A USP e o Choque da Tropa
Foto: Érica Saboya R7 |
O acontecimento em questão é resultado de um processo bisonho de militarização do campus, cuja problemática chegou ao seu clímax depois da tentativa de prisão, por parte da PM, de três estudantes que fumavam maconha em um carro dentro do campus, evento que teve como seguimento a resistência dos estudantes da FFLCH à prisão dos três, a referida e funesta assembleia para deliberar sobre a ocupação da Reitoria, sua ocupação por grupos minoritários até chegarmos ao momento presente.
Essa militarização ocorreu a pedido da reitoria, na esteira do assassinato de um estudante, dentro do campus, em circunstâncias até hoje mal explicadas - possivelmente, tratou-se de latrocínio. Isso se segue a toda um histórico no qual os estudantes reivindicavam mais segurança, em decorrência da ocorrência, dentro do campus, de crimes graves como estupro ou mesmo pequenos furtos e quetais. Até aquele momento, as reivindicações em torno de melhor iluminação e da ampliação e treinamento da Guarda Universitária foram rigorosamente ignorados pela Reitoria.
A decisão do magnífico reitor Rodas - aquele lá que ficou em segundo na lista tríplice, de um sistema eleitoral por si só ultra-excludente mesmo que fosse direto, e mesmo assim foi escolhido pelo então governador José Serra - de fazer um convênio com a Polícia Militar, nesse sentido, é ambivalente: se sua preocupação era mesmo a segurança por que esperar que alguém fosse assassinado? Ou melhor, se é de segurança que estamos falando, por que inundar um campus de policiais militares em vez de recuperar a própria Guarda Universitária, combalida em número de quadros e vítima de condições de trabalho absurdas?
Quando falamos em militarização do campus, não estamos, de modo algum, exagerando. O que ocorre é o contrário: estamos normalmente esquecidos que, embora o Brasil tenha se tornado uma democracia à moda ocidental - com todas as suas boas-intenções e bom-mocismos -, ainda temos como principal força de segurança policial um corpo militar com poder sobre a população civil em tempos de paz. Pior do que isso, só mesmo a decisão política de colocar tal força para dentro de uma instituição de ensino - ou, quem sabe, fazer isso e esperar que não ocorra nenhum incidente. O uso da Tropa de Choque para a reintegração de posse é só a cereja do bolo.
Seja como for, não é estranho ao histórico da USP essa forma de gerenciamento dos espaços: universidades são sim dispositivos, cercados destinados a produzir conhecimento de forma segura para o sistema, mas o caso daquela universidade é um tanto pior; ele passa pela comoção pela derrota bandeirante em 1932 e a criação de um projeto de articulação das faculdades existentes na capital em torno de uma única unidade, sob firme controle do governo do estado, já nos anos 30. O processo de acomodação de boa parte daquelas unidades de ensino no longínquo - e isolado - campus do Butantã, quando a USP se torna a ponta de lança da produção do conhecimento para o nacional-desenvolvimentista verde-oliva, foi só um passo dentro dessa caminhada.
A própria existência da atual Cidade Universitária, onde, como e por qual motivo ela foi instalada, já suscita a intervenção da peculiar forma de poder disciplinar oriunda da doutrina de segurança nacional militar. A escolha de Rodas por Serra, a primeira de um não-primeiro colocado desde a Ditadura, por sua vez, se apresentou como uma reação defensiva e radical às políticas educacionais do Governo Federal que, tanto na esfera das universidades estatais quanto das privadas, marcam, pela primeira vez em nossa história, um furo na política universitária tradicional baseada no academicismo aristocrático das primeiras e no nascente mercantilismo das segundas - políticas como o Reuni e o Prouni trouxeram para dentro da Academia a multidão em constituição e marcaram a possibilidade de controle das mesmas por ela.
Apesar de que uma sociedade de controle disponha de métodos mais eficientes para a gestão da vida - e a decisão sobre a morte -, a existência de eventos como esse não é estranha à sua existência: são reterritorializações sobre as quais Deleuze se referia ao analisar o nosso tempo e a representação de arcaísmos como forma de sua realização. O sistema que se expande loucamente está exposto a crise cíclicas, que ele resolve construindo pontos de segurança, pela representação do velho. O fetiche de Rodas pelo controle policial sobre, sejamos honestos, a atividade política é explicável e, em certa medida, trata-se das parte das medidas desesperadas em que sua gestão se constitui.
Não deixa de ser curioso, entretanto, que boa parte das formas de resistência que se estabeleça em relação a esse processo seja, vejamos só, elas mesmas também outros modos de arcaísmos: parcelas do movimento estudantil, parado no tempo, ansioso por catalizar mudanças enquanto vanguarda contra um poder disciplinar [que não existe mais, ou existe, mas apenas e tão somente enquanto representação] decidiram, de forma atabalhoada, ocupar a reitoria, o que estava fadado ao fracasso. E leem, ainda, a questão completamente fora de contexto, em uma crítica maniqueísta da gestão Rodas, ignorando seus comos e porquês.
Reclamar da incompreensão da mídia ou do estudante médio é patético. Em política, não discutimos teoria, mas sim efeitos práticos e concretos das ações. Deve-se calcular a tensão dos corpos e não ter devaneios com ideais, sob pena de fracassar das mais diversas formas possíveis ou, mesmo, encampar o estereótipo que pretendem - e precisam - enquadrar você.
Não há, com efeito, simetria entre a incomensurável concatenação de erros daqueles coletivos e a violência policial - e isso deve ficar bem claro aqui -, mas a necessária crítica daquele movimento precisa ser feita, do contrário, estaremos sempre escravos de um maniqueísmo que nos impede da devida crítica. A luta que se trava é muito mais complexa e o movimento estudantil precisa ter consciência disso, do contrário, apenas servirá como o bode expiatório necessário.