quarta-feira, fevereiro 22, 2006
A farsa do niilismo vulgar
Para editor da Folha de São Paulo, Bono Vox é um chato e equivocado que acredita em duendes progressistas e que algo de novo pode brotar no Terceiro Mundo. É uma posição que mistura arrogância e ignorância, glorificando o umbigo como instância máxima da vida.
por Marco Aurélio Weissheimer
RECIFE - “Bono faz parte daqueles formadores de opinião do Primeiro Mundo Maravilha que acreditam em duendes progressistas do Terceiro Mundo. Estão sempre achando que vai brotar algo novo por aqui. (...) Um dos traços característicos dessa moçada é a correção política, aquela compulsão de chamar negros de ‘afrodescendentes’, falar em ‘opção sexual’, viver em permanente estado de solidariedade às minorias étnicas, colocar a culpa do terrorismo islâmico no Ocidente e recomendar filmes feitos nos cafundós do mundo sobre situações arcaicas e ‘humanas’”. As declarações são de Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustrada, da Folha de São Paulo. Poucas vezes, manifestou-se com tanta clareza o niilismo vulgar que vem crescendo entre os chamados “formadores de opinião”. O niilismo fica por conta de uma posição que mistura arrogância e ignorância e destila desprezo e cinismo em relação às possibilidades do Brasil e de seu povo. De um modo mais amplo, expressa um profundo desprezo pela política e a glorificação do umbigo como instância máxima da vida.A vulgaridade fica por conta da artificialidade que alimenta essa visão. Na primeira metade do século XX, a Europa foi devastada por duas guerras mundiais, que causaram grande sofrimento e dor a milhões de pessoas. A palavra barbárie adquiriu contornos mais nítidos. As gerações que viveram no pós-guerra carregavam muita dor na alma. Diferentes formas de niilismo floresceram na literatura, na filosofia, no teatro e na política. Mas era um niilismo justificado. Tinha, pelo menos, duas guerras mundiais e milhões de mortes nas costas. E o que alimenta posições como a citada acima, que criticam os que “estão sempre achando que vai brotar algo novo por aqui”? Não é a crise do mensalão, como alguém poderia pensar. A visão expressa por Marcos Augusto Gonçalves é mais antiga e vem ganhando crescente espaço na mídia. Contra o “politicamente correto”, a frase “politicamente incorreta”, a tentativa de uma “boutade” espirituosa, o cinismo de rodapé.Mas não se trata apenas de atacar o politicamente correto. A crítica à “chatice’ de Bono Vox tem outros alvos. O líder do U2 é também um equivocado, diz o autor: “mal desembarcou no Brasil e já saiu correndo para emprestar seu prestígio a Lula. Nenhum questionamento, tudo beleza: a corrupção do PT e o faz-de-conta do presidente devem ser uma invenção da direita que não compra discos do U2”. O adorador de “duendes progressistas”, além de chato e equivocado, é um completo imbecil, portanto. Assim como o são, para o autor, as cerca de 140 mil pessoas que lotaram o Morumbi em duas noites. O que está subentendido no artigo é que Bono deveria ter lido a Folha de São Paulo, ao desembarcar no Brasil. Aí seria alertado para o perigo dos “duendes progressistas”, para o delírio daqueles que acham que “vai brotar algo novo por aqui” e, é claro, para a corrupção do PT. Do PT, sim, pois, como se sabe, PSDB, PFL, PMDB e outras siglas menos cotadas estão livres deste vírus.A descrença em relação à possibilidade de “brotar algo novo por aqui” guarda curiosa relação com recentes declarações do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para quem a recuperação de Lula nas pesquisas deve-se à grande massa de desinformados que habita a Pindorama. São pessoas “legais”, assim como Bono, mas profundamente equivocadas. Além de acreditar em duendes, insistem em acreditar na possibilidade do novo, por mais que as decepções se acumulem neste sentido. Vale a pena lembrar que, quando FHC assumiu a presidência da República pela primeira vez, foi decretada a morte da “era Vargas” e o ingresso definitivo do Brasil na globalização modernizadora. Como não há a menor possibilidade de invenção do novo, restaria a nós, filhotes de duendes, aderir à nova onda global e ouvir os conselhos de “velhos amigos” como Henry Kissinger e George W. Bush que não cansam de nos advertir para os perigos do “bom-mocismo” e da “chatice”.Outro antídoto contra a chatice – atenção, Bono Vox – poderia ser uma conversa com a gente boa da Opus Dei, que vêm orientando espiritualmente o governador da “locomotiva do Brasil”. Assim, o músico não teria saído correndo para “emprestar seu prestígio a Lula”. E, de quebra, poderia ter recebido de presente um chicotinho para se penitenciar de seus pecados “terceiro-mundistas”. Poderia ter conversado também com o prefeito da capital da locomotiva para divulgar em seus shows algumas idéias revolucionárias como rampas anti-mendigos e publicidade em uniformes escolares. Bono poderia, então, parar com essas bobagens de “chamar negros de afrodescendentes, falar em opção sexual, viver em permanente estado de solidariedade às minorias étnicas, colocar a culpa do terrorismo islâmico no Ocidente e recomendar filmes feitos nos cafundós do mundo sobre situações arcaicas e humanas”.Minorias étnicas, afrodescendentes, opção sexual, situações arcaicas e humanas...quanta chatice, quantos equívocos, que expressões desagradáveis. O artigo de Marcos Augusto Gonçalves lembra uma charge de Carneiro Vilela, publicada em 1872, na revista “América Ilustrada”. É uma visão humorística da passagem dos “tigres” pela ruas de Recife. Tigres eram as barricas e tonéis de madeira que acumulavam matérias fecais no interior das casas e prédios. Quando repletos esses depósitos eram carregados pelos escravos que jogavam o conteúdo fora, nas praias, mangues, rios ou quintais. Com o tempo, os negros que carregavam as barricas também passaram a ser chamados de tigres. Pois bem a charge mostra alguns negros carregando as ditas barricas e alguns “homens de bem”, com lenços tapando a boca e o nariz. O texto, traduzido para o português corrente, é auto-explicativo: “É triste! É ridículo o que se vê. Há ruas pelas quais não se pode passar ao meio dia sem que se fique bêbado pelo sutil aroma que exala dos tigres, que nas barbas e ventas dos cidadãos, passeiam sem medo e sem vergonha. Ah, polícia! Ah fiscais! Ah municipalidade!”. Sorte dos tigres que Serra não dirigia a municipalidade de Recife à época.O cinismo dos “cidadãos esclarecidos” de Recife, em 1872, é primo-irmão do niilismo vulgar do editor da Folha de São Paulo. Ambos não se cansam de denunciar essas pessoas desagradáveis, politicamente corretas, que empestam o ar com sua compulsão em defender “frascos e comprimidos” (mais uma gracinha de Gonçalves, citando Rita Lee). Não é preciso entrar no mérito da qualidade das músicas do US ou da militância de Bono Vox em defesa da paz e da tolerância (ai, que chatice!). O autor do texto em questão, na verdade, não está exatamente preocupado com isso. O que o incomoda, fundamentalmente, é a própria idéia de militância, de compromisso com os oprimidos, com a política, entendida como a via para produzir algo de novo. Para ele, nada de bom pode surgir dessa terra, habitada por tigres equivocados, chatos e desinformados. A única coisa que essa gente tem a fazer é carregar as barricas de excrementos produzidos pelos cidadãos de bem, sofisticados e informados. De preferência, sem exalar odores e emitir sons nas ruas que possam perturbar a ordem pública. Que gente chata, essa!!! Como nos livraremos dessa raça???
* Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (E-mail: marco@cartamaior.com.br)
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