Uma das principais intelectuais petistas, a filósofa Marilena Chauí, em entrevista ao suplemento Eu & Fim de Semana, do jornal Valor Econômico, analisa a crise, defende a ética da política e aposta nos movimentos de refundação do partido. Marilena também defende a esquerda e acusa a oposição de criar um ambiente para o desencadeamento da crise política.
Confira a íntegra, que pode ser lida também no site do Valor (clique aqui):
Filósofa-estrela da cultura nacional, Marilena Chauí sempre emprestou seu brilho à estrela do Partido dos Trabalhadores, legenda da qual é fundadora e ardorosa defensora. Os escândalos que tomaram de assalto o PT no governo Lula, porém, lançaram uma sombra sobre os que sempre orbitaram ao redor do partido - e Marilena não escapou. Acusada de optar pelo silêncio em vez de rebater as críticas ao governo, a professora da USP teve os holofotes focados em sua imagem ao participar do seminário "O Silêncio dos Intelectuais", em agosto. Após meses sem se manifestar publicamente, ela disse haver "momentos em que o silêncio é o dever de um intelectual". A frase serviu para cristalizar uma suposta postura de omissão. No entanto, não é uma verdade absoluta. Nino Andrés Marilena Chauí: fragilidade do PT se agravou pelo fato de adversários políticos promoverem "o impeachment do presidente"
Em 2004, depois do escândalo envolvendo Waldomiro Diniz, ex-assessor do Planalto que apareceu em vídeo negociando propina e arrecadação de dinheiro para campanhas eleitorais, Marilena escreveu contundente artigo na "Folha de S.Paulo" em defesa do PT. Afirmava que a mídia, em vez de discutir a necessidade de reforma política para evitar episódios como o do caso Waldomiro, tinha como motivação a disputa simbólica para destituir o PT do lugar que ocupava. Colegas de universidade, intelectuais e articulistas reagiram, e muitos protestaram contra seus argumentos.
Na entrevista a seguir, Marilena retoma o assunto sem meios-termos. Fala da polêmica em torno do silêncio, da importância da reforma política para que os partidos não sucumbam a improbidades administrativas e diz que o governo deveria ter proposto uma reforma quando ainda dispunha de poder e prestígio para dirigi-la. Também analisa a situação política do partido e o contexto de seus muitos escândalos. Em defesa do PT, alega que sua fragilidade se agravou quando o governo perdeu a presidência da Câmara e se intensificou ainda mais pelo fato de adversários políticos promoverem "um golpe branco ou o impeachment do presidente da República".
A crise petista decorreria também do desmantelamento das formas de participação e de autonomia dos movimentos, que historicamente foram determinantes nos processos de tomada de decisão partidária. Esse desmantelamento seria efeito colateral da centralização e da burocratização "impostas pelas direções partidárias, pelo papel central que deram à eleição de Lula, em todos os níveis, e pela aceitação das regras do marketing político". Mas não só. Os escândalos do PT, em sua análise, teriam ainda outros fatores desencadeadores:
- A futura perda de recursos pelo grupo Opportunity, dirigido por Daniel Dantas, que abastecia Marcos Valério desde os tempos do PSDB, com as mudanças que seriam feitas nos fundos de pensão.
- Disputas - sobretudo entre PSDB e PMDB - pela privatização dos Correios. Eduardo Knapp/Folha Imagem Fórum Social de 2002: problemas do PT suscitaram movimento de refundação partidária e levarão ao desmantelamento da estrutura burocrática e centralizada
- O início de ações da Polícia Federal, que atingiriam gente "graúda com poder de fogo para impedir isso".
- A possibilidade de reeleição de Lula.
- A possibilidade de favoritismo do PT nas eleições estaduais.
Marilena, enfim, fala. E tem sido assim ao longo de sua carreira de intelectual. Com voz firme, regências impecáveis, raciocínio limpo e muitos conceitos, ela ganhou prestígio na USP, onde leciona desde 1967, e em inúmeros cursos e seminários que ministrou pelo Brasil. Sempre com ar dramático e incisivo, era comum atribuir-se a ela a característica de "showoman" em "aulas-espetáculo" - quando espetáculo ainda era um adjetivo do bem. E como boa protagonista, soube cultivar antagonistas na academia, na imprensa e em áreas culturais, em especial quando foi secretária da Cultura, em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina.
Sua carreira começou cedo. Aos 26 anos, defendeu seu mestrado sobre Maurice Merleau-Ponty. Aos 30, doutorou-se com uma tese sobre o filósofo holandês Baruch Espinosa. Sua livre-docência, também sobre Espinosa, foi defendida aos 36. Tornou-se professora-titular da USP em 1986. Marisa Cauduro/Valor Laura de Souza Chauí e sua filha, Marilena, com quem escreveu o livro de receitas "Professoras na Cozinha", lançado em 2001: a obra mais "light" da filósofa
Aos 64 anos, Marilena também escreve. E muito. Vencedora de dois Prêmios Jabuti, é autora de mais de 20 livros, entre eles "A Nervura do Real" (Companhia das Letras), "Ideologia e Mobilização Popular" (Paz e Terra), "A Questão da Democracia". Agora, Marilena lança "Leituras da Crise - Diálogos sobre o PT, a Democracia Brasileira e o Socialismo" (Fundação Perseu Abramo) e a mais nova reedição de seu clássico, "Cultura e Democracia - O Discurso Competente e Outras Falas" (Cortez Editora). São mais de duas décadas que separam a nova edição da primeira. E o hiato é visível. Nos anos 1980, o Brasil via o nascimento político da classe trabalhadora como "sujeito de suas próprias ações". Hoje, "a articulação do autoritarismo social brasileiro com a acumulação capitalista neoliberal" teria feito com que se bloqueasse a criação da cidadania. Para fazer uma ponte entre os dois tempos, Marilena inclui novo ensaio no livro, no qual examina as relações entre ética e política. Nada mais atual.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor.
Valor: A senhora diz no livro "Cultura e Democracia - O Discurso Competente e Outras Falas" que hoje se vive a era da "sociedade do conhecimento", na qual os que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural de "mandar e comandar os demais em todas as esferas da vida social".
Marilena Chauí: Um pequeno esclarecimento. A sociedade do conhecimento é a nova forma da ideologia da competência. Esta surgiu com a chamada "organização científica" do trabalho industrial, ou "gerência científica", e se espalhou para todas esferas da existência social. É ele que afirma que os que possuem conhecimentos técnicos e científicos têm o direito de mandar e comandar, enquanto os outros, despojados de tais conhecimentos, têm o dever de obedecer. Essa ideologia divide a sociedade em especialistas competentes e sujeitos sociais, políticos e culturais incompetentes. É uma forma de poder e de dominação que se intensifica e se potencializa na nova forma do capital, isto é, quando a ciência se torna força produtiva e a informação significa poder. Não tem nada a ver com mérito ou meritocracia, mas com exercício da dominação.
Valor: Vem daí sua força despolitizadora?
Marilena: A ideologia da competência ou da sociedade do conhecimento tem uma força despolitizadora imensa, pois a política passa a ser considerada uma questão de conhecimento técnico - a política se torna uma técnica - que exclui todos os que não o possuem. Os cidadãos são reduzidos à condição de votantes, apenas. Essa ideologia é, por excelência, antidemocrática, pois, desde seu nascimento na Grécia, a democracia sempre se fundou na idéia de competência política dos cidadãos para discutir, deliberar e decidir politicamente. Somente depois de tomada uma decisão pelos cidadãos, os dirigentes recorriam aos técnicos, cuja competência específica era empregada para concretizar a decisão tomada pelos cidadãos. Hoje, a ideologia da competência e da sociedade do conhecimento produz uma inversão: os técnicos decidem e os cidadãos acatam. É isso a despolitização da sociedade. No livro, ofereço vários exemplos de como os operários desmoralizavam a "gerência científica", que lhes dava ordens e regras para a fabricação de um produto. Em muitas ocasiões, os trabalhadores realizaram a chamada "greve do zelo", que consistia em fabricar o produto seguindo exatamente as ordens e normas recebidas dos técnicos competentes, sem que o saber real ou a competência real dos trabalhadores fossem empregados na fabricação. O resultado era claro: os produtos eram imprestáveis.
Valor: Como vê a imagem do presidente Lula nessa conjuntura, uma vez que ele é a negação dessa lógica meritocrática, pelo menos em termos de educação formal?
Marilena: No caso do Brasil, a ideologia da competência e da sociedade do conhecimento, além de exercício de poder, servem para legitimar um traço marcante de nossa sociedade, qual seja, o autoritarismo social, que faz com que todas as relações sociais - na família, no trabalho, na escola, no hospital, na rua, no entretenimento etc. - tenham a forma de uma relação entre um superior e um inferior e assumam a forma da cumplicidade quando os sujeitos se consideram iguais, e da repressão, quando desiguais. O autoritarismo social aparece no racismo, no machismo e, evidentemente, no preconceito de classe. Se a democracia é uma forma social de ampliação e criação de direitos, isso é muito difícil no Brasil, por que o autoritarismo social, o preconceito de classe e a desigualdade econômica dividem nossa sociedade em dois pólos: o do privilégio, que, por ser privilégio, não pode ser um direito de todos os cidadãos, e o da carência, que, por ser a ausência de direitos, não pode ser um direito de todos os cidadãos. Deixo por sua conta e por conta dos leitores avaliar como a ideologia da competência, a ideologia da sociedade do conhecimento, o autoritarismo social e a possibilidade de instituir uma sociedade democrática podem ser analisados com a presença do presidente Lula na cena política brasileira.
Valor: Num artigo publicado por ocasião do caso Waldomiro, na "Folha de S.Paulo", a senhora escreveu que o episódio deveria servir como gancho para propostas de mudanças. Mas a mídia não teria preocupação com a ética na política nem com a reforma política. Sua motivação seria a disputa simbólica para destituir o PT do lugar que ocupava. Essa disputa ainda vale para explicar os escândalos que vieram depois?
Marilena: Enquanto não se fizer uma reforma política, todos os governos tenderão a sucumbir aos mesmos problemas. Não vou repetir aqui esses problemas, pois já escrevi sobre isso em várias ocasiões e em vários lugares. Em resumo, direi o seguinte: no fim da ditadura, quando o MDB poderia superar a Arena com maioria parlamentar, o problema foi resolvido conseguindo-se novos parlamentares arenistas, entre outros meios, pela transformação dos territórios em Estados e pela criação de novos Estados com o desmembramento de alguns existentes. A seguir, o sistema partidário e eleitoral levou à distorção da representação, tanto pela super-representação dos Estados recém-criados como pela proliferação de partidos artificiais ou de aluguel. O resultado tem sido a impossibilidade de o partido vitorioso no Executivo conseguir eleger maioria parlamentar, ficando às voltas com o chamado "problema da governabilidade". Este acaba levando ou a alianças partidárias artificiais, que desagradam a todos os representados, ou à distorção de uma prática própria da democracia parlamentar, isto é, a negociação entre Executivo e Legislativo ("concedo x desde que você conceda y"). Passa-se da negociação à negociata.
Valor: E o financiamento das campanhas?
Marilena: O financiamento privado das campanhas eleitorais acarreta pelo menos três graves improbidades públicas. A primeira é a desinformação social, pois candidatos e partidos publicam gastos que não correspondem à realidade. A segunda é o segredo, pois candidatos e partidos, à margem de seus programas e compromissos públicos, se comprometem com interesses privados dos financiadores, favorecendo os economicamente poderosos às custas dos direitos das outras classes sociais. A terceira é a possibilidade de enriquecimento ilícito dos que se apropriam privadamente dos fundos de campanha. É evidente a necessidade da reforma política e o governo deveria tê-la proposto logo no início, quando tinha poder e prestígio para dirigi-la. Na sua pergunta anterior, o problema aparece: você diz "ética na política". Penso que devemos dizer ética "da" política. Falar em ética "na" política leva a supor que deve haver uma transferência das normas e dos valores da vida privada para a esfera pública. Dizer ética "da" política significa dizer que há normas e valores que pertencem propriamente ao espaço público e que as instituições políticas e públicas devem exprimir essas normas e esses valores.
Valor: A senhora poderia dar um exemplo?
Marilena: O primeiro pensador que analisou com clareza meridiana a diferença entre o privado e o público foi o filósofo Aristóteles, quando distinguiu o poder doméstico do chefe de família e o poder político dos cidadãos. O primeiro se baseia na vontade pessoal e arbitrária do chefe - e a gente só pode torcer para que ele seja ético e virtuoso e não pratique violências. O segundo se baseia em dois princípios ou valores éticos públicos: a justiça do partilhável e a justiça do participável. A vida política é instituída tendo como finalidade instituir a justiça, transformando os indivíduos privados em cidadãos. A justiça consiste em tornar iguais os desiguais. A justiça do partilhável se refere à distribuição dos bens e das riquezas, pois uma política que fomenta e produz a desigualdade é injusta e, portanto, imoral. A justiça do participável se refere ao que não pode ser dividido ou partilhado, mas somente participado: trata-se do poder político, que deve ser igualmente participado por todos os cidadãos. Uma política que não assegure a participação é injusta e, portanto, imoral. Trata-se, pois, de encontrar e estabelecer instituições políticas e sociais que sejam capazes de assegurar a justiça. Como você vê, não há referência a qualidades pessoais dos governantes, às suas virtudes ou ao seus vícios, não se fala em ética na política e sim numa ética "da" política, numa ética pública, que possui valores e normas éticas públicos e instituições públicas para realizá-los. Do ponto de vista de uma ética da política, a história da política brasileira é a história da falta de ética.
Valor: É a história do PT?
Marilena: O PT surgiu vinculado a dois valores: a dignidade dos trabalhadores - portanto, a cidadania ou a participação no poder político ou justiça do participável; e a justiça - portanto, a distribuição da renda, em vista da igualdade, isto é, a justiça do partilhável. Há, pois, uma ética da política e o PT nasceu defendendo uma ética da política. Por isso mesmo, a perplexidade e o inconformismo dos petistas com os escândalos. Quanto aos escândalos, tenho algumas observações. Do lado institucional, as falhas do sistema político, tanto o partidário como o eleitoral. Do lado do PT, o que eu já disse sobre as mudanças ocorridas no partido, com a centralização, a burocratização e o predomínio da questão eleitoral sobre todas as outras, ou seja, a mudança de partido de quadros a partido de políticos profissionais com aceitação das regras do jogo; e, com a eleição de Lula, quadros importantes foram para o governo e os substitutos não souberam ter o controle sobre as finanças partidárias. Mas é importante deixar claro o que permitiu que a crise fosse desencadeada e o que a fez ser iniciada.
Valor: O que a desencadeou?
Marilena: O enfraquecimento do governo com a perda da presidência da Câmara. Tanto é assim que todas as tentativas para montar CPIs durante os governos de FHC foram bloqueadas pela presidência da Câmara - e olha que, em matéria de escândalos, não havia pouco, desde o que se passou com as privatizações até a compra de votos para aprovar a emenda da reeleição. Mas, o que fez a crise ser iniciada foi a conjugação de vários fatores: o início de ações da PF, que iriam atingir gente graúda com poder de fogo para impedir isso; a possibilidade de reeleição de Lula; a possibilidade de favoritismo do PT nas eleições estaduais; disputas - sobretudo entre PSDB e PMDB - pela privatização dos Correios; a futura perda de US$ 15 bilhões pelo Opportunity, que abastecia Marcos Valério desde os tempos do PSDB, com as mudanças que seriam feitas nos fundos de pensão. A finalidade também era clara: um golpe branco ou o impeachment do presidente da República. Tanto era assim que, logo no início da crise, vários tucanos participaram de programas de televisão e rádio anunciando que já tinham formado um "governo de transição", e propunham a antecipação das eleições presidenciais. Como você sabe, todas essas questões vêm sendo discutidas nos fóruns do PT, suscitaram o movimento de refundação partidária e levarão, a médio prazo, ao desmantelamento da estrutura burocrática e centralizada.
Valor: Os movimentos sociais tiveram com o PT um forte canal de comunicação e uma ligação histórica. Com a chegada do partido ao poder, esses movimentos não perderam sua força, uma vez que não quiseram romper com sua base histórica e não apresentaram alternativas para sua sobrevivência?
Marilena: Sob os efeitos do neoliberalismo, houve um refluxo mundial dos movimentos sociais e populares, que só muito lentamente estão retomando fôlego, buscando novas formas de organização e de expressão. Por isso, a importância do Fórum Social Mundial. Agora, os movimentos sociais e populares no Brasil formam o grande sujeito político dos anos 1980 e 90, mas sofreram também os efeitos da nova forma de acumulação do capital e também tiveram que buscar novas formas de organização e de expressão. No entanto, convém lembrar que o MST, por exemplo, continuou e continua firme e não se atrelou ao governo. No caso das universidades, que é o que eu conheço melhor, a Andes, a Andifes, a UNE, as associações estaduais de professores e de estudantes continuam firmes e não se atrelaram ao governo. Com relação aos movimentos sociais e populares ligados ao PT, o enfraquecimento partidário dos movimentos - e não sua posição política - decorreu não só da situação que atinge todos os movimentos no mundo inteiro, mas também de uma causa particular, que nada tem a ver com a chegada do partido ao poder. Essa causa foi a centralização e a burocratização das direções partidárias e o papel predominante dos políticos profissionais no partido, desmantelando a forte presença dos movimentos nas decisões partidárias.
Valor: A senhora considera que os programas sociais do governo, como o Bolsa-Família, que pode se tornar base para a reeleição de Lula em 2006, é um trunfo importante? Seriam esses programas uma resposta ao que a senhora chama de "sociedade de bem-estar", na qual o Estado faz parcerias com empresas e ONGs para a criação de empregos - desobrigando-se do salário-desemprego- e para projetos de educação e saúde, excluindo a idéia entre justiça social e igualdade socieconômica?
Marilena: A política brasileira é muito instável. O sistema partidário e o sistema eleitoral - que precisariam ter tido uma reforma profunda - favorecem indefinições, oscilações muito rápidas. Por isso, acho muito cedo para qualquer avaliação das próximas eleições. Não falei de "sociedade do bem-estar" e sim do Estado do Bem-Estar Social, que é o Estado da social-democracia européia. Também não falei de parcerias com empresas e ONGs e de desobrigação do salário-desemprego. Isso caracteriza a chamada "terceira via", proposta pelo Partido Trabalhista Inglês, com Blair. Falei do Estado do Bem-Estar Social como uma política referente à direção dada pelo Estado aos fundos públicos, uma parte dirigida à reprodução da força de trabalho, por meio do salário indireto ou dos direitos sociais, e outra dirigida a subsídios e investimentos do capital. Não está em curso, no governo Lula, nem a forma clássica da social-democracia, nem a terceira via. Há alguns estudos sendo feitos, muito interessantes, sobre os efeitos sociais, econômicos e culturais do Bolsa-Família em algumas regiões do país, particularmente quanto à nova situação das mulheres. Vale a pena ver isso. Quanto à educação, que eu conheço melhor, está longe da social-democracia, da terceira via e do neoliberalismo. O Fundeb, o Prouni, o Proeja, o texto da reforma universitária elaborado pelo MEC a partir de discussões e debates nacionais com todas as entidades, o processo de interiorização das universidades públicas - com a criação de novas universidades federais -, as verbas destinadas às escolas públicas em todos os níveis, a abertura de concursos públicos para ampliação da rede de ensino superior etc., assinalam uma política de cidadania e, sobretudo, de controle público sobre as empresas privadas de ensino em todos os níveis.
Valor: O discurso de esquerda pode continuar prometendo a criação de emprego, mesmo diante de um novo capitalismo, que não tem mais a capacidade de gerar emprego, e no qual o trabalhador não é mais uma categoria social?
Marilena: Não se trata de prometer emprego e sim de lutar por ele. Não se trata de lutar por emprego na forma atual da acumulação do capital, pois essa forma opera com desemprego estrutural. Portanto, não se trata de lutar por emprego, sem considerações, e sim de compreender as novas formas assumidas pelo trabalho a partir do momento em que o capital, subsidiado pelo Estado, dá um salto tecnológico sem precedentes e modifica a organização social do trabalho. Menciono, assim, três efeitos. Primeiro, a rotatividade e a obsolescência vertiginosa da força de trabalho. Segundo, a dispersão e a fragmentação da produção, alterando as relações entre os trabalhadores e o local de trabalho - relação que foi decisiva no período industrial para a consciência de classe , organização sindical e lutas populares. Por fim, a mudança da inserção do trabalho intelectual no modo de produção, uma vez que a ciência se tornou força produtiva direta. É preciso distinguir a luta pelo trabalho, no longo prazo, e a luta pelo emprego, no curto prazo.
Valor: Como se dá essa diferença?
Marilena: A luta pelo trabalho, no longo prazo, não pode ser separada da questão salarial e da jornada de trabalho, nem dos direitos sociais - portanto, da direção dada aos fundos públicos para assegurar tais direitos -, nem da discussão da exploração do trabalho e do trabalho alienado. No caso do Brasil, país de capitalismo periférico, a questão do trabalho envolve todos os aspectos acima mencionados, mas, no curto prazo, envolve ainda três outros. Primeiro, as políticas sociais de distribuição da renda, como a reforma tributária; as políticas econômicas de justiça social, como a reforma agrária; o subsídio estatal à micro-empresa; a política educacional de garantia dos direitos da infância e da adolescência, como condições econômicas para assegurar a escolaridade de boa qualidade, a manutenção de crianças e jovens na escola e a reforma do ensino básico e do ensino superior. Em seguida, o emprego como forma de transferência de renda para diminuição das desigualdades sociais. Um terceiro aspecto é o emprego como forma de inserção social, que leve a uma luta por novas condições do trabalho.
Valor: Mas qual é o espaço do trabalhador no contexto contemporâneo e das organizações que dessa classe emanam, como os sindicatos?
Marilena: Quando Milton Friedman e Friedrich Hayek propuseram o que ficou conhecido como neoliberalismo, a justificativa dada foi a atribuição do déficit fiscal ao Estado do Bem-Estar Social, que teria sido implantado, graças ao poder dos trabalhadores e dos sindicatos, na social-democracia. Propuseram, portanto, uma política econômica que quebrasse a força dos sindicatos e das organizações dos trabalhadores. Por outro lado, como se sabe, o Estado do Bem-Estar se caracterizava por dar duas direções aos fundos públicos, uma parte dirigida ao capital e outra para os direitos sociais, como educação, saúde, moradia, férias, salário-desemprego, transporte etc., criando o salário indireto. Essa forma do salário desatou o laço que prendia o capital ao salário e que determinava o ritmo e o grau do desenvolvimento tecnológico. O salário indireto, que desatou o laço entre capital e salário, teve dois efeitos. Primeiro, o dinheiro deixou de ser o valor que servia para a equivalência de mercadoria e se tornou moeda, donde o monetarismo e o predomínio do capital financeiro. E depois, permitiu um desenvolvimento tecnológico sem precedentes na história. Mas o capital não tinha liquidez para tanto e precisou da quase totalidade dos fundos públicos ou investimentos estatais. O que só foi possível abolindo o Estado do Bem-Estar e introduzindo a forma neoliberal da economia e da política. Na economia, introduziu a desregulação e o fim da forma industrial fordista, isto é, a economia pós-industrial. Na política, introduziu o corte dos fundos públicos destinados aos direitos sociais, dirigindo-os ao capital. Juntas, economia e política produziram o encolhimento do espaço público dos direitos e o alargamento do espaço privado dos interesses de mercado. As novas tecnologias produziram sobre a organização do trabalho os efeitos que já mencionei e quebraram a força e o significado dos sindicatos. E não só deles, mas também afetou os movimentos sociais e populares de lutas por direitos.
Valor: Quais são as alternativas?
Marilena: Como não sou vanguardista e sou crítica da idéia de "consciência vinda de fora", segundo a qual os intelectuais de vanguarda trazem aos trabalhadores a "boa e correta consciência" e a "boa e correta organização", recuso-me a dizer o que os trabalhadores devem fazer para se organizar nessa nova forma do capital. O MST, os jovens franceses filhos de imigrantes, os jovens franceses contrários à lei do emprego proposta pelo governo francês, os movimentos sociais e populares que derrubaram Berlusconi na Itália, e muitos outros fatos que poderiam ser enumerados, indicam que há uma busca de formas de organização e de luta em curso.
Valor: Ainda é possível pensar a esquerda a partir das teorias marxistas, com uma classe trabalhadora tão enfraquecida?
Marilena: Você pode notar que tudo o que eu disse até agora é marxista. Portanto, o marxismo não precisa de uma classe trabalhadora fortalecida para analisar a realidade. Ao contrário. Historicamente, as análises marxistas visaram fortalecer movimentos operários em refluxo ou ainda não constituídos. É preciso compreender um aspecto da análise de Marx que, em geral, as pessoas desconsideram: Marx afirmou que, no modo de produção capitalista, a burguesia, ou qualquer forma que assuma a classe dominante, e o proletariado, ou qualquer forma que assuma a classe trabalhadora, não são os sujeitos históricos, pois o sujeito histórico é o capital, do qual as classes sociais são suportes. Portanto, a análise marxista se interessa pela ação do sujeito capital e pelos efeitos desse sujeito sobre os seus suportes sociais. Procurei, de maneira muito breve e sumária, assinalar a forma atual assumida pelo sujeito histórico capital. Quanto aos intelectuais de esquerda e aos intelectuais progressistas brasileiros, são eles que têm feito as análises sobre a gênese e a forma atual do capital. São eles que têm feito a crítica da ideologia pós-moderna. São eles que têm feito a crítica da ideologia da "sociedade do conhecimento", analisando as novas formas do poder do capital quando a ciência se torna força produtiva e quando as novas tecnologias, particularmente a digital e a multimídia, conduzem à oligopolização global dos centros de decisão e de poder sobre o conhecimento e a informação. São eles que estão no Fórum Social Mundial.
Valor: Voltando ao que disse agora sobre os intelectuais de esquerda diante do cenário atual. Criou-se um grande debate em torno da idéia do silêncio dos intelectuais. A tese era que progressistas teriam perdido a capacidade de julgar.
Marilena: Quanto ao silêncio dos intelectuais, o curso organizado pelo Adauto Novaes, para comemorar 20 anos de cursos organizados por ele, abertos ao público brasileiro, teve como título "O Silêncio dos Intelectuais". Esse título foi decidido por uma grupo de discussão em abril de 2004 - portanto, sem qualquer relação com a crise política que iria acontecer no Brasil em 2005. Eu fiz a conferência de abertura e meu tema foi uma pergunta: O intelectual engajado estaria desaparecendo? Tratei do silêncio dos intelectuais a partir da transformação da ciência em força produtiva, da oligopolização e centralização do conhecimento e da informação; da perda do espaço de pesquisa e de reflexão crítica pelas universidades, reduzidas à escolarização; da ideologia pós-moderna - que aceita a acronia e atopia ou a desaparição dos referenciais de espaço e tempo, produzida pela nova forma do capital e pelas tecnologias eletrônicas e digitais; que faz o elogio narcisista da intimidade, aceitando o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado instituído pelo neoliberalismo; que aceita o mercado fugaz e efêmero da moda como padrão para a cultura etc. Procurei mostrar também que a palavra "intelectual", introduzida por Zola, na França, no século XIX, a propósito do caso Dreyfus, significa o artista, o pensador, o professor, o escritor que falam em público. Ou seja, intelectual é aquele que fala em público em defesa de uma causa universal, fazendo a crítica dos poderes constituídos, propondo uma transgressão da ordem dada, realizando uma reflexão sobre a política e a cultura etc. Portanto, a expressão "silêncio dos intelectuais", em si mesma, é contraditória, pois quando um artista ou um pensador estão em silêncio, não são intelectuais. Como você vê, isso nada tem a ver com a crise brasileira de 2005. E, diga-se de passagem, se você pegar jornais, revistas, vídeos ou DVDs de programas de televisão, CDs de programas de entrevistas nas rádios e o que circulou diariamente na internet, a última coisa de que se pode falar, no Brasil de 2005, é de silêncio dos intelectuais. Nunca falamos tanto.
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