A nacionalização desmonta o projeto gestado na era FHC, diz Ildo Sauer
Por Maurício Dias, da revista CartaCapital
A crise política criada pela nacionalização das refinarias na Bolívia é uma das grandes evidências da reversão da hegemonia neoliberal no continente. Na lógica geral do movimento, o projeto de desenvolvimento do gás boliviano estava ancorado no desenvolvimento do mercado brasileiro, com risco assumido integralmente pela Petrobras. O objetivo, como lembra Ildo Sauer, diretor de Gás e Energia da Petrobras, era o de “viabilizar a monetização de reservas” que foram apropriadas por algumas empresas, a partir de acordos com o ex-presidente boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada. Progressivamente os recursos da estatal boliviana YPFB tornaram-se recursos privados das multinacionais. Inicialmente, bem no início dos anos 90, o objetivo era outro. Tratava-se, efetivamente, de um acordo de cooperação entre Brasil e Bolívia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como ministro das Relações Exteriores, assinou as primeiras notas reversivas que deram nova figuração ao projeto. Essa mudança, segundo Sauer, “fez da Petrobras o instrumento de políticas neoliberais que, no fim de 2002, projetaram um prejuízo de aproximadamente 1,5 bilhão de dólares para a empresa”. Sauer, 51 anos, professor titular do Instituto de Energia Elétrica da Universidade de São Paulo, nesta entrevista a CartaCapital revela parte dessa história e conta como a Petrobras conseguiu baixar o prejuízo da empresa, estimado agora em torno de 500 milhões de dólares. CartaCapital: A decisão de suspender os investimentos na Bolívia não é uma medida dura demais? Ildo Sauer: Na verdade, desde 2003 o investimento da Petrobras na Bolívia tem sido muito pequeno. Havia um clima de incerteza política que nos levou à cautela. Antes da posse de Morales havia um clima de incerteza total, inclusive com a deposição de um presidente. A relação estava difícil. Dos cerca de 1 bilhão de dólares investidos de 1996 a 2005, o governo Lula só é responsável por algo em torno de 90 milhões de dólares. Ou seja, menos de 10%. A relação empresarial e o ambiente político complicado precedem a posse de Morales. CC: Foi um investimento errado? IS: Absolutamente. Foi correto, na direção certa, dentro da concepção inicial de cooperação entre dois países. Não houve erro em produzir e consumir gás natural. Posteriormente, mudou a lógica que estava por trás daquele processo. E tudo ficou subordinado à lógica neoliberal da monetização. Fazer dinheiro fácil e rápido com os recursos naturais da Bolívia. Tudo articulado com o mercado brasileiro, onde havia, também, um governo operando com a mesma lógica. O paradigma supremo desse comportamento era a Enron, que, por sinal, faliu. CC: Como a Petrobras, empresarialmente, analisa a decisão de nacionalização? IS: A Petrobras foi tratada inamistosamente pelo governo Sánchez de Losada. Ele não nos dava acesso a coisa nenhuma para a privatização. A história do uso do gás boliviano é antiga. Desde os anos 30 e 40. Nos anos 60 a própria Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) encomendou estudos, desenvolvidos por Joaquim de Carvalho. Ele concluiu, naquele tempo, que em razão da escala, do volume, dos custos do gasoduto, não valia a pena. Em 1992, o então presidente Fernando Collor assinou, inclusive, um acordo no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), um instrumento dos anos 80 que dá proteção ao incremento das trocas comerciais entre os países. CC: Como foi mudado o curso dessa história? IS: Foram feitos diversos acordos suplementares, consolidados por um acordo principal formalizado, em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso. Há, por sinal, notas reversais assinadas por ele como ministro das Relações Exteriores. Criou-se todo um arcabouço institucional que previa, inclusive, a privatização do Gasoduto Bolívia–Brasil. Era um compromisso assinado pelo então ministro Raimundo Brito, no primeiro governo Fernando Henrique. Houve, também, um aditivo em 2000 que configura bem essa mudança. Resolveram aumentar o volume de gás boliviano importado para atender ao que seria um mercado industrial de gás no Brasil. Isso atendia a empresas do tipo Enron – uma das estrelas do movimento neoliberal – que buscavam poucos ativos e muita ação. Sempre com um garantidor. O risco era assumido por alguém, embora anunciassem que o risco era contido pelo próprio projeto que se auto-sustentava. CC: E nesse caso, quem foi? IS: Foi a Petrobras. Os dois riscos. O da compra de gás que permitiu todos os investimentos e desenvolvimento do mercado de gás na Bolívia e o da construção do gasoduto. O próprio gasoduto foi feito com a garantia da Petrobras. Embora ele pertença 49% a investidores privados, que aportaram 180 milhões dos 2 bilhões de dólares, coube à Petrobras o ônus de desenvolver o mercado de gás que, no fundo, garantia a receita que sustenta toda a festa anterior. CC: O que coube à empresa? IS: A Petrobras ficou com a obrigação de desenvolver mercado. Isso foi feito em duas etapas. A primeira delas, em 1996, previa a compra de 16 milhões de metros cúbicos de gás por dia. Naquele tempo se dizia o seguinte: um gasoduto que não tinha mercado garantido de um lado e nem o gás era garantido pelo lado oposto. Em 2000, o governo Fernando Henrique voltou à carga. Uma senhora chamada Rebecca Marques, estrela da Enron, que transitava com desenvoltura em influentes gabinetes públicos da Bolívia e do Brasil, organizou os interesses e a importação de gás foi ampliada para até 30 milhões de metros cúbicos por dia. CC: Mas havia demanda para isso no Brasil? IS: Isso foi feito, basicamente, para ancorar o programa de termoelétricas que virou, ao final, um grande fracasso. Tanto que o ano de 2002 foi encerrado com a projeção de um enorme prejuízo. Cerca de 1,5 bilhão de dólares que, hoje, reduzimos para alguma coisa em torno de 500 milhões de reais. Entramos no ano de 2002 com racionamento e, portanto, com queda no consumo de energia elétrica. Por outro lado, o choque cambial de 1999 tinha deteriorado completamente a competitividade do gás natural e o petróleo estava cotado entre 18 e 20 dólares o barril. Naquele momento era até explicável, do ponto de vista estritamente competitivo, que usinas movidas a gás pudessem competir com as hidráulicas. Quando o câmbio explodiu, com o combustível em dólar, a tecnologia em dólar, provocou uma deterioração em todas essas relações do contrato de suprimento de gás. A Petrobras ficou com um contrato na mão com a obrigação de retirar já nos meados de 2003 cerca de 24 milhões de metros cúbicos de gás por dia. Estava retirando 9 milhões e as termoelétricas não tinham entrado em funcionamento como previsto. Mas a empresa tinha de pagar por 24 milhões na produção e, no transporte, por 30 milhões de metros cúbicos por dia. CC: E como esses nós foram desatados? IS: Em 2002, antes da mudança de gestão, foi anunciada aquela expectativa de perda no negócio do gás e termoelétricas. O então presidente da Petrobras Francisco Gros assinou um Fato Relevante que pode ser conferido na home page da empresa. Criamos o programa de massificação do uso do gás, congelamos o preço que pagaria se retirasse ou não, se transportasse ou não, e transferimos esse benefício para o mercado para que, mais rapidamente, absorvesse esse gás. Foi um benefício enorme. Em 2003 o petróleo oscilava entre 23 e 25 dólares o barril. O gás chegava por quase 17 ou 18 dólares o barril. CC: A conjuntura de crise internacional favoreceu. IS: Claro que fomos ajudados pelo avanço do preço do petróleo no mercado internacional que tornou o gás altamente competitivo. Competitivo ainda hoje, mesmo com os aumentos recentes vinculados ao preço do óleo, mais o preço de transporte. O gás chega ao Brasil a um preço inferior a 30 dólares o barril equivalente. E substitui derivados de petróleo que têm o valor vinculado ao petróleo, hoje com preço superior a 70 dólares o barril. Essa é a razão pela qual há uma ansiedade pelo gás. Isso dá à indústria competitividade e melhora a qualidade ambiental e a qualidade de alguns produtos como o vidro, a cerâmica e outros. CC: A Bolívia agora vai, no mínimo, forçar a renegociação de preços. Para mais, evidentemente... IS: Em 2003, nós iniciamos conversas de renegociação de preços para menos. Não era competitivo. A previsão era de 300 milhões de dólares anuais só nesse negócio. Saímos disso através do desenvolvimento do mercado e graças à conjuntura internacional. CC: Mas e a renegociação...? IS: Não teve sucesso. Está aberta até hoje quando a Bolívia, inversamente, diz que vai invocar os mesmos mecanismos para pedir aumento.
Fonte: revista CartaCapital
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=1695