Trogloditas
A barbárie não é uma opção!
O Judiciário brasileiro e a ameaça 'venezuelana'
Wanderley Guilherme dos Santos
Cientista político
A direita brasileira tomou ares de direita venezuelana. Depois de re-introduzir, com sucesso, o radicalismo de facção nos colegiados parlamentares, começa a desafiar o Poder Judiciário e a provocar fisicamente os adversários. Foram poucas as vezes em que indiciados nos processos parlamentares em curso apelaram às cortes, assustados pela incontinência verbal da oposição e pela audácia da crônica golpista, que pretendem vedar-lhes, mais que real direito de defesa, a possibilidade de que sejam inocentes. A paralisia do Partido dos Trabalhadores, principal alvo da truculência oposicionista, estimulou a multiplicação de denúncias irresponsáveis e a crescente vulgaridade de gestos e palavras com que se manifesta. É inegável que, comprovada e confessadamente, delitos eleitorais foram cometidos por todos os grandes partidos, alguns médios, e outros pequenos. Está provado que empresas para as quais as campanhas eleitorais são grandes negócios, cometeram crimes tributários e fiscais, transferindo montanhas de dinheiro para bancos no exterior. Finalmente, há fortes indícios de que, sob pretexto de utilização de caixa dois, deputados individuais desviaram parte dos recursos para fins privados.
Tudo somado, temos aí suculento catálogo de malfeitorias a serem elucidadas e punidas. Longe, entretanto, do enredo que a dupla PSDB/PFL, acumpliciada com a imprensa de oposição, quis enfiar a toque de caixa pelo esôfago da opinião pública. A tese de que os ilícitos descobertos só correspondiam a parcela de um grande plano de saque dos recursos públicos, executado por lideranças do PT, foi perdendo credibilidade à medida que, passado o choque inicial, as bombásticas chamadas do noticiário televisivo e as letras garrafais das manchetes dos jornais fracassavam em entregar o que prometiam. Não, não é verdade que a utilização de caixa dois tenha sido inventada ou monopolizada pelo PT. Reconhecer a ilegalidade não equivale a justificá-la, e sério tratamento da matéria deve comparar a legislação à realidade da disputa eleitoral, apurando a extensão em que regras nefelibatas contribuem para aumentar a sedução do ilícito. Por isso o PSDB e o PFL acabaram por entrar na roda, consumidores por igual do pecado clandestino. Também desmorona a fábula de que existiria um sistema de desvio de fundos que, à semelhança das antigas divisões do SNI, estaria implantado nas empresas estatais. Atenção: o total de falsos anúncios de falcatruas, divulgados pelos relatores e sub-relatores já é, hoje, provavelmente, superior ao número de mentiras efetivamente comprovadas nos depoimentos de Marcos Valério. As quinzenais promessas de relatórios comprometedores continuam vãs.
A incapacidade de emprestar verossimilhança ao que se revela, a cada alucinada denúncia, como uma farsa, construída ao longo do empenho em interpretá-la, vem enervando a oposição, que teme as conseqüências eleitorais do golpe fracassado. Torna-se evidente que as CPIs tem andado acuadas por ocasional maioria constituída por mal educados histriões. Os mesmos que, apoiados pela infantilidade da esquerda ressentida, pretendem impor um desafio venezuelano ao Judiciário. Na verdade, o Judiciário vem sendo tímido no restabelecimento das normas processuais estabelecidas em lei. Os direitos devem ser mantidos íntegros quanto mais graves forem as acusações aos indivíduos indiciados, ao contrário da tese predominante nas comissões e colegiados de que julgamentos políticos podem se dar ao desfrute da selvageria sem satisfação a ninguém. Ao contrário, a transferência da soberania popular implícita na concessão de um mandato político é ato que instaura regras de civilidade na administração de conflitos, não significando nunca a expedição de alvará para a inauguração de volúveis e subjetivos patíbulos.
Quando a exaltação política se reduzir, vídeos e documentos da presente época atestarão o surrealismo de relatórios de Comissão de Inquérito em que, mediante pelo menos uma demonstrável mentira e orações sem sujeito, pede-se a cassação dos mandatos de parlamentares sobre alguns dos quais, inclusive, o relatório afirma não existirem nem mesmo indícios de culpabilidade. Denúncias vazias são posteriormente, citadas como juízos passados em julgado, da mesma maneira que suicídios de pacientes são depois computados como casos comprobatórios da sólida experiência de psicanalistas. Senadores anciãos sublevam-se contra decisões do Judiciário e tentam transformar o Legislativo em tribunal de última instância de si próprio. Deputados encarregados de avaliar a credibilidade de denúncias contra membros do Legislativo interpretam de forma inábil, diante de câmeras de televisão, textos de que, conforme parece, não foram os autores. Daí a teatralização canhestra, pausas fora de lugar, ênfases burlescas e a indignação nada convincente, macaqueando a opinião impressa e bajulando a pública.
Contradições e ridículos históricos são seguros indicadores da prevalência de tais equívocos. Por exemplo: o pedido de cassação do mandato do deputado José Dirceu por ser o organizador de um crime ? o mensalão ?, cuja inexistência foi motivo suficiente para o afastamento de quem o proclamou, o ex-deputado Roberto Jefferson. Ou seja, o ilícito do mensalão ora não existiu, para que, de consciência limpa, se faça a condenação de um parlamentar, e ora existiu, para que se penalize da mesma maneira um outro parlamentar. Custo a crer que o deputado José Dirceu ignorasse que o PT recorria ao caixa dois. Mas não é impossível que não estivesse ciente de sua administração específica. Cabe às CPIs esclarecerem o assunto conforme a processualística em vigor e julgá-lo também segundo as normas vigentes. Qualquer desvio em direção à excepcionalidade afronta a Constituição e, se solicitado, o Superior Tribunal Federal tem a obrigação de repor as coisas e gentes em seus devidos lugares constitucionais. Os histriões parlamentares não têm autonomia para serem tirânicos. Serão, quando muito, arrivistas "venezuelanos".
Em outro exemplo de peça pregada aos incautos pelo tempo, é bem provável que aquela pobre deputada do PSDB de Goiás, Raquel Teixeira, depois de haver servido aos propósitos facciosos da CPI, venha a perder o mandato por ter mentido a respeito do agora inocentado deputado Sandro Mabel (PL-GO). O único elemento de prova, dado como suficiente para sugerir a pena radical de cassação de mandato, era a palavra de um par. E a mesma leviandade de juízo vem sendo exercida em relação a outros acusados, contra os quais não existe senão a palavra de terceiros. O colégio da Câmara aceita ou não a "evidência" conforme a distribuição de suas simpatias e, assim, depoentes, relatores e juízes acabam se revelando, em um ou outro momento, igualmente arbitrários. O Legislativo comporta-se autocraticamente, declarando que é justo e conforme o direito o que vier a declarar como tal. Esse comportamento viola a doutrina que sustenta a existência de direitos anteriores às leis positivas e que não podem ser maculados por estas. Basta
perguntar a John Locke. O histrionismo eleitoral da oposição está conduzindo o Congresso, por ações e omissões, a um conflito de tipo venezuelano. O motivo propagandístico de atribuir ao presidente Luiz Inácio tendências "chavistas", tal como inventava a mesma mídia, há exatos 50 anos, que os comunistas queriam tomar o poder junto com JK, arrisca se converter, assim como antes, na cobertura do golpismo. O obstáculo, hoje, é o Judiciário.
Wanderley Guilherme dos Santos é membro da Academia Brasileira de Ciências e Pró-Reitor da Universidade Candido Mendes.
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