terça-feira, abril 25, 2006
Violência no Pará: ontem como hoje
Lúcio Flávio Pinto
Gramsci e o Brasil / La Insignia. Brasil, abril de 2006.
O assassinato do advogado mineiro Gabriel Pimenta em Marabá-PA, em 1982, é um daqueles casos emblemáticos de violência em região "de fronteira" que não podem mais ser tolerados, até mesmo por causa do avanço muito difícil, mas inexorável, da ordem racional-legal. Abaixo, Lúcio Flávio Pinto, editor do Jornal Pessoal, uma trincheira da legalidade no Pará, relembra os acontecimentos de 24 anos atrás. Trava-se, neste momento, uma dura batalha jurídica para levar a efeito o julgamento do mandante daquele crime... e de outros, que continuam a se repetir com insuportável regularidade.
Foi mais do que um bota-fora aquele encontro com Gabriel Pimenta na casa de Ruy Barata, no subúrbio de Belém, no início da década de 80: na verdade, seria a última vez que o veríamos vivo. Gabriel e Ruy comemoravam o sucesso da defesa dos posseiros do conflito da Fazenda Capaz, uma área de 100 mil hectares entre a estrada Belém-Brasília e Vila Rondon, na então PA-70 (hoje, BR-222), na região sudeste do Pará. Os posseiros emboscaram e mataram o fazendeiro John Davis, ex-piloto da Força Aérea dos Estados Unidos na guerra da Coréia, que se transformou em missionário e, depois, em proprietário rural, mas que era, sobretudo, madeireiro. Com o ex-coronel americano morreram dois dos seus filhos, Bruce e Mallory.
O conflito ocorreu em 4 de julho de 1976, exatamente quando os Estados Unidos comemoravam o bicentenário de sua gloriosa independência. Em tempos de regime militar discricionário, a mera e infeliz coincidência se transformou em atentado político contra o país amigo e ameaça ao regime. Caso de ameaça à segurança nacional.
Os posseiros foram presos, antecipadamente condenados e mantidos incomunicáveis, até que Ruy e Pimenta aceitaram o patrocínio. Pretora em São Domingos do Capim, a futura desembargadora (já aposentada) Martha Inez Antunes Lima relaxou a prisão dos acusados e instruiu o processo, que resultou na absolvição dos posseiros.
Essa combinação - de defesa articulada e Judiciário altivo - quebrou a litania da doutrina de segurança nacional em casos semelhantes, restabelecendo o princípio do contraditório e de uma defesa mais ampla do que aquela até então vigente na prática. Ruy e Gabriel Pimenta tinham motivos para comemorar. Só que o jovem advogado, de 27 anos, resolveu prosseguir, se estabelecendo em Marabá, capital de uma das regiões mais violentas da Amazônia, para continuar a defender lavradores.
Não foi longe. Em 18 de julho de 1982 foi executado friamente por um pistoleiro profissional contratado por José Pereira da Nóbrega, mais conhecido por Marinheiro (que morreria, de causa natural, 17 anos depois). No início deste mês foi preso o fazendeiro Manoel Cardoso Neto, o Nelito, que estava foragido havia 22 anos, acusado de ser o mandante do crime. Irmão do ex-governador de Minas, Newton Cardoso, o truculento Nelito parecia ter largos costados. Preso em Minas e recambiado para Belém, vai agora ser submetido a julgamento, se o júri anunciado realmente se concretizar.
Na mesma época, mas em São Paulo, foi preso outro fazendeiro, Marlon Lopes Pidde. Ele é acusado de participar de uma das mais cruéis chacinas na história recente da Amazônia: cinco posseiros que ocupavam terras na fazenda Califórnia III, que Pidde comprara com dinheiro do garimpo de ouro de Serra Pelada, foram amarrados e queimados vivos. Seus cadáveres foram em seguida atirados no rio Itacaiúnas, que deságua em Marabá. O crime, apesar dessas características, já parecia acobertado pela impunidade. Os outros três criminosos, inclusive um irmão de Pidde, ainda estão foragidos.
A prisão desses indivíduos deve ser creditada à persistência de certas autoridades em cumprir seus deveres. O julgamento dos dois mandantes das mortes é uma imposição do foro de civilidade que pretendemos ter. Mas, de lá para cá, a multiplicação de crimes de igual violência leva a pensar que a intimidação estatal não tem sido eficaz. A situação só fez piorar desde então. E a revolta já não é a mesma que os assassinatos de duas décadas atrás provocaram. A sociedade parece estar se acostumando à selvageria.