Entrevista a Bob Fernandes
Eros Grau, 65 anos, é ministro do Supremo Tribunal Federal. Nessa condição, ao conversar com Terra Magazine, evitou citar nomes de instituições, casos em julgamento, julgados ou por julgar, e da mesma forma contornou a citação de pessoas, evitou "fulanizar" questões, como diz e repete. Mas nem por isso deixou de, com serenidade e coragem, expor suas opiniões sobre temas, atores embutidos, que sacodem a República há quase um ano.
O ministro discorre sobre sua percepção de que membros dos três poderes, "excessivamente impressionados pela mídia",não resistem aos apelos dos palcos, câmeras e microfones, e alerta para os riscos pós-ribalta. Entre eles os decorrentes do vazamento de informações à imprensa via CPIs. Sempre sem "fulanizar", lembra que CPIs são instrumentos das minorias, devem funcionar apegadas ao "fato determinado" que as geraram e que se escaparem a tal desenho "se instala a desordem e o estado acabaria ingovernável".
O ministro aborda ainda, de maneira geral, o papel da imprensa: A imprensa de certa forma incendeia um pouco a emotividade. (...) Aí há uma questão, vamos dizer assim, de preservação dos valores democráticos. Nessa coisa da imprensa atuar com uma certa emotividade - e eu estou medindo muito as palavras - e com o intuito da partidarização, ela deixa de cumprir o seu papel fundamental para o funcionamento da democracia e pode acabar comprometendo a democracia. Isso é muito importante, porque a imprensa acaba atirando contra ela própria, contra si mesma. Num ano de acirrados embates na política e de muitas críticas e cobranças ao Supremo Tribunal Federal o que o preocuparia? Eros Grau: O que levou a esse ambiente foi mais de um motivo. Num primeiro momento você pode dizer que houve uma banalização da atuação do Supremo, mas uma banalização não no sentido negativo e sim num sentido positivo: ela se tornou extremamente transparente.
O Supremo despiu as togas e chegou às ruas? Basicamente. O fato de a TV Justiça transmitir as sessões ao vivo e, sobretudo, o fato de ter havido um número muito grande de recursos ao Supremo em que se discutiam direitos individuais e questões políticas, trouxe o Supremo para a vida cotidiana.
Já se fala do Supremo nos bares e botecos do Rio, São Paulo, Salvador, Recife...? Exatamente, as tevês estão ligadas. Outro dia meu carro quebrou na Linha Vermelha, no Rio de Janeiro; aliás, eu me apavorei na hora. Aí, um guincho me levou até a Ilha do Governador e o mecânico começou a consertar o automóvel. De vez em quando ele me olhava, eu sentado de bermuda atrás, esperando, até que de repente ele se virou e disse: "O senhor é um homem da vida, não é? " e eu respondi: " Se o senhor me chamar de mulher da vida eu vou ficar ofendido". O fato é que o mecânico assistia a TV Justiça. Por conta disso há cartas de leitores para os jornais, rádios, a imprensa faz uma pressão muito grande, só que o Supremo não decide com base nisso, deve decidir com base na constituição, com muita serenidade.
E nem sempre está tudo no livrinho, há as chamadas exceções não é isso? É verdade, o velho Aristóteles já dizia que a lei considera sempre as coisas em termos gerais, ela não pode descer a pormenores, não pode prever tudo. Então o Supremo tem tido que regular situações de exceção e isso sempre é extremamente complexo, sobretudo quando você trata de temas apaixonantes como a política.O que houve, seguramente, não foi uma politização do judiciário, foi a política que bateu às portas do Supremo Tribunal Federal, por alguma razão.
Que razão seria essa? Porque, especialmente nesse momento, com as CPIs, há ritos constitucionais que têm que ser cumpridos por que servem hoje à defesa dos direitos dos acusados na CPI, das testemunhas, mas servem também ao homem que anda na rua, ao jornalista que quer a imprensa livre, ao dono da televisão que também quer a imprensa livre. Isso tudo depende do respeito rigoroso aos direitos e o que aconteceu foi que certamente houve alguns deslizes em uns tantos casos.
Deixa ver se eu estou entendendo: a velocidade e intenções do processo político e do processo midiático não têm nada a ver com a velocidade e as intenções dos julgamentos pelo Supremo e estaria havendo uma pressão, digamos que natural a esse contexto externo, para que o Supremo jogue o jogo dos demais atores? Não é só isso. Em um determinado momento se discutiu se num caso era necessário que todos os atos da acusação fossem feitos anteriormente aos atos da defesa...
...o senhor obviamente está se referindo ao processo de cassação do José Dirceu... ... não vamos identificar...
...fulanizar... ... não vamos fulanizar. Ora, qualquer pessoa de bom senso sabe que não tem sentido, é ilógico, exigir que alguém se defenda de uma acusação que ainda não foi inteiramente formulada.
Para isso não precisa nem ser jurista. Não precisa nem ser jurista. Então, num momento de paixão, de emoção, perde-se inteiramente o senso e é preciso então que alguém ponha as coisas de acordo com o que está previsto na constituição. Isso é uma coisa óbvia, mas foi preciso que o Supremo dissesse que era óbvio. Num momento de tranqüilidade social isso certamente não aconteceria, mas aconteceu porque há uma emotividade, uma paixão, e eu diria assim, uma vocação midiática muito grande.
Sempre sem fulanizar... no seu entender estaria havendo uma partidarização, talvez excessiva, por parte de quem relata os eventos? Todos, sem exceção, membros do poder judiciário, membros do poder legislativo e membros do poder executivo, hoje são impressionados excessivamente pela mídia. Não no sentido de que ela faça pressão sobre eles, mas o sujeito quer também aparecer na mídia; isso em todos os palcos, todos os atores, e aí de vez em quando ele passa por cima dos limites jurídicos. Por exemplo, o espetáculo midiático das CPIs.
A sociedade do espetáculo elevada à enésima potência. Exatamente, e aí se sacrificam determinados direitos e aí o poder que o cerca tem que ter serenidade e prudência pra fazer valer esses direitos.
Sem fulanizar, mas para que o internauta entenda melhor: digamos que determinada CPI foge ao chamado "fato determinado" e alguém recorre ao Supremo porque aquilo não poderia ser objeto de julgamento. O Supremo julga e eventualmente dá ganho de causa a quem recorreu e, em seguida, vem as críticas da mídia, do parlamento, porque o Supremo estaria "politizando as questões". É isso que tem acontecido em algumas situações? Em algumas situações é basicamente isso que tem acontecido. Agora, isso não é necessariamente mal porque é uma expressão da chamada liberdade de imprensa. O que acontece é que o juiz não pode se deixar levar por essas pressões...
...pela sociedade do espetáculo e pela pressão da mídia... ...porque ele tem que se decidir com prudência e serenidade, essas duas palavras-chave, indispensáveis a que cada um nessa sociedade esteja protegido. Quando o Supremo toma uma decisão que contraria a emotividade do Bob Fernandes, o Bob Fernandes nem está percebendo que, na verdade, o Supremo está garantindo a liberdade dele, Bob Fernandes...
... e foi ... ... foi o que eu disse quando houve uma determinada discussão e que aparentemente havia um conflito entre o legislativo e o judiciário. Eu disse que os membros do legislativo ficassem tranqüilos porque o Supremo Tribunal Federal sempre defenderá os valores e princípios da constituição. Isso é um negócio terrível, porque quando você se emociona você perde a serenidade.
O que é, exatamente, o fato determinado? Uma Comissão Parlamentar de Inquérito é um instituto democrático, garante às minorias a fiscalização da atuação das maiorias. Perfeito. Por essa razão é que se garante às minorias as CPIs, mas você não pode deixar que as minorias usem desse instrumento de modo a procurar inviabilizar o exercício do poder pela maioria. Isso não seria conveniente para a coisa pública, que a minoria a usasse única e exclusivamente para fustigar, para fazer política, para perturbar, começasse a questionar tudo indiscriminadamente...
...há quem perceba que em certos momentos isso está acontecendo. É possível que esteja acontecendo... eu não quero também particularizar porque amanhã ou depois posso ter que vir a julgar... o que diz a constituição é que esta é uma garantia das minorias, deve ser exercida sempre em relação a um fato determinado, ou seja, eu não posso criar uma CPI para investigar qualquer assunto...
Digamos que se resolva criar uma CPI para investigar loteria esportiva. Ela não pode, então, investigar salões de beleza etc... É evidente! Por essa razão a constituição fala claramente, no artigo 58 parágrafo 3º, que ela deve ter por objeto a apuração de um fato determinado e com prazo certo, porque senão você instala a desordem e o estado acabaria se tornando ingovernável.
Isso tudo o senhor está falando certamente por hipótese... Por hipótese. É o que está escrito, no artigo 58 parágrafo 3º, ou seja, tudo aquilo que eu investigar além do fato determinado constitui uma agressão também aos direitos daquele que investiga, porque amanhã ele pode ser o objeto de uma investigação.
O senhor está dizendo também que, se fugir ao escopo legal, isso pode ser desconsiderado quando chegar aos tribunais? Eventualmente será desconsiderado, mas eu não acho que isso seja relevante. O mais relevante é o processo, porque quando a minoria fica limitada a apurar só um fato determinado, ela tem a garantia de que amanhã ou depois, quando for maioria, também só o fato determinado vai ser investigado. Em caso contrário você inviabiliza o funcionamento da democracia.
Por que depois tem o troco? Sim, mas não é apenas isso. Cada vez que um direito é objeto de uma violência, de um sujeito que você não conhece, é como se o seu direito tivesse sendo violado. É aquela história do nenhum homem é uma ilha, por quem os sinos dobram, os sinos dobram por ti... e é isso que as pessoas não percebem, é isso que a imprensa de certa forma incendeia um pouco as coisas e esse incêndio não pode ser alastrado sobre os magistrados. O ministro do Supremo não pode se deixar levar por esse incêndio, porque senão tudo estará perdido.
Incendeia o quê? A imprensa de certa forma incendeia um pouco a emotividade. Aí há uma questão, vamos dizer assim, de preservação dos valores democráticos. Se eu jornalista, eu homem da rua, não for capaz de guardar um certo respeito pelas instituições, é por que eu não me dou nenhum respeito...
...se vale tudo... ... lógico, porque eu não dou a mim próprio nenhum respeito. A imprensa, cuja importância é fundamental para o funcionamento da democracia, estou imaginando a imprensa sem identificar se é o jornalista, o editor ou o dono do jornal, ele tem que saber que se esses valores da constituição não forem respeitados, amanhã ou depois também não se vai respeitar a própria independência, a própria liberdade de imprensa, esse é o ponto.
Uma outra questão, de leigo, que é o sigilo bancário: o sigilo existe, e é extensivo, também numa comissão parlamentar de inquérito? Quando se vaza um cheque, um documento do Banco Central, Banco do Brasil, aquilo é uma quebra de sigilo, ou não? O sigilo bancário, financeiro, é um direito de cada indivíduo, ele pode ser quebrado excepcionalmente, e para que ele seja quebrado, é necessário que um juiz autorize. Não pode ser quebrado de modo injustificado. Cada vez que uma comissão parlamentar de inquérito ou uma autoridade policial pede a quebra do sigilo tem que dizer por que, qual é a razão.
A CPI é o "depositário fiel" desse sigilo? Ela pode vazar isso, seja para jornalistas ou para quem for? Não, não. Ela quebra o sigilo e ela deve manter o sigilo, ela é depositária...
...ela não pode passar adiante? Não, não deve e não pode.
Legalmente não pode? Não, isso não é legal, não é regular, porque isso é uma agressão. Só se pode justificadamente quebrar o sigilo depois de se chegar a uma conclusão. Se a CPI chega a uma conclusão, aí vai divulgar, mas não vai divulgar o sigilo assim, como se fosse uma coisa banalizada.
Bem, há mais de uma década se intensificaram os vazamentos, às vezes diários, nas CPIs. Que conseqüências isso pode ter do ponto de vista legal? Isso teria que ser discutido, pelo que me consta isso nunca foi questionado...
Não foi questionado porque é através de nós, os jornalistas, que se vaza. O caso do caseiro Nildo é um escândalo, é criminoso, ilegal, e isso foi questionado todos os dias. Mas todos os dias, há anos, jornalistas trabalham com o vazamento de sigilos nas CPIs, ou não? Seria muito importante deixar muito marcado o seguinte: o direito é como o fármaco, é como o remédio: ele ao mesmo tempo pode ser o remédio que salva, mas pode ser o remédio que mata. Se for tomado numa dose exagerada vai acabar se tornando um veneno. Então essa coisa da imprensa atuar com uma certa emotividade - e eu estou medindo muito as palavras - e com o intuito da partidarização, ela deixa de cumprir o seu papel fundamental para o funcionamento da democracia e pode acabar comprometendo a democracia. Isso é muito importante, porque a imprensa acaba atirando contra ela própria, acaba atirando contra si mesma. É exatamente a medida do remédio que salva, e do veneno que mata.
Terra Magazine