terça-feira, abril 11, 2006

A imprensa e Lula em 2106

Urariano Mota

Imaginem o historiador que buscar compreender o Brasil nos próximos cem anos. Imaginem esse nobre homem a pesquisar o Brasil nos jornais brasileiros de 2006. Imaginaram? Agora vejam esse herói, que soube, em estrela remota, da viagem espacial de um brasileiro, e por isso procura um tal de Pontes, Bridges, ou algo assim.
Vejam então o que ele verá na Folha de S.Paulo de 31/3/2006:
"O vôo de Marcos Pontes (444º astronauta ao espaço) é, na realidade, uma grande jogada eleitoreira do governo. Ela não irá contribuir em nada para reafirmar o programa espacial brasileiro. (...) Sob o ponto de vista político, a Missão Centenário só terá repercussão no Brasil nas classes menos esclarecidas. Aliás, a associação do envio do astronauta brasileiro com o vôo do 14 Bis vai colocar em evidência que o Brasil, em cem anos, sofreu um grande atraso".
Ah, então o primeiro astronauta brasileiro existiu para resolver a sorte de uma eleição, o historiador pensará. Mas como esse vôo somente repercutiu entre os ignorantes do país, que eram a maioria, esse projeto eleitoral do espaço somente poderá ter sido mesmo um sucesso. Até mesmo no Congresso, porque...
"O deputado federal Geddel Vieira Lima (BA), da parcela oposicionista do PMDB, compara Marcos Pontes com Lula:
- O astronauta quase não sente o efeito da lei da gravidade. O presidente espera passar ao largo da gravidade da lei".
Se as leis se votavam no Congresso, estaria então o excelso deputado a lutar pela derrota do projeto da lei de gravidade?
Oh não, ó não, por favor, e o nosso historiador vai mais adiante:
"Com o dinheiro gerado por nossos impostos, estão sendo pagos US$ 10 milhões à empresa espacial russa para colocar um astronauta brasileiro em órbita. O Brasil precisa mesmo disso? É prioridade? Ou há nisso um fortíssimo odor da intenção de o governo (?) Lula utilizar esse evento como mais um espetáculo de autopromoção?"
Estaria então o selecionado leitor da seção de cartas ("Painel do Leitor") da Folha (31/3) a confundir a ISS, International Space Station, com o ISS, Imposto Sobre Serviços? Que estranhos times in the night, não é isto? Confusão total e absoluta na cabeça do historiador. Em razão do que desistirá de ir adiante ao ler o título de um texto de 3/4/2006: "Agenda de hoje inclui lançamento de moeda". Mais uma teste para a lei de gravidade, quase derrubada pelo Congresso, pensará.
Mar, céu e terra
Então o nosso futuro historiador mudará de página, de periódico, de documento. E vê, enquanto os olhos passeiam pela tela do tempo de 2006: "Lula defende frango contra alarde sobre gripe", e por não entender como pode aquele presidente do começo do século, além de sindicalista, político, referência na esquerda mundial do século 21, ter sido também um defensor em tribunais dos animais frangos, e contra alardes "sobre", on, em cima da maldita influenza, procura ler com mais atenção a página do jornal que se chamava O Globo, 8/4/2006.
E leu, com dificuldade, porque o Globo não se permitia mais copiar e colar na sua mind:
"O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu ontem o papel de garoto-propaganda ao degustar pratos à base de frangos após assinar atos reforçando as medidas para impedir que a gripe aviária entre no país".
Ah, bom, defensor do frango quer dizer defensor dos criadores da ave, porque ao frango mesmo o presidente prefere defendê-lo bem assado. E passa a ver mais de 100 jornais de todo o Brasil a falar da gripe aviária e da sua intima relação com o governo Lula. A saber, pelos mais diversos títulos: "Consumo mundial de aves cai até 25% com o temor da gripe... o governo Lula ontem", ou, ainda, "Para presidente, doença não chega ao país", na Veja, que alguns chamam de "ora, veja!", em igual galopar.
Então o nosso historiador do futuro faz uma impressionante descoberta. Em 2006, na imprensa brasileira todos os fatos, todas as coisas, todos os acontecimentos, fossem do mar, da terra, do ar, do pensamento, dos répteis, das temíveis cobras corais, dos peixes até o mico-leão-dourado, todos os reinos e possíveis ocorrências se relacionavam, sempre, com o governo Lula. Para mal, of course.
Por exemplo, ao pensar em Luxemburgo, o técnico de futebol, o novo-rico daqueles velhos anos, lá aparecia na tela:
"Luxemburgo testa fama de rei do ponto - Vanderlei Luxemburgo ostenta o melhor histórico do futebol brasileiro quando o campeonato é disputado em pontos corridos", e ao lado, muito a propósito: "Opine: O Governo Lula demonstrou até agora que: a) O importante é reforçar o `cofre´ para as futuras eleições; b) Vale tudo para livrar a pele de quem aproveitou a passagem pelo governo...." (jornal Agora MS, 29/3/2006).
Creiam, não há exagero nessa antecipação do futuro. Porque o historiador viu a propósito do mico-leão-dourado, naquele espantoso 2006:
"Entidades aproveitam ONGs para servir a propósitos obscuros - ... São entidades que defendem causas que vão da proteção do mico-leão-dourado ao direito de madeireiros clandestinos cortar árvores na Amazônia...".
E finalmente a relação entre o presidente e os macaquitos lindos, no mesmo texto:
"Com o governo do PT, as ONGs e o Estado brasileiro exercitam uma simbiose sem precedentes. Quando a oportunidade se apresentou, o presidente Lula não hesitou em colocar em público um boné vermelho do MST..." (24 Horas News, 23/3/2006).
E as buscas, e as espantosas associações ocorriam, na liberdade mesma do pensamento, correspondida nas mais absurdas relações por todos os jornais. O historiador foi pensando:
MAR - "Consideram não ser impossível que Lula acabe se saindo muito mal do mensalãogate, caseirogate... Se o mar de lama avança, abre-se um vácuo na sucessão presidencial" (Folha de S.Paulo, 5/4/2006).
CÉU - "Lula é um bom relações-públicas. Mas o Brasil precisa mais que isso. E rápido. Minha intuição é que esse céu de brigadeiro no mundo vai acabar" (Entrevista, modo de dizer, entrevista de Fernando Henrique Cardoso à revista Exame, 31/3/2006)
TERRA - "Invasões de terra mostram 'desencantamento' com Lula" (BBC Brasil, 22/3/2006)
"Ele empunhou a bandeira brasileira, conversou com crianças em uma escola, com os repórteres e até com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva... os cerca de US$ 10,5 milhões que o Brasil pagou para a Rússia lançar Pontes a bordo de um foguete Souyz seria melhor gasto em pesquisa aqui na Terra" (Do correspondente do New York Times no Brasil, em 8/4/2006)
Matou a pau
E, acreditem, até mesmo diante de palavras que evocavam e invocam sentimentos bons na alma, positivos, ocorria uma coisa ruim :
AMOR - "Estou revoltado com as críticas do PT - ... Então o Lula vem aqui... Me perguntaram do Rosinha, e eu disse: `Rosinha, leia o relatório, pelo amor de Deus, você está me decepcionando´". (Entrevista do relator da CPI dos Correios, na Gazeta do Povo, 8/4/2006)
Então o nosso historiador em 2106, por piedade a quem o adivinha cem anos antes, resolveu encerrar a pesquisa com a primeira página dos jornais brasileiros do sábado, 8/4/2006.
Na Folha de S.Paulo, uma trabalhadora da Varig chorava, e abaixo da foto aparecia:
"Crise no governo/Violação de sigilo - PF pede que o Coaf explique investigação sobre caseiro".
No Globo, mostrava-se uma foto com o título "Frango, Gripe, Lula e Inflação". Nela o presidente mastigava uma coxa de galinha, sob o olhar oblíquo, atravessado, de um cozinheiro.
No Estado de S.Paulo, "Bombas matam 79 em atentado no Iraque", pero, ao lado, "PF suspeita de procedimento ilegal do Coaf em relatório contra caseiro".
E no Jornal do Brasil, "Governo rejeita socorro à Varig e crise se agrava".
Pero nada, nada se comparava ao incidente de uma peçonheta cobra coral que atravessou o caminho do presidente em 2003, o historiador lembrava. Fora em Buíque, Pernambuco. Um agricultor, para defender o seu presidente, matou a cobra a pau. Pergunta de matéria do Estado de S.Paulo (29/4/2003):
"Morte de cobra em Buíque foi crime ambiental?"
Que país singular, se disse o historiador. E subiu para mais confortável estrela.