segunda-feira, outubro 17, 2005
SIM para a vida e NÃO para a imprensa tucana.
Cuidado, aqui mora um homem de bem!
O debate sobre o referendo trouxe à tona, com força, a figura do homem de bem. Como saber se você é um homem de bem? O jornal Zero Hora oferece ensinamentos preciosos sobre como deve se portar um homem de bem diante do referendo sobre o comércio de armas e na vida em geral.
Um dos méritos do referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição é o striptease ideológico que vem propiciando, um processo que ajuda a ver com maior nitidez um perfil médio de pensamento que, aparentemente, vem ganhando força e espaço na sociedade brasileira. Esse perfil revela, ao menos no plano discursivo, o surgimento de uma nova categoria social: o homem de bem. Adotado à exaustão pelos defensores da continuidade do comércio de armas de fogo e munição, esse discurso consegue concentrar em uma só expressão todos os preconceitos enraizados em nossa cultura: preconceitos de gênero, de classe, étnicos e culturais.
Pode parecer uma bobagem, mas é interessante notar a aparente inexistência de “mulheres de bem” na sociedade. São os “homens de bem” que têm seus direitos ameaçados pela proposta de proibição desse comércio. Esses “deslizes lingüísticos” talvez revelem mais do que aparentam. Mas os preconceitos revelam apenas a ponta do iceberg. Um iceberg que indica claramente a existência de um caldo de cultura radicalmente conservador, que faz do direito à propriedade a mãe de todos os direitos, e que não vem sendo adequadamente tratado pelos defensores do “sim”.
É interessante notar que o discurso dos defensores do “não” vem conquistando adeptos mesmo entre uma parcela da sociedade que se considera de esquerda. Parte dela assimila sem maiores dificuldades o argumento dos “homens de bem” que, diante da ineficácia do Estado em garantir a segurança pública, teriam o direito de se defender por conta própria. Uma outra parte adota argumentos mais curiosos, como o do “direito de auto-defesa dos trabalhadores” e da “origem elitista do referendo”. Além disso, há também um certo caráter plebiscitário em torno do governo Lula que atravessa, com diferentes inflexões, todas essas posições. Mas a força principal da campanha do “não” parece estar mesmo em torno da figura do “homem de bem”.
Para entender o que é exatamente essa figura, algumas perguntas são pertinentes: Quantos “homens de bem” existem entre a população brasileira? E quantos “homens do mal”? Quantos “homens de bem” têm armas em suas casas ou pensam em comprar uma? O que define, afinal de contas, um “homem de bem”? Como ele deve se portar?
“Um não responsável”
A edição desta segunda-feira (17 de outubro) do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, ajuda a entender melhor o que pensam os “homens de bem”. A publicação do Grupo RBS decidiu, finalmente, sair do armário e assumiu, em editorial, a defesa do “não” no referendo. Um “não responsável”, como diz o título do editorial, o que sugere a existência de um “não irresponsável”. Na mesma edição, o jornal publica uma pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas em Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Cepa/UFRGS) indicando que dois terços dos gaúchos apóiam o comércio de armas.
O editorial de ZH comemora o resultado e ajuda a entender também algumas questões de fundo que não vêm sendo explicitadas no debate do referendo. Uma delas diz respeito ao próprio recurso ao instrumento do referendo. “Tudo é equivocado nesta consulta popular que lança sobre o cidadão a responsabilidade de decidir sobre um tema extremamente complexo, como se o gravíssimo problema da segurança pública no país pudesse ser resolvido apenas com uma lei respaldada pelo resultado de um referendo popular”.
Pobre cidadão brasileiro, chamado a opinar sobre “temas extremamente complexos”. O que isso quer dizer? Em primeiro lugar, com a licença do Conselheiro Acácio, quer dizer exatamente o que diz: os cidadãos não devem ser chamados a opinar sobre temas complexos, só sobre temas simples. Que outros temas podem ser considerados “extremamente complexos”, pela lógica desse argumento? Vejamos alguns possíveis: Qual deve ser a política de educação do Estado brasileiro? E a política de saúde? E a de comunicação? Quais devem ser as prioridades de investimento do Estado? Sobre o que os cidadãos devem opinar?
Segundo o editorial de ZH, os cidadãos devem ser poupados destes temas “extremamente complexos”, deixando-os a cargo dos especialistas que realmente entendem do assunto. Sobre o que os cidadãos poderiam opinar, então? Quais seriam os temas simples, sobre os quais suas mentes simples poderiam dar conta? O editorial não avança sobre isso, mas, em um caderno de educação, publicado na mesma edição, trata de um tema que diz respeito ao cotidiano de todos os cidadãos e homens de bem: como educar seu filho? Mais uma vez, repete-se o “deslize lingüístico” de gênero. O título do caderno é “Meu filho”. Um detalhe menor, certamente. Um descuido. Coerente com a linha do editorial, o caderno ensina a população como tratar de um “tema extremamente complexo”, como a educação das crianças.
Como educar seu filho: mercado financeiro, facas e garfos
E dá dicas preciosas. “Ensine seu filho a lidar com dinheiro desde cedo. É na infância que ele deve fazer suas primeiras experiências na área financeira. A partir dos 10 anos, apresente seu filho ao gerente de um banco, abra uma conta e explique o funcionamento da agência”, ensina Cássia D’Aquino Filocre, consultora em Educação Financeira. Mas, nem tudo é dinheiro na vida e ZH ensina também como as crianças devem se portar à mesa. O ensinamento começa com uma advertência que deve ser dirigida às crianças: cuidado, você está sendo observado! E a consultora de etiqueta Célia Ribeiro avisa: garfo na esquerda, faca na direita! “Se a criança ainda não consegue manusear os dois talheres juntos, deve deixar a faca em diagonal depois de cortar a carne, à direita do prato, passando o garfo para a mão direita. Uma etiqueta mais rígida não permite isso, mas os americanos, práticos, adotaram o sistema”.
Ufa! Se esses temas já são complexos, imagine só o absurdo de exigir dos cidadãos que opinem sobre temas relacionados à segurança pública. Sempre haverá um consultor para ensiná-los didaticamente a como agir em relação a esses temas.
E o editorial de ZH se propõe a executar essa tarefa. “Diante de tamanha deformação (exigir que os cidadãos opinem sobre temas complexos), a melhor alternativa para os brasileiros já parecer ter sido identificada pela maioria dos rio-grandenses: rejeitar o autoritarismo que retira dos cidadãos o direito básico de providenciar a própria defesa, quando se sabe que o poder público tem sido incompetente para fazê-lo”. Ou seja, diante da falência do Estado (de sua ineficácia crônica como não se cansam de repetir os editoriais do mesmo jornal), cada cidadão que providencie sua própria defesa.
“A vida real não deixa dúvidas: os delinqüentes não vão entregar suas armas, nem o Estado tem mostrado capacidade para desarmá-los”, acrescenta o texto. “Defendemos que os cidadãos tenham liberdade para exercer todos os direitos assegurados pela Constituição, entre os quais o de decidir a melhor forma de se defender da violência que os ameaça cotidianamente. Por isso, o voto no “não” nos parece ser o que melhor atende aos interesses dos cidadãos”, emenda.
Em defesa do risoto de rúcula e do Möet Chandon
Afinal de contas, como um pai (para manter a lógica do deslize lingüístico) vai levar seu filho de 10 anos, com segurança, ao banco para ensinar-lhe as primeiras experiências na área financeira? No lado de fora da agência, há uma legião de “homens do mal”, prontos para tentar cercear esse direito. Como um “homem de bem” vai ensinar ao seu filho que ele “deve deixar a faca em diagonal depois de cortar a carne, à direita do prato, passando o garfo para a mão direita”, se a sua casa pode ser invadida a qualquer momento por um “homem do mal” e ele não tem o direito de estourar os miolos deste sujeito na frente do seu filho?
Como um “homem de bem” vai garantir uma noite de princesa para sua filha, na sua festa de 15 anos, com uma recepção para 600 convidados, como revela a coluna social “RSVip”, de ZH, se ele não pode cuidar por si próprio da segurança do evento? Como proteger um jantar à base de ‘risoto de rúcula e mostarda dijon, camarões orientais e espaguete pupunha”, tudo regado a Möet Chandon, da invasão de algum “homem do mal”?
Então, como diz o colunista Paulo Sant’Ana, na mesma edição de ZH, só escritores, intelectuais, sociólogos e jornalistas são favoráveis ao desarmamento. “A elite gaúcha é a favor do desarmamento, o povo está contra”, afirma. O povo quer garantir seu direito a comer risoto de rúcula com camarões orientais, com um 38 ao lado do prato para qualquer emergência. O povo quer ter o direito de iniciar seus filhos no mundo do mercado financeiro com um cartão de crédito na mão e uma pistola na outra. Só mesmo intelectuais elitistas podem defender o desarmamento, diz Paulo Sant’Ana.
O direito de ter uma arma e um carro estrangeiro
Intelectuais como Luís Fernando Veríssimo que, na mesma edição de ZH, abre seu voto pelo “sim”, dizendo, entre outras coisas, que “dizer que o desarmamento da população a deixaria vulnerável ao crime equivale a dizer que, até agora, a população armada fez um bom trabalho de se defender, o que não é o que mostram as estatísticas”. Jornalistas como Rosane de Oliveira, também de ZH, que acredita que “reduzindo o número de armas em circulação pouparemos vidas tiradas em brigas de trânsito, crimes passionais ou acidentes com crianças e adolescentes”.
Conversa de elitistas, diz Sant’Ana, que conclui: “Devemos votar não para incrivelmente manter o direito que temos de um dia, quem sabe, é um sonho, podermos ter uma arma ou um carro estrangeiro em casa”.
Aí está o sonho dos “homens de bem” que os intelectuais elitistas desprezam: uma arma em casa, um carro estrangeiro na garagem (sem pagar muito imposto, de preferência), camarões orientais e Möet Chandon na geladeira, o filho bem informado sobre o funcionamento do mercado financeiro e sobre o correto uso de garfos e facas. O Estado é uma ameaça a esses direitos sagrados. Cabe aos homens de bem resistir a ele, à bala se for preciso. Assim, chegará finalmente um dia em que poderemos ver, na frente da casa de todo cidadão, uma placa advertindo a legião dos “homens de mal” que anda ameaçadoramente pelas ruas: “cuidado, aqui mora um homem de bem”!
Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)
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