quarta-feira, março 10, 2010

“Guerra de percepções”


Marjah, a cidade que foi sem ter sido


10/3/2010, Gareth Porter, Asia Times Online (de Washington) – http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LC10Df02.html

“Uma guerra de percepções mantida sem interrupção, usando a mídia.”
(Do “Manual de Campo da Guerra Antiguerrilha” [ing. Counter-insurgency] do exército dos EUA, 2006
*)

Durante semanas, o público norte-americano acompanhou a maior ofensiva da guerra do Afeganistão contra o que se dizia que seria “uma cidade de 80 mil habitantes”, além de suposta base dos Talibã naquela parte da província de Helmand. Essa ideia foi elemento central da impressão geral que se divulgou em fevereiro, de que Marjah seria importante objetivo estratégico, mais importante que outros centros distritais na mesma província de Helmand.
Como se sabe hoje, contudo, essa imagem de Marjah, divulgada pelos militares e reproduzida em todos os principais órgãos da mídia em todo o mundo, é das mais impressionantes e mais dramáticas peças de desinformação de toda a guerra ­– criada e distribuída, segundo o que já se sabe, para apresentar o ataque a Marjah como um momento histórico de ‘virada’ na história narrada do conflito.
Marjah não é uma cidade; não, no sentido em que se entende a palavra “cidade”. Marjad são apenas algumas casas, praticamente choupanas, distribuídas pela grande região agrícola que cobre toda a região sul do vale do rio Helmand.
“Não é região urbana, de modo algum” – como admitiu a jornalistas do Inter Press Service (IPS), no domingo, um oficial da International Security Assistance Force (ISAF), que pediu para não ser identificado. Descreveu Marjah como “uma comunidade rural”.
“São vários sítios e pequenas fazendas, típicas moradias familiares como se vê por lá”, disse o oficial, acrescentando que a região é razoavelmente próspera para os padrões afegãos.
Richard B Scott, que trabalhou em Marjah até 2005, é assessor especialista em irrigação da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional [ing. US Agency for International Development]; também para ele, Marjah não pode, de modo algum, ser descrita como centro urbano. É um “distrito agrícola”, no qual se distribuem moradias familiares e mercados de produtos agrícolas da região” – disse Scott, em entrevista por telefone.
O oficial do exército disse que a população que os jornais dos EUA informaram que seria população urbana, chegando a dezenas de milhares, é, de fato, população distribuída em extensa área agrícola, em várias pequenas vilas espalhadas em cerca de 200 quilômetros quadrados. Marjah jamais foi convertida em cidade; hoje, há planos para dar-lhe o estatuto formal de “distrito” da província de Helmand.
O militar admitiu que a confusão sobre a população de Marjah pode ter sido facilitada pela evidência de que o mesmo topônimo designa a grande área agrícola e um específico ponto no qual os fazendeiros reúnem-se para as feiras da região. Apesar disso, o nome Marjah “apareceu quase sempre associado diretamente” à localização mais específica, onde há uma mesquita e algumas poucas lojas.
Essa área pequena foi o alvo aparente da “Operação Moshtarak [“Todos juntos”], da qual participaram 7.500 soldados dos EUA, da OTAN e do exército afegão, cercados pela mais intensa campanha de propaganda que se viu desde o início da guerra.
Como começou a fantasia de que Marjah seria uma cidade de 80 mil habitantes?
A ideia chegou à mídia a partir de declarações dos Marines dos EUA no sul de Helmand. As primeiras referências a Marjah, na mídia, diziam que seria cidade com grande população: foi o que se leu em briefing distribuído dia 2/2/2010 por oficiais da base dos EUA em Camp Leatherneck.
A Associated Press publicou artigo no mesmo dia, citando “comandantes militares dos Marine”, que teriam declarado que esperavam “tocaiar” de 400 a 1.000 guerrilheiros Talibã em “Marjah, cidade de 80 mil habitantes, no sul do Afeganistão”. Essa linguagem evocou (e começou a implantar) a imagem de combates de rua, praticamente casa a casa, contra guerrilheiros urbanos.
A mesma matéria dizia que Marjah seria “a maior e principal cidade controlada pelos Talibã”; e que seria também “o centro logístico da rede de militantes e traficantes de ópio”. Na ‘cidade’ viveriam 120 mil pessoas “na área urbana e nos subúrbios e vilarejos adjacentes”.
Depois, foi a rede ABC, cujo noticiário do dia seguinte também falava da “cidade de Marjah”, que seria centro urbano cercado por rede de subúrbios e vilas “mais densamente povoada, mais urbanizada que qualquer outra área que os marines haviam limpado e ocupado até então”.
Os demais noticiários das demais redes repercutiram a mesma imagem de uma Marjah urbanizada, alternando as denominações, “ou cidade” ou “centro urbano”.
Quando a “Operação Todos Juntos” começou, os porta-vozes militares dos EUA continuaram a apresentar Marjah como centro de população urbanizada. Dia 14/2/2010, segundo dia da ofensiva, o tenente Josh Diddams , porta-voz dos marines dos EUA, disse que “agora, os marines já ocupam praticamente toda a cidade”.
Também empregou linguagem que evocava imagens de combates urbanos; disse que os “insurgentes” ainda controlavam “alguns subúrbios”.
Poucos dias depois, os repórteres começaram a falar de uma “região” – o que ajudou mais a confundir do que a esclarecer. Um dos relatos falava de “três áreas de mercado público – cerca de 200 km2”.
Uma “cidade” com área de 207,2 km2 seria maior que Washington, DC, Pittsburgh e Cleveland, por exemplo, nos EUA.
A escolha de Marjah como objetivo da “Operação Todos Juntos”, implantando simultaneamente a falsa impressão de que seria cidade de tamanho considerável não pode ter sido decisão dos Marines da base de Camp Leatherneck.  
Uma das tarefas centrais das “operações de informação” em guerras de contraguerrilha é “estabelecer a narrativa da contraguerrilha” [ing. counter-insurgency, COIN]” – nos termos que se leem no Manual de Campo do Exército para Guerra de Contraguerrilha [ing. Army Counter-insurgency Field Manual], já atualizado, em 2006, durante o comando do general David Petraeus, chefe do Comando Central dos EUA.
Estabelecer as linhas mestra da “narrativa da contraguerrilha” é tarefa que cabe aos “escalões superiores”, não aos soldados “de campo”, nos termos do manual.
O Manual da Contraguerrilha ensina que a mídia “influencia diretamente a atitude dos públicos-alvo em relação à contraguerrilha, às suas operações e aos terroristas contra os quais a contraguerrilha combate”. O manual fala de “uma guerra de percepções, que se faz continuamente, usando a mídia”.
O general Stanley McChrystal, comandante da ISAF, estava muito evidentemente se antecipando, nessa guerra de percepções, quando começou a distribuir briefings sobre a operação em Marjah. Em declarações que fez logo depois do início da ofensiva em Marjah, McChrystal usou diretamente os termos do manual de antiguerrilha; falou de “Tudo aqui é uma guerra de percepções”.
Dia 22/2/2010, o Washington Post publicou matéria em que dizia que a decisão de atacar Marjah fora inspirada pela necessidade de impressionar a opinião pública nos EUA e de ‘demonstrar’ a efetividade do exército dos EUA no Afeganistão; para isso, construíram um cenário no qual os norte-americanos alcançavam “grande e estrondosa vitória” em Marjah. A falsa impressão de que Marjah seria “uma grande cidade” foi parte essencial da mesma ‘mensagem’. 




* Uma versão não oficial desse “Manual” pode ser lida em http://www.fas.org/irp/doddir/army/fm3-24fd.pdf

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