segunda-feira, dezembro 26, 2011

A águia, o urso e o dragão

Celebremos o fim de um 2011 cheio de eventos, com uma fábula.

Era uma vez o começo do século 21. A águia, o urso e o dragão arrancaram as luvas (forradas) e, agora, danaram a brigar, numa Nova Guerra Fria.

Quando a Guerra Fria original terminou – em teoria – no final de 1991 numa dacha na Bielorrúsia, com o urso quase em coma, a águia apropriou-se do direito do urso, de ter política exterior independente, direito que também fora cancelado. O que veio depois já era mais que claro entre 1999 e 2004 – quando a OTAN, contra todas as promessas feitas ao ex urso-mór Gorbachev, expandiu-se na direção da Europa Oriental e estados bálticos.

O urso então se pôs a pensar: e se, no final, eles roubarem todo o meu espaço de segurança e eu for deixado à míngua, geopoliticamente?

No jovem século 21, a discórdia mãe de todas as discórdias entre a águia e o urso tem a ver com os mísseis de defesa. Nem a própria águia sabe se aquela engenhoca imensamente cara algum dia servirá para alguma coisa. E mesmo que sirva, se funcionar, será financiada provavelmente por um dragão relutante que é dono, hoje, de mais de US $1,5 trilhão da dívida da águia.

O urso tem dito e repetido que a instalação de interceptores de mísseis e radares naquela parte do mundo em que cego guia cego – a Europa – é ameaça ao mundo. A águia diz que não, não, não se preocupe, a coisa está lá só para nos proteger dos amaldiçoados bandidos persas.

Mas o urso não se convenceu. Assim, em mensagem global de televisão, com legendas em inglês, o urso anunciou que já instalou no enclave de Caliningrado no Mar Báltico, um sistema novo de alarme que monitora mísseis lançados seja da Europa seja do Atlântico Norte. E que logo logo pode vir também o sistema Iskander de mísseis antibalísticos.

O urso está frustrado. Diz que muitas vezes ofereceu-se para cooperar com a águia e seus seguidores, para que desenvolvessem juntos um sistema – e deu em nada. O urso insiste que a porta continua aberta para um acordo. Terão de voltar a conversar – depois da sangrenta campanha eleitoral de 2012, na Águia-lândia. Enquanto isso, o dragão observa.

“Ora, se um cego guiar outro cego...”[1]

Quase duas décadas depois do que o Top Urso Putin definiu como “a maior catástrofe geopolítica do século 20”, o próprio Top Urso Putin propôs uma URSS light – numa União Eurasiana, um corpo político/econômico já subscrito pelo Cazaquistão (“Leopardo das Neves”) e pela Bielorrúsia, ao qual logo se unirão os ainda filhotes eurasianos Tadjiquistão e Quirguistão.

Quanto ao Turcomenistão e ao Uzbequistão, estão preocupados demais com como equilibrar a pressão que sofrem dos dois, da águia e do urso. E há ainda a Ucrânia. Quem a Ucrânia escolherá: o urso, ou os cegos que guiam cegos?

A águia quer coisa completamente diferente: uma Nova Rota da Seda que a águia controlará. A águia parece esquecer que a Rota da Seda original ligou o dragão ao Império Romano durante séculos – e jamais houve ali qualquer tipo de intromissão de forças de fora da Eurásia.

A águia está literalmente furiosa, porque o Top Urso dos próximos seis anos (talvez 12) será, outra vez, Putin. E o urso tenta manobrar a seu favor o inexorável ímpeto do dragão, rumo ao primeiro lugar global.

Por isso o urso está apostando num espaço econômico “de Lisboa a Vladivostok” – quer dizer: íntima cooperação com aquela turma cega, destroçada pela crise, onde cego guia cego. O problema é que os cegos são, eh, cegos, e não estão conseguindo movimentar-se ou agir como bloco.

A águia, enquanto isso, subiu alucinadamente a aposta. Lançou o que, para todas as finalidades práticas, resume-se a cercar o dragão com uma muralha armada (“ordenei à minha equipe de segurança que dê alta prioridade à nossa presença e às nossas missões no Pacífico-asiático”[2]).

A águia está fazendo vários movimentos que se resumem a incitar as nações que cercam o Mar do Sul da China, para que antagonizem o dragão. Ainda mais, está reposicionando inúmeros de seus brinquedos – submarinos e porta-aviões nucleares, jatos de combate – aproximando-os cada dia mais do território do dragão. O nome do jogo, segundo o Ministério de Armas Mortíferas da águia, é, precisamente, “reposicionamento”.

O dragão, por sua vez, vê uma águia estropiada, que fala grosso tentando adiar um irreversível declínio e que, para isso, tenta intimidar, isolar ou, no mínimo sabotar, a irreversível caminhada do dragão de volta ao lugar onde esteve ao longo de 18 dos recentes 20 séculos: o trono do rei da selva.

É parada duríssima para a águia. Virtualmente todos que mantêm a coesão da Ásia entretêm conexões complexas, de longo alcance, com o dragão e com a diáspora dragônica.

Por toda a Eurásia, pode acontecer de muitos atores já não se impressionarem muito com o império da águia, mesmo que apareça armado até os dentes. Sabem que sob as novas leis da selva, o dragão simplesmente não pode – e não será – reduzido ao status de ator coadjuvante.

O dragão não parará de expandir-se na Ásia, América Latina, África e até nas pastagens infestadas de desemprego, onde cegos guiam cegos em plena crise.

Acima de tudo, só o dragão, se for excessivamente provocado, tem poder para fazer explodir o apavorante déficit da águia, degradar o crédito da águia, prender a águia num ninho de papéis podres, e causar estrago de dimensões tectônicas no sistema financeiro mundial.

Quanto mais quente melhor[3]

E assim, depois de pausa de uma década – desperdiçada numa alucinada “guerra ao terror” inventada pela águia, e que, na prática, foi ataque sem limites contra terras e povos muçulmanos – a realpolitik voltou ao batente. Esqueçam aqueles jihadis esfarrapados: agora, os manda-chuva vão acertar suas diferenças.

A águia demorou uma década para dar-se conta de que a Ásia será o centro político e econômico de um novo mundo multipolar.

Mas a nova estratégia da águia já conseguiu transformar o urso, de cliente cordato (durante todos os anos 1990s e 2000s), em virtual inimigo. O tal “reset” de Obama é mito. O urso sabe que não há reset algum – e o dragão já sabe que, se houver reset, será reset do confronto declarado.

Quanto mais a águia o ameaçar, mais o urso se aproximará do dragão. O urso e o dragão têm muitos laços estratégicos em todo o planeta, para que se deixem intimidar pelo massivo Império de Bases da águia, ou por sua precária “coalizão de vontades”, muitas das quais, relutantes.

O dragão, por seu lado, sabe que a Ásia não precisa dos Hellfires da águia, embora, claro, com certeza, receberia com prazer alguns dos produtos da águia, sólidos, de boa tecnologia. O problema é que a águia está com poucos produtos a oferecer.

Se o que se vê é o melhor que a ex-poderosa águia tem a oferecer – ou guerra contra o Islã, ou esforços para intimidar no grito, ao mesmo tempo, o urso e o dragão – não há dúvidas: eis o retrato de um império sem projeto. A Ásia não é tola: nunca aceitará o desafio para uma Nova Guerra Fria que enfraquecerá, primeiro, a própria Ásia.

E mesmo agora, quando ainda se ouvem os ecos dos primeiros tiros de provocação para uma Nova Guerra Fria, a águia já corre o risco de perder mais um cliente: o Paquistão.

E há a Pérsia. A águia persegue os persas desde o dia em que os persas livraram-se do procônsul da águia, o Xá, em 1979 (e, isso, depois de a águia e a pérfida Albion já terem esmagado a democracia persa, para lá impor o Xá – comparado ao qual, Saddam é um Gandhi –, em 1953). A águia quer de volta todo o petróleo e o gás natural que o Xá lhe fornecia. Dizem o urso e o dragão: não dessa vez, cara águia de cabeça pelada.

Assim chegamos ao fim da fábula – mas não da disputa. Como todos deveriam ter previsto, não há moral nessa fábula. Todas as almas e mentes sensíveis devem desejar, isso sim, por mais que continuemos condenados a padecer sob o aguilhão do acaso, que essa Nova Guerra Fria nunca, nunca, esquente.

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[1] Bíblia, Mateus 15:14 [NTs].
[3] Orig. Some like it hot. Filme de 1959, dir. Billy Wilder.