terça-feira, janeiro 10, 2006


LULA é um desses moleques do Brasil, que vai dando seus dribles de Garrincha no doutorzinho "dono" da bola... AM

Por falar em transe...

Falar em 'transe', pra mim, é falar de Glauber Rocha. E cada vez mais, nos últimos tempos, quanto mais vejo e revejo "Terra em Transe".

Mas -- verdade seja dita --, penso também cada dia mais freqüentemente que estamos saindo do transe. Como se estivéssemos começando a nos preparar para filmar outro filme.

Na transição entre a terra em transe de Glauber e o filme que nos preparamos para filmar, em 2005, 6 (e daí em diante), vejo sempre as imagens de "Glauber, labirinto do Brasil", de Sílvio Tendler, um filme que precisou fermentar por 20 anos, escondido, invisível, antes de poder ser visto.

Não deixa de ser impressionante consttar que, em torno do Glauber morto, dia 22/8/1981, estavam dois (então) autores-personagens que, hoje, em 2006, já têm de ser vistos, completamente, como só personagens de folhetim, de filme-B; pior: já têm de ser vistos como só marionetes-zumbis, ou só como caricatura. O tempo os desmascarou.

Falo, em matéria de ex-autores e hoje só marionetes ou só caricatura, que foram desmascarados pela história, de 1981 até 2005-6, de Arnaldo Jabor e Ferreira Gullar.

Os dois choraram no enterro de Glauber. Jabor, de fato, agarrado ao caixão, soluçando. Os dois sobreviveram a Glauber. Mas os dois morreram imediatamente depois, sem glória nem grandeza e sem enterro mítico. Os dois, hoje, estão por aí, como fantasmas do próprio passado, reduzidos a nada.

Jabor e Gullar, hoje, são a cara escrachada da parte ridícula do que já podemos ver melhor, agora, quando o transe começa a dissipar-se. Jabor e Gullar são a parte do transe que, hoje -- e para sempre -- fazem a vergonha do Brasil. Esses dois podem, facilmente, ser apagados dos fotogramas do documentário que registra o enterro de Glauber, sem que esse apagamento altere o passado: foram decifrados e devorados, como esfinges fajutas; perderam-se no labirinto. Dançaram.

CONTUDO, no mesmo documentário, do enterro de Glauber, está também Darcy Ribeiro. E Darcy Ribeiro é a cara bela, grandiosa, do fim do transe. Por Darci Ribeiro, afinal, encontramos o caminho pra sair do transe e, de quebra, pra nos vingar dos Jabores e dos Gullar. Darci Ribeiro e Glauber, mortos, estão mil vezes mais vivos que Jabor e Gullar, vivos.

Sobre "quem somos", é preciso reler Darcy Ribeiro, sobretudo em "O Povo Brasileiro":
"Mas esses índios que morriam sobreviviam naqueles mestiços que nasciam. Somos nós que carregamos no peito esses índios, os genes deles para reprodução e a sabedoria deles da mata. O Brasil só é explicável assim: é uma coisa diferente do mundo..."
E, depois, mais Darcy Ribeiro:
"E esses negros não podiam falar um com o outro, veja esse desafio como é tremendo. Eles vinham de povos diferentes. Então, o único modo de um negro falar com o outro era aprender a língua do capataz, que nunca quis ensinar português. Milagrosamente, genialmente esses negros aprenderam a falar português.

Quem difundiu o português foi o negro, que se concentrou na área da costa de produção do açúcar e na área do ouro... Mas preste atenção: com os negros escravos vinham as molecas de 12 anos, bonitinhas. Uma moleca daquelas custava o preço de dois ou três escravos de trabalho. E os donos de escravos queriam muito comprar, e os capatazes também. Comprar uma moleca pra sacanagem. Mas essas molecas pariam filhos, e quem era o filho? Era como o filho da índia. Ele não era africano, visivelmente. Ele não era índio. Quem era ele ? Ele também era um "zé ninguém" procurando saber o que era. Ele só encontraria uma identidade no dia em que se definisse o que é o brasileiro."
E mais Darcy Ribeiro, já chegando aos nossos dias:
"Esse país tomou conta de si pela primeira vez num movimento fantástico – a Inconfidência Mineira. (...) Tiradentes foi esse herói nacional fantástico, um homem sábio, engenheiro que fez o serviço de águas do Rio de Janeiro, que fez o planejamento dos portos do Rio... e que conspirou na Europa, em Portugal e conspirou com os norte-americanos também. Era um intelectual que lia, conhecia a constituição americana e queria fazer uma república. Era respeitado pelos magistrados, pelos coronéis militares, pelos poetas, por aquele grupo atípico de Minas que quis criar uma República Brasileira, criar um Brasil e criar brasileiros, dando dignidade. Mas os portuguesas abafaram isto tão bem que continuou soterrada a idéia de liberdade e de autonomia do Brasil... "
"A herança maldita"
"Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre marcados pelo exercício da brutalidade sobre aqueles homens, mulheres e crianças. Esta é a mais terrível de nossas heranças."
"Conter os possessos"
"Mas nossa crescente indignação contra esta herança maldita nos dará forças para, amanhã, conter os possessos e criar aqui, neste país, uma sociedade solidária".
É isso.

Para continuar o processo de sair do transe, com mapas confiáveis do passado e do futuro, é olharmos para nós mesmos e nos reconhecermos, afinal, vistos com nossos próprios olhos. Para isso, temos de aprender a rejeitar todas as leituras e interpretações que nos descrevam como "peru bêbado", como "sapo barbudo", como "analfabetos", como "incompetentes" etc. Para tanto, é preciso aprender a rejeitar TODOS os discursos da tucanaria. Se não havia 'sociólogos' em "Terra em Transe", é porque NENHUMA 'sociologia' é indispensável para que nós nos vejamos a nós mesmos. Na dúvida, chute canela de sociólogo uspeano. Melhor chutar canelas do que não se entenda, do que fazer reverências ao que não se entenda. É a lei da selva do zé-ninguém.

Além disso, é preciso continuar denunciar a herança maldita, apareça ela como aparecer e sob todas as máscaras que ela invente de usar. Para isso, temos de aprender a responder, na lata, na buxcha, a todo o conversê 'midiático' onde ainda sobrevivam os fantoches-zumbis-do-passado-inventado, como os Jabores e os Gullar.

E temos, também, que "conter os possessos". Essa parte da receita é importantíssima. É preciso conter todos os ossessos; e insistir no rumo de construir uma sociedade solidária onde jamais houve nenhuma sociedade solidária, em mais de 500 anos, mas onde sempre houve FHCs, Bornhausens, ACMs, Azeredos.

Todos esses movimentos estavam contidos e representados na eleição de Lula, em 2002. Apenas que, talvez, tudo isso ainda estivesse denso demais, condensado de mais, quase que em estado de 'pura energia', difícil de ver e, sobretudo, difícil de entender e de domar. Essa não é uma doma simples!

Muito disso tudo continua contido e representado na campanha da reeleição de Lula. E talvez muito disso tudo ainda esteja condensado demais. Esses processos são longos e demorados.

Quase sempre, esses processos históricos são expressos, antes, pela arte, na arte, do que na consciência do homem-da-rua. Por isso o homem-da-rua precisa de arte, assim como a arte precisa do homem-da-rua. Todos esses processos são lentos.

De certo, GARANTIDO, é que a eleição de Lula não foi a 'inauguração' de nada: foi um passo a mais, mais um, numa mesma longa estrada complexa, na qual, em 81, Tendler documentou um encontro entre Glauber Rocha e Darcy Ribeiro; um ajudando o outro a manter-se no rumo. Ambos indispensáveis: Glauber olhara e mostrara a nós todos o passado contido naquele presente em transe; e Darcy olhava o futuro contido naquele presente e, pelo menos, DESEJAVA, já, furiosamente, sair do transe.

Esses dois olhares -- e talvez, tb, um pouco da 'fúria' de Glauber e de Darcy Ribeiro -- foram e são indispensáveis, até hoje -- como foi e é indispensável o olhar do documentarista. Mas a verdade é que Darcy Ribeiro, naquele enterro, ali mesmo, já sinalizava o caminho adiante:
"-- O Brasil com que vc sonhou, Glauber, vai ser. Há de ser. Será".
Em 2006, portanto, é tocar o bonde. O transe pode estar começando a dissipar-se. Glauber vive.

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Pra ler, sobre Darcy Ribeiro:
http://www.ensayistas.org/filosofos/brasil/ribeiro/introd.htm (dentre outras páginas)

Pra ler, de Darcy Ribeiro:
Trecho de "O Brasil como problema" (Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1995):
http://www.casadobruxo.com.br/ilustres/darcy_prob.htm

Trechos de "O Povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil" (São Paulo: Companhia das Letras, 1996):
http://www.casadobruxo.com.br/ilustres/darcy_povo01.htm
http://www.casadobruxo.com.br/ilustres/darcy_povo02.htm
http://www.casadobruxo.com.br/ilustres/darcy_povo03.htm

[Essas são dicas sem muita pesquisa. Há muitas outras, provavelmente mais importantes. O negócio é se mexer, achar as coisas e ler.]
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Brasil em transe

“Ao cretino fundamental, nem água” (Nelson Rodrigues, entrevista de 1978).

Soçobrava a escravidão feito alma penada e a velha República oligárquica fragmentava-se. Em busca da identidade nacional vieram dois gigantes nordestinos: o sergipano Manuel Bomfim e o pernambucano Gilberto Freyre.
Vasculhando os escaninhos da Colônia, interrogavam-se: quem somos?
Pioneiro na crucial questão, Bomfim publicou O Brasil na América (1929), e pouco antes de sua sofrida morte, O Brasil Nação – realidade da soberania brasileira (1931). Freyre tornou-nos conhecidos no mundo com Casa-Grande & Senzala (1933) – clássico da sociologia -, além de vastíssima obra sobre nossas entranhas. Seu Nordeste (1936-7) é simplesmente primoroso, vale lembrar.
Os dois, quase uníssonos apologistas da fusão português-negro-índio, do excepcionalíssimo caráter brasileiro, inspirador, futurístico.
Também se entrecruzaram na crítica à Revolução de 30, todavia por razões distintas. Bomfim, um nacionalista rebelde, a ela se referindo, disse que “a agitação política atual, por mais profunda que pareça, não realiza nenhuma das condições de uma legítima revolução” (O Brasil Nação).Já Freyre escreve sua grande obra no auto-exílio de solidariedade a Washington Luiz, deposto por Getúlio Vargas. E Vargas foi estadista do capital-trabalho e ditador. Sob seu governo emerge o Estado-Nação, ou o capitalismo industrial; tardio, dependente e verdadeira usina de reprodução da desigualdade social.
Aos trancos e barrancos, entre 1947 e 1980, o Brasil obteve uma taxa média do PIB (Produto Interno Bruto) de 7,1%; um crescimento do produto industrial de 8,5%; o PIB per capita cresceu 4,2% ao ano, enquanto a população foi multiplicada por três. A fisionomia do país virou de ponta-a-cabeça: em 1940, 70% da população era rural; em 1980, 70% viviam em cidades.
No conjunto da década de 80 (do epitáfio da ditadura ao fim do governo Sarney) o crescimento econômico regrediu a 2,3% e o produto industrial desabou para 1,1%. Nos anos 90 (com mais de 1,5 milhão de jovens a ingressar ao ano no mercado de trabalho) o PIB estacionou em 2,1%.
Decênio infame e ponto final.
Desnecessário esculhambar o crepúsculo dos governos de FHC. Mas, repita-se à exaustão: a regressão neoliberal decompõe a identidade da nação brasileira. Fomos levados a uma desestruturação social sem precedentes, à marcha forçada da submissão mais cretina.E ninguém mais do que Nelson Rodrigues compreendia a cretinice.

NOTA VERMELHO
Artigo publicado na Gazeta de Alagoas (30/8/2002)

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