sexta-feira, janeiro 13, 2006
Sobre Cinemas, Aspirinas e os Urubus
Cinema brasileiro, em tudo o que se pode ser. Em tudo o que devemos, universalmente, ser, como linguagem, como estética, como política, como gente.
Katarina Peixoto
Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, Brasil, 2003) deve ser visto por muitas e boas razões. Road movie premiado internacionalmente, conta com um argumento rigoroso, sustentado com veracidade e refinamento. É um filme de atores, que secundariza, com propósito, a exuberância da paisagem sertaneja. E tudo é pensado e dito para ser assim, com a adequada pretensão de universalidade, sem estereótipo nem caricatura. Trata-se de um filme extraordinário, sobre o poder do encontro com a diferença e da descoberta do acaso, como chaves para os ajustes do próprio destino, frente à “necessidade” da história.
Filme que dá o que pensar, também, diante das mesquinhas polêmicas que se tentam criar, sobre o cinema brasileiro e as mudanças de financiamento em curso. Cinema, Aspirinas e Urubus é uma obra prima que, por si só, responderia suficientemente ao delírio segundo o qual um filme como esse teria guarida sob um “totalitarismo”. Seria mais uma vertente do IGDA, o índice de desfaçatez apresentado por Flávio Aguiar, essa acusação tacanha e arrogante, não fosse também um sintoma do que há de insuportavelmente verdadeiro (segundo a picaretagem da acusação mesquinha) nesse trabalho primoroso de Marcelo Gomes.
A aposta do diretor pernambucano é mais arrojada e consistente do que a defesa normativa de uma saída, tanto à miséria e à desolação da guerra, como à miséria e à desolação da seca, no sertão nordestino. Porque a esperança que há repousa, decisivamente, na linguagem de que o diretor dispõe, através de personagens tratados com profundidade e carne e osso, exatamente como pode ser todo e qualquer um, se houver respeito, o mesmo que o diretor tem pelos personagens que organizam, com suas escolhas frente à carniça, a grande narrativa (em roteiro também primoroso) do filme.
Trata-se da história, em sentido forte, do encontro de um alemão refugiado da Segunda Guerra e de um retirante que quer ir para o Rio de Janeiro, nos idos de 1942, no sertão pernambucano. O alemão é representante comercial da Bayer, que vende aspirinas numa caminhonete depois da exibição, em telão improvisado, de um comercial da Aspirina. Ele tem a ocasião de dar caronas aos sertanejos que estão na beira da estrada, dentre eles o retirante Ranulpho.
O primeiro, recusa-se a fazer do outro carniça; o segundo, recusa-se a se tornar carniça. Os urubus, comuns nas terras áridas do sertão, também devem ser lidos (em observância à legítima e autorizada pretensão dessa obra-prima), como o determinismo da história (a guerra, a miséria e sua barbárie, na seca).
O filme trata do que pode o acaso se, e somente se, o encontro com ele for honestamente implacável, como entrega e recebimento. A relação do personagem Johann (o ótimo Peter Ketnath, ator alemão que encarna o refugiado) com a personagem que nos concerne, Ranulpho (o extraordinário João Miguel), é o fio da narrativa cuja pretensão universal ganha, ao longo do filme, autoridade.
A narrativa profunda, porém, nunca resvala para o mundo interior. A subjetividade, assim, é tomada pelo que é: uma cebola, mais ou menos individual, mais ou menos histórica. Pois as “cebolas” do alemão refugiado e do retirante contêm camadas comuns que nos concedem uma narrativa atual, honestíssima e, sobretudo, luminosa, do que ainda se faz e pode fazer o encontro entre gente no pior dos mundos. Uma ode universal contra a barbárie, que se estende brilhantemente a uma linguagem cinematográfica necessária e muito faltante no cinema brasileiro.
Por isso o filme deve ser visto. Para todos e cada um, que pensam sobre ética; para todos e cada um, que experimentam o esmagamento da barbárie, tantas vezes vestida do caráter determinista da história; para todos e cada um, que levam a sério o respeito e assim suspeitam dos próprios preconceitos. Para todos e cada um, que respeitam sem pensar muito, e que sabem rir (o filme contém cenas hilariantes eternas).
Como resposta, enfim, à cretinice que pretende assolar essa grande aposta que está sendo feita, por essa gestão do governo federal, no que concerne ao cinema nacional. O cinema novo que está sendo feito em Pernambuco, ao que tudo está indicando (Amarelo Manga, Cinema, Aspirinas e Urubus, Árido Movie, Deserto Feliz são manifestações disso), constitui-se como prova, já, de que aquilo tomado por alguns como insuportável é na verdade a mais luminosa via, sobretudo como linguagem, para que algo como Cinema Brasileiro mereça sentido. E louvor. Finalmente.
É isso o que parece insuportável, aliás, aos que pretendem tratar Ranulpho como presidiário dos cárceres, vítima de massacres organizados por fascistóides obesos cujos parentes torturavam durante a ditadura militar. Não nos enganemos: o conteúdo fascistóide, travestido de humanista - com galãs globais enganando a respeito de uma vida que não conseguem respeitar, como linguagem que lhes é rigorosamente sonegada ou simplesmente alheia -, quer saber do nordestino como sua periferia e sua violência. Tem a miséria como objeto (de fascínio de classe média iludida a respeito do próprio esclarecimento, ou de humanismo falso) de uma linguagem que o estanca na única medida que lhes é suportável: a violência, o estranhamento, a bizarrice.
Se o retirante não é miserável, ele é então gente. Se o encontro de refugiados não é objeto de uma normatização babaca e cínica, ele é então uma possibilidade, em sentido forte, de uma linguagem. É essa linguagem que os outrora portadores de grandes e praticamente monopolizadas verbas não podem suportar. E é daí que vem a acusação de totalitarismo, com um argumento tão tacanho que nem merece esse nome.
Quem ainda não assistiu a esse filme extraordinário, vá correndo ao cinema. Isso é o cinema brasileiro, em tudo o que se pode ser. Em tudo o que devemos, universalmente, ser, como linguagem, como estética, como política, como gente.
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