater – hoje, empresa Xe – nos Emirados Árabes Unidos. Todos esses farão parte daquela base, que será a base que a OTAN e o AFRICOM desejavam implantar no norte da África.
Na minha opinião, a principal resposta à sua pergunta é: a “Guerra ao Terror” foi cortina de fumaça que durou mais ou menos dez anos. Hoje, todos eles – o Pentágono, a CIA, o FBI, a Agência de Segurança Nacional, o governo Obama, todos eles – já dizem aos quatro ventos: “a al-Qaeda está operacionalmente desativada” (palavras deles).
Praticamente morreram todos, exceto al-Zawahiri e o novo chefe nomeado para o comando militar, mas nem lembro seu nome, e muda a cada semana. Morreram praticamente todos, já não estão no Afeganistão, têm poucos instrutores nas áreas tribais nos Waziristões, não estão operativos no resto do mundo. Mas, sim, estão no poder, hoje, em Trípoli, porque foram usados pelo ocidente. O pessoal de Benghazi foi treinado num campo militar ao norte de Kabul.
Estive lá no início de 2001; havia muitos líbios. E, sim, aqueles líbios são o Grupo de Combatentes Líbios Islâmicos [orig. Libyan Islamic Fighting Group, LIFG]. Foram treinados naquele campo ao norte de Kabul (e nem foi difícil chegar até lá). Hoje, estão no poder na Líbia. O comandante militar de Trípoli, Abdelhakim Belhadj, e seus homens, muito bem armados, militarmente muito bem treinados, não arredarão pé de lá. Esses jihadis ligados à al-Qaeda deixaram-se manipular pelo ocidente, sem oferecer qualquer resistência.
Você diria que a al-Qaeda, hoje um fantasma da força real que teve ‘nos bons velhos tempos’, foi usada como instrumento da política exterior dos EUA?
Pepe Escobar: Sim, sem dúvida foi! Foi a desculpa perfeita, porque não se afastaram do plano para tentar implementar a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” em todos os pontos nos quais conseguissem implementá-la. Estiveram muito ativos na Ásia Central – até há cerca de dois anos –, desde o governo Bush.
Não esqueça que Cheney visitava a Ásia Central a cada dois, três meses, naquela época. Os EUA tentaram negociar diretamente com os cazaques, com os turcomanos e, especialmente, com o Azerbaijão – a elite do Azerbaijão tem muitos laços com os Republicanos nos EUA. Dick Cheney esteve lá muitas vezes.
E o embaixador especial do governo Bush, que ainda trabalha para o governo Obama, Richard Morningstar, ‘embaixador do petróleo’, a serviço de Washington na Ásia Central, conhece muito bem todos os personagens. Os EUA tentaram pressioná-los para que não negociassem com os russos, nem com a China, para que deixassem de lado o Irã e negociassem com os norte-americanos. E está acontecendo o quê? Eles negociaram com a Rússia, negociaram com a China, não deixaram de lado o Irã e absolutamente não estão negociando com os EUA.
Em geral, as pessoas esperam, se você faz guerra, que você deseje vencer a guerra. Mas não é o que se vê na Ásia Central, cenário de guerras perpétuas. Manter esse cenário naquela região traria algumas vantagens para o “complexo petróleo-militar” (expressão do economista James K. Galbraith), em relação a China e Rússia?
[Sobre a expressão “complexo petróleo-militar”, ver GALBRAITH, James K., “Unbearable Costs of Empire”, orig. The American Prospect magazine, Nov. 2002, inThird World Travelor, http://www.thirdworldtraveler.com/American_Empire/Unbearable_Costs_Empire.html].
Lars Schall: Pepe Escobar, dada sua experiência nesse campo, qual, em sua opinião, o principal mal-entendido que se constata na opinião pública em geral, relacionado à chamada “Guerra ao Terror”?
Pepe Escobar: A “Guerra ao Terror” foi história-de-capa e cobertura para um “Choque de Civilizações” e uma guerra fria oculta, mas que talvez ‘esquente’, entre os EUA e seus dois concorrentes estratégicos, China e Rússia. Os EUA não poderiam atacar diretamente nenhum desses dois países membros do grupo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os países emergentes].
Lembremos que antes da “Guerra ao Terror” e depois da queda do Muro de Berlim, os norte-americanos tentavam definir quem seria seu próximo inimigo. Fazia falta um inimigo externo pré-fabricado – antes, foram a União Soviética, a Cortina de Ferro e o demônio do comunismo. Depois que o demônio foi derrotado pela realpolitik – OK, quem é o próximo?
Primeiro, pensaram na China, mas disseram “não, não podemos tomar a China, é uma grande potência, tem armas nucleares. Com a Rússia, a mesma coisa. E os russos estão agindo bem, há lá um fantoche, no Kremlin, Boris Yeltsin, privatizando tudo feito louco e saqueando os recursos da Rússia, hipoteticamente a favor das corporações ocidentais”. Foi assim, até que [Vladimir] Putin virou tudo isso de ponta cabeça.
Assim, a “Guerra ao Terror” pareceu perfeita, porque o Islã pôde ser rotulado como o inimigo. E o 11/9 não poderia ter sido mais conveniente, porque então, embora o conceito já existisse desde antes, havia o ‘fator Pearl Harbor’. A “Guerra ao Terror” foi conceito que pôde ser vendido não só ao público norte-americano, mas, também, à opinião pública mundial. Mas a agenda oculta, por baixo da “Guerra ao Terror” global, que o Pentágono chama de “A Longa Guerra” – guerra infinita – é, de fato, a emergência de duas potências que são ameaça real e grave aos EUA, Rússia e China.
A Rússia, basicamente porque tem armas atômicas. Naquele momento, sequer pensavam na Rússia como grande exportador de petróleo e gás – foi antes de Putin ter reorganizado a Gazprom, que viria a tornar-se a principal empresa internacional de petróleo e gás.
E a China, a qual, naquele momento, há 10 anos, os americanos viam como ainda desorganizada, talvez enfrentando alguma revolta camponesa, sabe-se lá! Fato é que os EUA não pensavam na China, naquele momento, como concorrente de peso. Hoje, claro, a China tem 3,2 trilhões de dólares norte-americanos nas suas reservas, além dos papéis do Tesouro do EUA etc.
11/9 foi pretexto perfeito, mas, por baixo, oculta, intensificou-se a disputa para chegar às reservas de energia do Golfo Persa e da Ásia Central. E os EUA tinham o plano máster dos neoconservadores. É o mesmo plano que – por difícil que seja acreditar –, está sendo implantado hoje. Esse plano implica desestabilizar esse “Arco de Instabilidade” – expressão cunhada, claro, pelo Pentágono –, do Maghreb pelo norte da África pelo Oriente Médio e direto até a Ásia Central via Afeganistão/Paquistão – que é a intersecção entre a Ásia Central e o Sul da Ásia – até a fronteira da China, em Xinjiang.
Eles precisavam implantar sua estratégica, que foi concebida em sua forma final, depois do 11/9. É a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” do Pentágono, tema sobre o qual você jamais lerá na imprensa dominante nos EUA ou na Europa.
Desde 2002, a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” é doutrina oficial do Pentágono. É intrinsecamente ligada à Segurança Nacional dos EUA: temos de ser principal potência, não só em terra, mar e ar, mas também no ciberespaço e no espaço sideral. Essa é a essência da doutrina da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”.
[Ver, por exemplo, GARAMONE, Jim (American Forces Press Service): “Joint Vision 2020 Emphazises Full Spectrum Dominance“, 2/6/2000, Departamento de Defesa dos EUA, em http://www.defense.gov/news/newsarticle.aspx?id=45289]
Está sendo aplicada agora, depois da “Primavera Árabe”. E é inacreditável que ninguém, absolutamente, fale sobre isso. Todos se puseram a falar de uma “Primavera Árabe”, que é termo impreciso, porque faz crer que os árabes tenham estado adormecidos ao longo dos últimos cem anos, e estivessem ‘despertando’ – o que não é verdade. A palavra “Primavera” não é a palavra certa. Eu diria que estamos assistindo a um processo de maior consciência das classes trabalhadoras e classes médias na Tunísia, no Egito, no Bahrain e também em outras partes do Oriente Médio.
E, em seguida, veio a contrarrevolução, e esse processo contrarrevolucionário está levando diretamente à implantação de outras etapas da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”. Adiante, podemos voltar a falar sobre isso.
O que estou querendo dizer, basicamente, é que a contrarrevolução, orquestrada pelos EUA e, especialmente, pela Casa de Saud, reinstrumentalizou o que aconteceu na Tunísia e no Egito. Dispararam a contrarrevolução no Golfo Persa e hoje tentam subornar a ditadura militar no Egito para mantê-la lá como ditadura militar. Já deram quase 4 bilhões de dólares à junta militar chefiada por Tantawi, e mais dinheiro virá da Arábia Saudita. Enquanto isso, os EUA, na Ásia Central, tentam reorganizar-se, porque se deram conta de que estão perdendo terreno – e para quem seria? – para China e Rússia.
Isso está acontecendo ao ritmo de novos negócios de petróleo e gás que estão sendo construídos entre China e Rússia, entre o Turcomenistão e a China, e também entre todos esses atores e o Irã – Rússia e China já mantêm cooperação bem próxima com o Irã nos campos de petróleo e gás. Então, disseram os americanos, “OK. Como, então, reorganizamos a coisa toda?”
Do modo como o Pentágono vê o mundo, a “Guerra ao Terror” está mais ou menos acabada para todas as suas finalidades práticas. E volta a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”: “os EUA temos de controlar tudo”. Significa controlar o Mar Mediterrâneo como “lago da OTAN”, projeto que já implementaram na Líbia e hoje tentam implementar na Síria; controlar o resto da África, enviar tropas para Uganda, como Obama fez há poucas semanas. Mas não se trata só de Uganda; trata-se de todo o coração da África Central, Uganda, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Congo – muito petróleo, muitos minérios, muitas terras raras, todos esses recursos extremamente valiosos.
O Ocidente não pode estar ausente, e os EUA têm de manter-se no controle (“esqueçam a China”). Tudo isso implica ampliar o Comando dos EUA na África (AFRICOM), cuja sede está ainda em Stuttgart, Alemanha, mas logo, provavelmente, será transferida para Benghazi, Líbia.
Há poucos dias, conversei com gente da União Europeia em Bruxelas, dissidentes inteligentes que não concordam com o que está sendo feito lá. Disseram-me off the record que, sim, haverá uma base militar na Líbia; e que o plano sempre foi esse, desde o início.
Haverá muitos ‘coturnos em terra’, coturnos europeus, turcos, do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos, aqueles mercenários que estão sendo treinados pela empresa Blackwater – hoje, empresa Xe – nos Emirados Árabes Unidos. Todos esses farão parte daquela base, que será a base que a OTAN e o AFRICOM desejavam implantar no norte da África.
Na minha opinião, a principal resposta à sua pergunta é: a “Guerra ao Terror” foi cortina de fumaça que durou mais ou menos dez anos. Hoje, todos eles – o Pentágono, a CIA, o FBI, a Agência de Segurança Nacional, o governo Obama, todos eles – já dizem aos quatro ventos: “a al-Qaeda está operacionalmente desativada” (palavras deles).
Praticamente morreram todos, exceto al-Zawahiri e o novo chefe nomeado para o comando militar, mas nem lembro seu nome, e muda a cada semana. Morreram praticamente todos, já não estão no Afeganistão, têm poucos instrutores nas áreas tribais nos Waziristões, não estão operativos no resto do mundo. Mas, sim, estão no poder, hoje, em Trípoli, porque foram usados pelo ocidente. O pessoal de Benghazi foi treinado num campo militar ao norte de Kabul.
Estive lá no início de 2001; havia muitos líbios. E, sim, aqueles líbios são o Grupo de Combatentes Líbios Islâmicos [orig. Libyan Islamic Fighting Group, LIFG]. Foram treinados naquele campo ao norte de Kabul (e nem foi difícil chegar até lá). Hoje, estão no poder na Líbia. O comandante militar de Trípoli, Abdelhakim Belhadj, e seus homens, muito bem armados, militarmente muito bem treinados, não arredarão pé de lá. Esses jihadis ligados à al-Qaeda deixaram-se manipular pelo ocidente, sem oferecer qualquer resistência.
Você diria que a al-Qaeda, hoje um fantasma da força real que teve ‘nos bons velhos tempos’, foi usada como instrumento da política exterior dos EUA?
Pepe Escobar: Sim, sem dúvida foi! Foi a desculpa perfeita, porque não se afastaram do plano para tentar implementar a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” em todos os pontos nos quais conseguissem implementá-la. Estiveram muito ativos na Ásia Central – até há cerca de dois anos –, desde o governo Bush.
Não esqueça que Cheney visitava a Ásia Central a cada dois, três meses, naquela época. Os EUA tentaram negociar diretamente com os cazaques, com os turcomanos e, especialmente, com o Azerbaijão – a elite do Azerbaijão tem muitos laços com os Republicanos nos EUA. Dick Cheney esteve lá muitas vezes.
E o embaixador especial do governo Bush, que ainda trabalha para o governo Obama, Richard Morningstar, ‘embaixador do petróleo’, a serviço de Washington na Ásia Central, conhece muito bem todos os personagens. Os EUA tentaram pressioná-los para que não negociassem com os russos, nem com a China, para que deixassem de lado o Irã e negociassem com os norte-americanos. E está acontecendo o quê? Eles negociaram com a Rússia, negociaram com a China, não deixaram de lado o Irã e absolutamente não estão negociando com os EUA.
Em geral, as pessoas esperam, se você faz guerra, que você deseje vencer a guerra. Mas não é o que se vê na Ásia Central, cenário de guerras perpétuas. Manter esse cenário naquela região traria algumas vantagens para o “complexo petróleo-militar” (expressão do economista James K. Galbraith), em relação a China e Rússia?
[Sobre a expressão “complexo petróleo-militar”, ver GALBRAITH, James K., “Unbearable Costs of Empire”, orig. The American Prospect magazine, Nov. 2002, inThird World Travelor, http://www.thirdworldtraveler.com/American_Empire/Unbearable_Costs_Empire.html].
Pepe Escobar: Sim, mas o problema é que o ‘complexo’ não conhece os atores com os quais está lidando. O ‘complexo’ não considera fatores culturais, esquece, por exemplo, que os turcomanos são muito independentes e sempre preferirão negociar com interlocutores que falem a língua deles – o russo. Se Medvedev vai a Ashgabat, para conversar com o presidente Berdimuhamedov, e fala russo, a probabilidade de que se fechem negócios é muito maior.
Quanto aos chineses, vão a Ashgabat e dizem: construiremos qualquer coisa que vocês queiram que seja construída; construímos, nós mesmos, os gasodutos e oleodutos. Façam-nos um bom preço pelo gás de vocês e amanhã nós construiremos esse gasoduto, do leste do Turcomenistão ao oeste da China. Foi exatamente o que já fizeram e, há dois anos, o gasoduto já foi inaugurado. Aplica-se também aos africanos: a China negocia sem pré-condições e sem qualquer interferência na política interna dos outros países.
Durante algum tempo, os norte-americanos tentaram essa via, como com o Uzbequistão e aquele presidente que cozinha o próprio povo, Islam Karimov. Estiveram em negociações bem íntimas, com o governo Bush, e os EUA tiveram uma base militar em Karimabad, cidade próxima da fronteira afegã, e que foi muito útil para os norte-americanos. Mas depois se puseram a criticar os direitos humanos no Uzbequistão. O que disseram os uzbeques? Adeus base militar! Os uzbeques são parte do óleo-gasoduto que vai do Turcomenistão à China, via Uzbequistão. Os EUA mudaram um pouco de tática, mas, no fim, perderam a disputa.
Até que, afinal, os EUA começaram a perceber que perderam terreno para a Rússia e para a China, para ambos os países, na Ásia Central. Então trataram de se reposicionar no Golfo Persa, no norte da África e também dentro da África. A Líbia terá grande serventia para novas explorações de gás e petróleo. Os líbios dizem que manterão os contratos vigentes com os italianos – há um oleoduto do norte da Líbia até a Sicília, e há o óleo exportado para a Itália. Mas os novos contratos irão todos para a empresa Total, para a British Petroleum (BP) e para os norte-americanos, não para russos e chineses.
A Líbia foi, é e continuará a ser muito lucrativa para as majors ocidentais, as empresas ocidentais gigantes da energia. Na Ásia Central, a única esperança das majors é o Azerbaijão, porque as majors mais ou menos controlam os negócios de energia no Azerbaijão e, como já disse, as elites do Azerbaijão operam, basicamente, como satrapias de Washington. O problema é que as majors não controlam o Turcomenistão.
Estão pressionando o Turcomenistão, para construir o oleogasoduto Nabucco. Mas Nabucco custará uma fortuna, cerca de 20 bilhões de euros, e ninguém sabe de onde virá esse dinheiro, sobretudo agora, com a crise europeia.
Os turcomanos dizem que podem fornecer gás suficiente, mas ninguém sabe se eles têm de fato todo esse gás, porque estão fornecendo gás ao Irã, vendem muito gás para a China e continuam a vender gás pelo velho gasoduto soviético. Nabucco precisará de muito gás, e ninguém sabe se o Turcomenistão terá tanto gás. E os turcomanos dizem: vocês têm de provar que já reuniram os financiamentos necessários para o gasoduto, que pode ser construído nos próximos três ou quatro anos; enquanto não mostrarem o dinheiro, não podemos comprometer, nesse gasoduto, as nossas reservas de gás.
Isso significa que, se o Turcomenistão não tiver gás suficiente, os europeus terão de buscar o gás noutro lugar, e não poderá ser no Azerbaijão, a menos que gastem mais de 22 bilhões de dólares em novos investimentos.
Enquanto todos estão emperrados em negociações difíceis, os russos já construíram dois oleogasodutos: o North Stream e o South Stream. Putin está vencendo a guerra contra o projeto Nabucco, porque começou antes e negociou antes com os governos de Gerhard Schröder na Alemanha, para a construção do North Stream; e com o governo de Silvio Berlusconi na Itália, para a construção do South Stream. Esses dois oleogasodutos, um no norte e outro no sul, estão derrotando o projeto Nabucco, para o qual o dinheiro ainda não apareceu; não se sabe de onde poderá vir; não se sabe se o projeto encontrará todo o gás de que precisa para ser comercialmente rentável; e não se sabe onde encontrarão esse gás, se não for nem no Turcomenistão nem no Azerbaijão. A Turquia também quer para ela boa parte do gás, além dos impostos que poderá arrecadar pelo trânsito do gás por território turco. A confusão é completa, por ali.
Continuo a ler os pronunciamentos oficiais sobre Nabucco (o consórcio tem sede em Viena). A cada um, dois meses, aparece novo comunicado: que vai começar, que já têm os 20 bilhões de euros, que estará construído em 2017, a construção começará no próximo ano –, mas é o mesmo que dizem há cinco anos, se não me engano com as datas.
Outro problema central é o tráfico de ópio/heroína no Afeganistão. O que você tem observado, o que pensa desse problema? Quem são os principais players desse comércio? Você também entende que todo esse caso é uma vergonha para o ocidente?
Pepe Escobar: Ah, sim. Um dos principais players nesse comércio sempre foi Ahmed Ali Karzai, irmão do presidente Hamid Karzai do Afeganistão. Encontrei-o depois do 11/9 em Quetta – ele sempre viveu em Quetta, sua base perfeita. Quetta é cidade fascinante. Costumo dizer que é a capital do contrabando e do tráfico de drogas de todo o oriente – e não é dizer pouco, porque Quetta compete com Hong Kong; de fato, compete com todos, com os russos, com a máfia ucraniana.
Em Quetta há uma máfia de transportes, uma máfia de heroína, e, a partir de Quetta todas aquelas redes começam a diversificar-se. Uma rede atravessa o norte do Paquistão e chega ao Tadjiquistão; outra rede bifurca-se no Tadjiquistão e avança na direção da Ásia Central e, dali, avança até a Turquia.
E há as redes do ópio paquistanesas/afegãs e outra rede no Tadjiquistão que só cuida do refino. Todos, na região, sabem que essa é a rede da CIA. O que ainda não se conhece precisamente é o traçado, a trajetória, dessa rede. O mais provável é que parta do Afeganistão pelo Uzbequistão para chegar à Turquia, ou, talvez parta do Uzbequistão. Naquela parte do mundo, cada grupo tem sua rede de tráfico.
Que eu saiba, as máfias chinesas não têm rede no Afeganistão, mas, provavelmente, logo terão. Mas esse já é um problema terrível para os russos. Se se pergunta a funcionários russos qual o principal problema em relação ao Afeganistão, todos dizem a mesma coisa: a droga está em guerra contra nós; a origem dessa guerra é o ópio afegão. O número de russos mortos por causas associadas à heroína já é maior que as baixas que os russos sofreram na guerra do Afeganistão, nos anos 1980s.
Pepe Escobar: Você tem toda a razão. Os russos falam muito sobre isso na Organização de Cooperação de Xangai. Não se trata só de manter as bases norte-americanas fora daquela área – como os chineses também desejam manter. Os russos precisam também encontrar um modo de desmontar essas máfias do ópio, de drogas. É grave problema para a Rússia – como, aliás, também é grave problema para o Irã.
Para o Irã, por causa dos refugiados afegãos. Os refugiados afegãos moveram-se para o leste do Irã, basicamente. Se você vai a Mashhad, no leste do Irã, e visita os subúrbios de Mashhad... Ali é o centro do ópio; é o centro do contrabando do ópio. Atravessam o Afeganistão, via Herat, de Herat a Mashhad, hoje as estradas são excelentes, uma viagem de no máximo sete horas; e de Mashhad distribuem o ópio por todo o Irã. O problema das drogas também é grave no Irã. O Irã já é membro observador da Organização de Cooperação de Xangai, e uma das principais razões pelas quais o Irã interessou-se pela OCX é tentar criar um mecanismo regional capaz de combater eficazmente o tráfico de drogas, uma real guerra ao tráfico naquela região. Aqueles países estão sofrendo terrivelmente.
Sendo assim, a heroína já está sendo processada no Afeganistão, não apenas plantada e colhida ali. Uma pergunta que sempre faço a mim mesmo: e quem fornece os materiais químicos necessários ao refino e processamento? Que eu saiba, não há fábricas de anidrido acético no Afeganistão, há?
Pepe Escobar: Honestamente, não sei. Mas acho que, sim, pode haver, provavelmente há, ajuda externa envolvida nessa produção. É verdade. No Afeganistão o refino é simplesmente impossível. As refinarias costumavam ser instaladas no Tadjiquistão ou no Paquistão, em Quetta, por exemplo, ou em Dushanbe no Tadjiquistão. O povo do vale do Panjshir tem contato com o tráfico, tudo está concentrado em Dushanbe, 40 minutos ao norte do Afeganistão, por helicóptero (e eles têm seus próprios helicópteros). Portanto, sim, eu diria que recebem ajuda externa. E, claro, a especulação sempre aparece: o ocidente estará ali, ajudando o tráfico?
Não é acaso, que tantos especulem na mesma direção: onde há recursos energéticos e/ou tráfico de drogas ilícitas (p.ex. América do Sul, Ásia Central, Sudeste Asiático), os militares e a inteligência dos EUA nunca estão longe...
Pepe Escobar: É, estão, sim, por toda a parte. Embora, hoje, já não possam andar como antes pela América do Sul, em função do que acontece por lá, digamos, desde 2002.
Foi um terremoto geopolítico, de fato: os sul-americanos, pela primeira vez na história do continente (depois da eleição, primeiro do presidente Chávez na Venezuela, e depois do presidente Lula no Brasil em 2002, depois no Equador e até no Uruguai e até com a eleição de Kirschner na Argentina), afinal decidiram. “OK. Agora, vamos agir juntos, agora que tantos governos eleitos por aqui são de centro-esquerda ou são, pelo menos nominalmente, governos progressistas.
Vamos pôr ordem na casa”, disseram os sul-americanos; “vamos nos organizar através da Unasul, por exemplo, a União dos Países Sul-Americanos; e do Mercosul, que é uma união de trocas e comércio regional. E vamos tentar resistir diretamente à interferência dos norte-americanos”. E isso, precisamente, é o que hoje se vê. Lembre que, em 2002, o presidente Chávez da Venezuela escapou de um golpe, organizado diretamente de Washington (e há muitas provas disso, até na Internet. Eva Golinger, advogada venezuelana-norte-americana, escreveu livros excelentes sobre aquele golpe). Em 2007, os EUA tentaram desestabilizar a Bolívia; e houve mais um golpe fracassado no Equador, há pouco mais de um ano.
Quero dizer: não está acontecendo como acontecia antes na América do Sul, porque agora, ali, há unidade política, econômica e geopolítica.
Mas que ninguém duvide: se o Pentágono encontrar uma abertura pela qual possa outra vez tentar intervir diretamente na Venezuela, eles tentarão de novo. O problema é que, agora, há especialistas russos na Venezuela, há empresários e especialistas chineses, e iranianos com interesses locais, na Venezuela. A Venezuela deixou de ser país que só negociava na América do Sul, embora, sim, tenham muitos negócios com Brasil, Argentina etc. Mas hoje a Venezuela vende também ao outro lado do mundo; e negocia diretamente com os dois principais concorrentes estratégicos dos EUA, além de o presidente Chávez ser amigo muito ativo da nêmesis dos EUA, o Irã. São mudanças muito significativas, que explicam muita coisa.
Desde 2002, a América do Sul está transformada em problema gigante para o Pentágono. Não surpreende que aqueles doidos que disputam a indicação a candidato dos Republicanos, tenham dito, no último debate televisionado, que o Hamás e o Hezbollah estão infiltrados por todos os cantos na América do Sul; que os EUA têm de precaver-se contra a América do Sul, porque os EUA já esqueceram que há muitos comunistas e terroristas na América do Sul. Mas o quadro mudou muito na América Latina, e não há nada de novo no que os EUA dizem. [Continua]
Quanto aos chineses, vão a Ashgabat e dizem: construiremos qualquer coisa que vocês queiram que seja construída; construímos, nós mesmos, os gasodutos e oleodutos. Façam-nos um bom preço pelo gás de vocês e amanhã nós construiremos esse gasoduto, do leste do Turcomenistão ao oeste da China. Foi exatamente o que já fizeram e, há dois anos, o gasoduto já foi inaugurado. Aplica-se também aos africanos: a China negocia sem pré-condições e sem qualquer interferência na política interna dos outros países.
Durante algum tempo, os norte-americanos tentaram essa via, como com o Uzbequistão e aquele presidente que cozinha o próprio povo, Islam Karimov. Estiveram em negociações bem íntimas, com o governo Bush, e os EUA tiveram uma base militar em Karimabad, cidade próxima da fronteira afegã, e que foi muito útil para os norte-americanos. Mas depois se puseram a criticar os direitos humanos no Uzbequistão. O que disseram os uzbeques? Adeus base militar! Os uzbeques são parte do óleo-gasoduto que vai do Turcomenistão à China, via Uzbequistão. Os EUA mudaram um pouco de tática, mas, no fim, perderam a disputa.
Até que, afinal, os EUA começaram a perceber que perderam terreno para a Rússia e para a China, para ambos os países, na Ásia Central. Então trataram de se reposicionar no Golfo Persa, no norte da África e também dentro da África. A Líbia terá grande serventia para novas explorações de gás e petróleo. Os líbios dizem que manterão os contratos vigentes com os italianos – há um oleoduto do norte da Líbia até a Sicília, e há o óleo exportado para a Itália. Mas os novos contratos irão todos para a empresa Total, para a British Petroleum (BP) e para os norte-americanos, não para russos e chineses.
A Líbia foi, é e continuará a ser muito lucrativa para as majors ocidentais, as empresas ocidentais gigantes da energia. Na Ásia Central, a única esperança das majors é o Azerbaijão, porque as majors mais ou menos controlam os negócios de energia no Azerbaijão e, como já disse, as elites do Azerbaijão operam, basicamente, como satrapias de Washington. O problema é que as majors não controlam o Turcomenistão.
Estão pressionando o Turcomenistão, para construir o oleogasoduto Nabucco. Mas Nabucco custará uma fortuna, cerca de 20 bilhões de euros, e ninguém sabe de onde virá esse dinheiro, sobretudo agora, com a crise europeia.
Os turcomanos dizem que podem fornecer gás suficiente, mas ninguém sabe se eles têm de fato todo esse gás, porque estão fornecendo gás ao Irã, vendem muito gás para a China e continuam a vender gás pelo velho gasoduto soviético. Nabucco precisará de muito gás, e ninguém sabe se o Turcomenistão terá tanto gás. E os turcomanos dizem: vocês têm de provar que já reuniram os financiamentos necessários para o gasoduto, que pode ser construído nos próximos três ou quatro anos; enquanto não mostrarem o dinheiro, não podemos comprometer, nesse gasoduto, as nossas reservas de gás.
Isso significa que, se o Turcomenistão não tiver gás suficiente, os europeus terão de buscar o gás noutro lugar, e não poderá ser no Azerbaijão, a menos que gastem mais de 22 bilhões de dólares em novos investimentos.
Enquanto todos estão emperrados em negociações difíceis, os russos já construíram dois oleogasodutos: o North Stream e o South Stream. Putin está vencendo a guerra contra o projeto Nabucco, porque começou antes e negociou antes com os governos de Gerhard Schröder na Alemanha, para a construção do North Stream; e com o governo de Silvio Berlusconi na Itália, para a construção do South Stream. Esses dois oleogasodutos, um no norte e outro no sul, estão derrotando o projeto Nabucco, para o qual o dinheiro ainda não apareceu; não se sabe de onde poderá vir; não se sabe se o projeto encontrará todo o gás de que precisa para ser comercialmente rentável; e não se sabe onde encontrarão esse gás, se não for nem no Turcomenistão nem no Azerbaijão. A Turquia também quer para ela boa parte do gás, além dos impostos que poderá arrecadar pelo trânsito do gás por território turco. A confusão é completa, por ali.
Continuo a ler os pronunciamentos oficiais sobre Nabucco (o consórcio tem sede em Viena). A cada um, dois meses, aparece novo comunicado: que vai começar, que já têm os 20 bilhões de euros, que estará construído em 2017, a construção começará no próximo ano –, mas é o mesmo que dizem há cinco anos, se não me engano com as datas.
Outro problema central é o tráfico de ópio/heroína no Afeganistão. O que você tem observado, o que pensa desse problema? Quem são os principais players desse comércio? Você também entende que todo esse caso é uma vergonha para o ocidente?
Pepe Escobar: Ah, sim. Um dos principais players nesse comércio sempre foi Ahmed Ali Karzai, irmão do presidente Hamid Karzai do Afeganistão. Encontrei-o depois do 11/9 em Quetta – ele sempre viveu em Quetta, sua base perfeita. Quetta é cidade fascinante. Costumo dizer que é a capital do contrabando e do tráfico de drogas de todo o oriente – e não é dizer pouco, porque Quetta compete com Hong Kong; de fato, compete com todos, com os russos, com a máfia ucraniana.
Em Quetta há uma máfia de transportes, uma máfia de heroína, e, a partir de Quetta todas aquelas redes começam a diversificar-se. Uma rede atravessa o norte do Paquistão e chega ao Tadjiquistão; outra rede bifurca-se no Tadjiquistão e avança na direção da Ásia Central e, dali, avança até a Turquia.
E há as redes do ópio paquistanesas/afegãs e outra rede no Tadjiquistão que só cuida do refino. Todos, na região, sabem que essa é a rede da CIA. O que ainda não se conhece precisamente é o traçado, a trajetória, dessa rede. O mais provável é que parta do Afeganistão pelo Uzbequistão para chegar à Turquia, ou, talvez parta do Uzbequistão. Naquela parte do mundo, cada grupo tem sua rede de tráfico.
Que eu saiba, as máfias chinesas não têm rede no Afeganistão, mas, provavelmente, logo terão. Mas esse já é um problema terrível para os russos. Se se pergunta a funcionários russos qual o principal problema em relação ao Afeganistão, todos dizem a mesma coisa: a droga está em guerra contra nós; a origem dessa guerra é o ópio afegão. O número de russos mortos por causas associadas à heroína já é maior que as baixas que os russos sofreram na guerra do Afeganistão, nos anos 1980s.
Pepe Escobar: Você tem toda a razão. Os russos falam muito sobre isso na Organização de Cooperação de Xangai. Não se trata só de manter as bases norte-americanas fora daquela área – como os chineses também desejam manter. Os russos precisam também encontrar um modo de desmontar essas máfias do ópio, de drogas. É grave problema para a Rússia – como, aliás, também é grave problema para o Irã.
Para o Irã, por causa dos refugiados afegãos. Os refugiados afegãos moveram-se para o leste do Irã, basicamente. Se você vai a Mashhad, no leste do Irã, e visita os subúrbios de Mashhad... Ali é o centro do ópio; é o centro do contrabando do ópio. Atravessam o Afeganistão, via Herat, de Herat a Mashhad, hoje as estradas são excelentes, uma viagem de no máximo sete horas; e de Mashhad distribuem o ópio por todo o Irã. O problema das drogas também é grave no Irã. O Irã já é membro observador da Organização de Cooperação de Xangai, e uma das principais razões pelas quais o Irã interessou-se pela OCX é tentar criar um mecanismo regional capaz de combater eficazmente o tráfico de drogas, uma real guerra ao tráfico naquela região. Aqueles países estão sofrendo terrivelmente.
Sendo assim, a heroína já está sendo processada no Afeganistão, não apenas plantada e colhida ali. Uma pergunta que sempre faço a mim mesmo: e quem fornece os materiais químicos necessários ao refino e processamento? Que eu saiba, não há fábricas de anidrido acético no Afeganistão, há?
Pepe Escobar: Honestamente, não sei. Mas acho que, sim, pode haver, provavelmente há, ajuda externa envolvida nessa produção. É verdade. No Afeganistão o refino é simplesmente impossível. As refinarias costumavam ser instaladas no Tadjiquistão ou no Paquistão, em Quetta, por exemplo, ou em Dushanbe no Tadjiquistão. O povo do vale do Panjshir tem contato com o tráfico, tudo está concentrado em Dushanbe, 40 minutos ao norte do Afeganistão, por helicóptero (e eles têm seus próprios helicópteros). Portanto, sim, eu diria que recebem ajuda externa. E, claro, a especulação sempre aparece: o ocidente estará ali, ajudando o tráfico?
Não é acaso, que tantos especulem na mesma direção: onde há recursos energéticos e/ou tráfico de drogas ilícitas (p.ex. América do Sul, Ásia Central, Sudeste Asiático), os militares e a inteligência dos EUA nunca estão longe...
Pepe Escobar: É, estão, sim, por toda a parte. Embora, hoje, já não possam andar como antes pela América do Sul, em função do que acontece por lá, digamos, desde 2002.
Foi um terremoto geopolítico, de fato: os sul-americanos, pela primeira vez na história do continente (depois da eleição, primeiro do presidente Chávez na Venezuela, e depois do presidente Lula no Brasil em 2002, depois no Equador e até no Uruguai e até com a eleição de Kirschner na Argentina), afinal decidiram. “OK. Agora, vamos agir juntos, agora que tantos governos eleitos por aqui são de centro-esquerda ou são, pelo menos nominalmente, governos progressistas.
Vamos pôr ordem na casa”, disseram os sul-americanos; “vamos nos organizar através da Unasul, por exemplo, a União dos Países Sul-Americanos; e do Mercosul, que é uma união de trocas e comércio regional. E vamos tentar resistir diretamente à interferência dos norte-americanos”. E isso, precisamente, é o que hoje se vê. Lembre que, em 2002, o presidente Chávez da Venezuela escapou de um golpe, organizado diretamente de Washington (e há muitas provas disso, até na Internet. Eva Golinger, advogada venezuelana-norte-americana, escreveu livros excelentes sobre aquele golpe). Em 2007, os EUA tentaram desestabilizar a Bolívia; e houve mais um golpe fracassado no Equador, há pouco mais de um ano.
Quero dizer: não está acontecendo como acontecia antes na América do Sul, porque agora, ali, há unidade política, econômica e geopolítica.
Mas que ninguém duvide: se o Pentágono encontrar uma abertura pela qual possa outra vez tentar intervir diretamente na Venezuela, eles tentarão de novo. O problema é que, agora, há especialistas russos na Venezuela, há empresários e especialistas chineses, e iranianos com interesses locais, na Venezuela. A Venezuela deixou de ser país que só negociava na América do Sul, embora, sim, tenham muitos negócios com Brasil, Argentina etc. Mas hoje a Venezuela vende também ao outro lado do mundo; e negocia diretamente com os dois principais concorrentes estratégicos dos EUA, além de o presidente Chávez ser amigo muito ativo da nêmesis dos EUA, o Irã. São mudanças muito significativas, que explicam muita coisa.
Desde 2002, a América do Sul está transformada em problema gigante para o Pentágono. Não surpreende que aqueles doidos que disputam a indicação a candidato dos Republicanos, tenham dito, no último debate televisionado, que o Hamás e o Hezbollah estão infiltrados por todos os cantos na América do Sul; que os EUA têm de precaver-se contra a América do Sul, porque os EUA já esqueceram que há muitos comunistas e terroristas na América do Sul. Mas o quadro mudou muito na América Latina, e não há nada de novo no que os EUA dizem. [Continua]