quinta-feira, janeiro 19, 2006










2005,
o ano no qual os idiotas perderam a modéstia

2005, o ano em que não fomos incautos – As conversões no caminho de Brasília
Luís Manuel Domingues*

Agora sim, podemos falar de 2005 como pretérito. Afinal ele se foi e já passamos pelas primeiras horas e dias de um ano novo no calendário. Isto já nos permite olhar os fatos de 2005 com uma certa eqüidistância. De certa forma, é uma medida providencial para a razão ocupar o lugar da inépcia. Mas, também, nos autoriza a sobrepormos ao redemoinho de ilações que remexeu e entranhou a cena nacional. Algo muito salutar quando se quer observar, com clareza e de fato, as perdas e danos. No entanto, o ato tem o meritório de desvelar as entranhas de uma crise potencializada e os estranhamentos dela suscitado. O que não deixa de ser auspicioso ao discernimento e ao expurgo do imediatismo e da insensatez produtora das falas retumbantes e solenes, mas desprovidas de conteúdos.
Vai-se, dessa forma, na rotina-cronológica anual, mais um ano e, tenham os seus feitos e efeitos cessado ou não, a emergência de um novo ano requer de nós algum tipo de reflexão para, ao menos uma vez, produzirmos um esclarecimento, um planejamento e uma estratégia para o exercício no tempo cronológico recém inaugurado.
Na realidade ou no frigir dos meses, semanas e dias, 2005 não ficou nada a dever aos anos predecessores, a não ser pelas caras e bocas veladas exibidas na cena midiática em busca da ribalta para a exposição. Afinal de contas, só temos dois BBB ao ano e lá só há espaço para 28 participantes usufruírem a celebridade instantânea e descartável. Uma injustiça para tantos candidatos à celebridade ou uma falta de critérios honoráveis capazes de contemplar a sanha por notabilidade pública por muitos almejada.
Eis aí uma das razões de 2005 ter solicitado ao passado uma frase capaz de sintetizar aquilo que lhe foi mais expressivo, o ano no qual os idiotas perderam a modéstia. É aquela frase de Nelson Rodrigues, citada por Nelson Jobim, no julgamento do recurso do deputado José Dirceu, no STF, usada para refutar as críticas das pessoas que comentam sobre tudo mesmo sem saber. Nunca uma frase foi tão primorosamente restituída, talvez não fosse o propósito de Nelson Jobim, para melhor definir um ano em sua anatomia, no qual não faltaram candidatos a inversões comportamentais, a conversões farsercas e ao deslindamento de vaidades.
Aliás, ampliando as definições e seguindo a lógica rodriguiana, poderíamos dizer que 2005 foi também o ano no qual: os espertos se exibiram como ingênuos; os oportunistas se mostraram indignados; os inescrupulosos anunciaram possuir inquietação moral; os crápulas manifestaram ter comportamento ilibado; os sectários proclamaram serem lúcidos e os pérfidos quiseram externar sinceridade.
Ou seja, como Saulo um dia se converteu ao cristianismo, no caminho para Damasco, onde daria prosseguimento à perseguição aos cristãos, assistimos a um ano de muitas conversões no caminho de Brasília.
Mas, ao contrário de Saulo, converso em São Paulo, os convertidos de 2005 só ocultaram as veias por onde corre o magma da hostilidade e indiferença depositada sobre todos aqueles que contrariam os interesses e os embustes de suas ordens. Quiseram até virar vestais e dispor sobre si vestes bordadas com indignação, inquietação moral, comportamento ilibado, lucidez e sinceridade. No entanto, as fantasias quimeristas eram apenas adereços às suas performance na ribalta e eles resguardaram para si, na integridade, a repulsa visceral nutrida aos seus contrários. Apenas trocaram os sinais, ocultando os que por anos carregaram em seus dorsos e tentam agora transferir para os que queriam defenestrar. No fim, transbordaram a máxima de Napoleão Bonaparte: Todo homem luta com mais bravura pelos seus interesses que pelos seus direitos.
Exemplos não faltam dos que perderam a vergonha de manifestar as suas malevolências, apresentando-as com uma acepção mais agradável. Até os espertos se esforçaram para se exibir como ingênuos. Nada melhor para exemplificar esse espécime do que o apresentador de talk show xerox, de alcunha Jô Soares (no Brasil é crime fazer cópias sem autorização do autor, como ele faz do Late Show With, de David Letterman).
Em 2005, Jô Soares teve a oportunidade de ir à forra com o PT, após a Prefeitura de São Paulo, dirigida pelo PT à época, ter-lhe negado, em 2004, acesso à linha de incentivos culturais para obter recursos de empresas para seus espetáculos teatrais e a autorização às mesmas de deduzirem o patrocínio no imposto de renda. A frustração da esperteza de 2004 levou esse apresentador de talk show xerox a se comportar como um ingênuo e surpreendido na onda de denuncismos de malversação arremessadas sobre o PT e o Governo Lula, mesmo que até agora não tenha sido produzida uma única prova cabal e verossímil de uso de recursos do erário público por membros do PT e do Governo Lula ou quanto a algum tipo de tráfico de influência em troca de financiamentos escusos.
No entanto, isso foi de pouco monta ao esperto-ingênuo Jô Soares. Interessava-lhe, isto sim, expelir falácias, eufemismos, capciosidades e meias-verdades, fundamentadas em achismos, tergiversações e sofismas, sobre aqueles a quem queria defenestrar. E foi no quadro pseudo-humorístico-patético do seu talk show xerox, As meninas do Jô, onde ele construiu a oportunidade à sua perfomance ardilosa, apresentando-se ora como surpreso ora como perplexo e ingênuo nas cristas das falácias atiradas como tsunamis.
Ali, o Jô Soares procurava aproximar o seu espanto ao do telespectador, buscando junto ao público uma empatia para a sua inverídica indignação e tentando transferi-la aos assistentes. Para isso se utilizava, também, do deboche sobre os seus alvos, como forma de desqualificar e desacreditar análises, críticas e fatos capazes de comprometer sua empreitada e torpedear seu projeto de construção de uma opinião publicada e deformadora sobre o PT e o Governo Lula.
Contudo, um Arnaldo Jabor nada fica a dever a um Jô Soares. Aqui temos o melhor espécime de oportunista entranhado no mundo artístico nacional, daqueles tipos que se assenhoreavam dos recursos públicos, destinados a produzir bens culturais, mas, como no currículo cinematográfico de Jabor, voltaram-se às produções de pornochanchadas cult permeadas por patéticos e desinteressantes dilemas existenciais medianos.
Arnaldo Jabor queria ser o pós-Nelson Rodrigues de final de século e como querer não é poder, teve de se travestir de promessa de gênio do cinema. Mas, ontem como hoje, não passou de um portador de um repertório pseudo-intelectual com ares rarefeitos e densidade de fumaça na vanguarda da intelligentsia brasiliana.
Então o cinema desistiu de Jabor e não o contrário, e por oito anos, no papel de encosto-paulofrancis-aloprado, Arnaldo Jabor arrendou a sua verborragia, moldada no ferro e fogo oportunista, para a produção de elogios, comemorações, homenagens e louvações às peripécias e feitos do Governo FHC, cerrando os olhos às maiores maracutais perpetradas contra o patrimônio público nos quinhentos e poucos anos de história do Brasil. Na prática, vendeu a tese de que a ação de rapina, razia e pilhagem, mesclada com uma ação perdulária e de ostentação às custas dos cofres públicos, eram sinônimos de eficiência e eficácia político-administrativa.
A mesma atitude o Arnaldo Jabor não teve para com o Governo Lula e o PT, apesar de suas tentativas de angariar a simpatia entre personalidades do Governo Lula. Enfim, o seu oportunismo se frustrou ou a ele lhe dedicaram ouvidos de mercador e ninguém lhe prestou crédito. Na falta dessas recompensas e reconhecimentos, restou ao oportunista de plantão perpetrar uma farsesca indignação contra os que o ignoraram e desconsideraram as suas façanhas, vociferando pelos méritos e correções negados.
As aparições do Jabor na telinha morna terminaram por criar o estereotipo do preceptor iluminado, dirigindo-se aos espectadores como se fossem incautos, pusilânimes e portadores de imbecilidade latente e esperassem dele as suas reprimendas e revelações para se esclarecerem e serem salvos.
Outros, com uma vida permeada por atos inescrupulosos, passaram a anunciar aos quatro cantos e ao vento uma inquietação moral. Foi o maior show de hipocrisia, de todos os tempos, da história política, social e cultural do Brasil, pois qualquer um com o mínimo possível de informação da história de vida sobre a prevaricação-naturalizada dos ACMs, o estatismo-perdulário dos Sérgios Guerras, o pudor-circunstancial das Hebes Camargos e a cordialidade-racista dos Jorges Bornhausen jamais darão crédito algum à inquietação moral que as personae gratae dessas irmandades manifestaram ao longo de 2005.
Entre eles, Jorge Bornhausen é disparado o maior farsante que tentou expressar alguma inquietação moral. Contudo, o nível de ausência de zelo em si é tão latente que ao longo do ano ele expeliu dois atos falhos reveladores da sua personalidade e visão de mundo (Lacan explica as razões dos atos falhos). O primeiro foi o amplamente divulgado: Desencantado? Pelo contrário. Estou é encantado, porque estaremos livres dessa raça pelos próximos trinta anos. Isto é puro racismo e ainda com a agravante de querer instituir no país uma segregação tipo apartheid.
Outro ato falho, pouco divulgado na imprensa, mas, também, revelador da psique desse senador, foi a frase na qual se isenta da obrigação de exercer o seu ofício de parlamentar, após ser interpelado sobre os trabalhos no Congresso: Quer aprovar? Então faça maioria, arranje quórum e vote. Eu, que sou oposição, vou para a praia. Não é preciso muito esforço para concluir que isso é uma apologia à prevaricação e à vagabundagem.
Contudo, o prêmio de simulação nacional vai para Diogo Mainardi, não por deduzirmos que seus escritos ocultam algo escabroso e fora do alcance de nossas vistas. O escabroso já está patente nas participações desse colunista na mídia impressa e televisiva. A simulação é o fato de Diogo Mainardi querer proclamar e instituir o seu sectarismo como uma reflexão permeada pela lucidez, fazendo crer aos leitores que o seu macarthismo é um ato alvissareiro prenunciando acontecimentos promissores. Não para todos, mas para aqueles que planejam e querem executar o exercício de segregar, caçar e expurgar todas os outros que são contrários aos seus projetos, interesses e status quo, fazendo da intolerância uma regra e ferramenta do silêncio e da segregação.
No entanto, sejamos justos. Todos não conseguiram chegar nem perto dos pérfidos que hoje querem externar sinceridade em suas falas e irreflexão. É só pensar num ex-presidente e no seu desgoverno marcado pela prevaricação e peculato. Nunca o Brasil assistiu, no curto espaço de tempo de oito anos, um bando de tecnocratas e politiqueiros se apossarem da estrutura estatal e perpetrarem as maiores negociatas com o patrimônio e os recursos públicos.
Como recordar é viver a história, então vamos citar alguns casos do período PSDB-FHC-PFL: as arapongagens do Caso Sivam, com gravação de conversas de FHC com assessores, induzindo a crime de favorecimento para a empresa norte-americana Raytheon (FHC e a imprensa brasileira não sabiam de nada, à exceção da CartaCapital, idem); o caso da Pasta Rosa-Econômico e o caixa 2 explícito produzido para campanhas eleitorais; o Proer e o bilionário favorecimento ao sistema bancário enquanto minguavam os investimentos sociais; a aprovação da emenda da Reeleição, comprada a peso de ouro com os votos de deputados; desvalorização do Real, em 1999, após manter moeda artificialmente elevada para fins eleitoreiros; o caso Marka-Fontecindan com o tráfico de informações privilegiadas em favor desses bancos; a liquidação do Bamerindus e a venda simbólica de seus ativos ao HSBC e a transferência dos passivos irrecuperáveis ao Banco Central; a privatização das empresas de telecomunicação e a interferência do BNDES para favorecer o Opportunity; o caixa 2 da campanha de FHC que omitiu milhões doados por empreiteiras; o escândalo do BANESTADO e os bilhões remetidos para o exterior.
Esses escândalos somados e outros envolveram valores da ordem de US$ 210 bilhões. Paralelamente, a dívida pública somada à dívida externa cresceu cerca de US$ 300 bilhões. Ou seja, as maracutais homéricas (foi mal Homero) alimentaram exponencialmente fortunas e deram a uma gang de tecnocratas e politiqueiros a oportunidade de se converterem em novos yuppies, detendo para si imensas fortunas para financiar seus artigos de luxo e atividades caras ou os belíssimos cavalos puros sangue árabe, no Hide Park, em Londres (dizem que André Lara Resende galopa muito bem).
Não é à-toa que o ex-presidente insiste em que esqueçamos o passado recente e tenta reescrever, custe o que custar, a maior de todas as histórias de prevaricações, depredação, desmonte e pilhagem que o Estado no Brasil conheceu em sua existência.
Afinal de contas, ante essas constatações, porque devemos pressupor que 2005 foi de fato um ano marcado por uma grave crise política e moral nas hostes do PT e do Governo Lula? Afinal, os R$ 55 milhões que Delúbio tomou emprestado junto ao Marcos Valério para uso em forma de caixa 2 nas campanhas eleitorais do PT e para o pagamento de despesas eleitorais é um troco de míseros centavos junto aos milhões e milhões mobilizados ilegalmente através da Fundacentro, da Bahiatursa, da Telesp, da Nossa Caixa, da dupla mineira Azeredo & Marcos Valério, das gorjetas gordas do Daniel Dantas, e das doações da Usiminas, só para citar alguns casos anteriores ao Governo Lula.
A soma dos valores aí mobilizados chega tranqüilamente a cifra de R$ 500 milhões e chegará, com algum apuro, a R$ 1 bilhão com muita folga. No entanto, isto não é desculpa para isentarmos os Delúbios e as práticas equivocadas perpetradas dentro do PT. Elas simplesmente não deveriam ter ocorrido. Mas, por que só Delúbio é criminalizado? Por que só o PT deve ser estigmatizado? Por que só o Governo Lula deve ser objeto de suspeição? Será que os outros lavam mais limpo? Será que os outros são cidadãos e instituições acima de qualquer suspeita? Será que os outros podem se locupletar às custas do Estado e ficarem isento de punição?
O PT e o Governo Lula deram provas de que os erros e os deslizes cometidos foram objeto de apuração e de punição. Quantos aos outros? Nada, nada, nada mesmo, fizeram. Só expeliram para debaixo do tapete os excrementos que durante anos e ainda hoje expelem. Ou seja, cedo ou tarde, as casas deles vão feder e o cheiro irá para a planície. Então, em breve, como hoje, apelarão para a retórica e o eufemismo para ignorarmos as suas pocilgas e as vejamos como jardins do Éden, como se fossemos idiotas. Estão querendo aplicar a máxima: Para os amigos, tudo; para os desconhecidos, a lei; para os inimigos, até a calúnia, se for necessário.
De fato, eles perderam a modéstia. São hoje mais idiotas do que ontem se pensam que podem infantilizar e imbecilizar a todos ao mesmo tempo e por muito tempo. Só são os espertos tentando se passar por ingênuos; os oportunistas tentando mostrar indignação; os inescrupulosos forjando uma inquietação moral; os crápulas querendo manifestar um comportamento ilibado; os sectários tentando proclamar lucidez; os pérfidos querendo externar sinceridade.
Relembrando aquele provérbio da Boêmia, na atual República Tcheca, eles querem fazer prevalecer que para os erros alheios terão os olhos de um lince; para os próprios erros, os olhos de uma toupeira. O problema é que não somos incautos e para os embates eles só dispõem de farrapos ao vento.

*Luís Manuel Domingues é Historiador e Professor de História da Universidade Católica de Pernambuco

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