domingo, outubro 30, 2005
Capa da Veja: a Venezuela é aqui?
Por Osvaldo Bertolino
A revista Veja, sabidamente pautada pela CIA e pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, tem o hábito de usar o número sete em suas "reportagens". São os "sete perigos de dar uma banana para a Área de Livre Comércio das Américas (Alca)", as sete razões para votar "Não" no referendo sobre a proibição do comércio de armas e munição ou as "sete soluções testadas e aprovadas contra o crime". Diz o povo que sete é conta de mentiroso — o que combina bem com a Veja. A última história mal contada pela revista está na capa da edição desta semana, diagramada em tom de deboche, segundo a qual a campanha eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu US$ 3 milhões vindos de Cuba. O presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Ricardo Berzoini, disse que a Veja não tem autoridade para fazer esse tipo de denúncia enquanto não provar as acusações que fez anteriormente.
Berzoini lembrou que a Veja também disse que o PT recebeu dinheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e até agora não provou nada. "A revista virou órgão oficial do PSDB e do PFL", afirmou. Virou ou sempre foi? Mais do que isso: é uma espécie de porta-voz dos interesses norte-americanos em nosso país. Lembremos que a trilha da infâmia na mais recente onda de ataques ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, começou a ser construída pela Veja na edição do dia 4 de abril deste ano, em uma capa que perguntava: "Quem precisa de um novo Fidel?" "Com milícias, censuras, intervenção em país vizinho e briga com os Estados Unidos, Hugo Chávez está fazendo da Venezuela uma nova Cuba", dizia o subtítulo. No final daquele mês, a secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, visitou Brasília e fez críticas pesadas a Chávez.
Anticomunismo febril
Jornais, rádios e TVs imediatamente seguiram a trilha da infâmia. Até mesmo a Tribuna da Imprensa teve uma recaída, que remonta os tempos do lacerdismo pró-Estados Unidos, com a manchete: "Chávez provoca Estados Unidos e faz acordo com Fidel". A onda de ataques ao presidente venezuelano só não foi superior à de 2002, quando ele foi seqüestrado pela direita de seu país. Quem não se lembra do âncora Renato Machado, no Bom dia Brasil da Rede Globo de Televisão, saudando a "queda" de Chávez? E do editorial do Jornal da Tarde (JT), do grupo O Estado de S. Paulo, intitulado “Um Golpe para garantir a democracia”? E do Jornal do Brasil” (JB) dizendo que "a redenção bolivariana prometida por Chavez foi um dos maiores engodos já vistos na América do Sul?". "A solução foi derrubar Hugo Chavez com seu próprio veneno: o golpismo", disse o JB.
Aqui mesmo no Brasil a receita já havia sido amplamente utilizada para derrubar o presidente João Goulart. Além do anticomunismo febril da Tribuna da Imprensa, os jornais tratavam Cuba como um mau exemplo para a América Latina. A revolução comandada por Fidel Castro precisava ser desmoralizada. O tradicional jornal gaúcho Correio do Povo do dia 30 de março de 1962 sintetizou bem essa campanha com esta manchete principal: "Subversão no Brasil é financiada com dinheiro de Cuba". No dia 27 de fevereiro de 1964, o jornal O Globo deu a seguinte "informação": "Cuba prepara, diz fonte anticastrista, atos terroristas no Nordeste do Brasil".
Socos de Brizola
Essa onda começou a se levantar já no governo Jânio Quadros. Ao contrário do queriam seus chefes da UDN, a política externa janista não se alinhou ao anticomunismo que os Estados Unidos exportavam para a América Latina. Em 1963, o Brasil votou contra uma resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA), que Fidel Castro chamava de "Ministério das Colônias de Washington", pedindo aos governos maior controle da "subversão comunista no hemisfério". E isso provocava uma reação histérica da direita. Quando Jânio Quadros condecorou Che Guevara com a Ordem Cruzeiro do Sul, os protestos direitistas se levantaram com força. A tumultuada posse de João Goulart recrudesceu os ânimos dessa gente. A ordem era: o presidente reina, mas não governa. Simples reuniões de trabalhadores, uma manifestação sindical ou um congresso qualquer eram motivos para ataques da direita.
Na linha de frente, estava a "grande imprensa" e sua proverbial falta de democracia e de pluralismo. As ofensas eram tão acintosas que às vezes os ofendidos reagiam fazendo justiça literalmente com as próprias mãos — como fez Leonel Brizola no dia 26 de dezembro de 1963. Ele avistou o jornalista David Nasser — uma espécie de Arnaldo Jabor ou Diogo Mainardi —, da revista O Cruzeiro, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, e o atingiu com dois potentes socos. Nasser havia escrito: "Todos temos um doido na família. Jango tem dois na sua. Brizola e ele próprio. Porque Jango ainda não compreendeu que o cunhado Leonel pode ser o Benjamim de seu governo (...). Todos nós temos um louco na família. Jango está dando ao seu uma caixa de fósforo e um barril de pólvora (...)."
Imprensa alternativa
Nesta semana, Diogo Mainardi, em sua coluna na Veja, insulta o presidente Lula com a mesma virulência de Nasser contra Goulart. Em mais um de seus duvidosos "diálogos" com suas "fontes" ele fala por quase-enigmas para retratar o presidente Lula como "bananão dos bananões". A tática, assim como ocorreu com o governo Goulart, é a de criar o "terror psicológico", insultando o presidente em busca de uma reação que serviria de pretexto para o recrudescimento da campanha de difamação, e espalhar boatos de toda ordem em busca de uma "mobilização popular". Já vimos esse filme na Venezuela. Nessas horas, a direita prefere lançar mão da mídia conservadora, que substitui seu partidos políticos sem forças para levantar as massas.
Na Venezuela, a imprensa alternativa, as rádios e televisões comunitárias, já são uma realidade que se contrapõe ao esquema tradicional dos barões da mídia, como Gustavo Cisneros, que sempre teve o poder absoluto da informação com publicações do gênero Veja ou canais de rádio e televisão que, como a Globo, "fabricam realidades". O fortalecimento da imprensa alternativa venezuelana, como não poderia deixar de ser, desagrada os grandes proprietários de órgãos da imprensa, os mesmos que, em todo a América Latina, defendem interesses poderosos, mas se enfurecem ao se sentirem ameaçados pela concorrência com a consolidação e crescimento de canais informativos fora do padrão dos barões da mídia.
Panorama político
A reencenação deste filme no Brasil decorre de um fato óbvio: o panorama político da América Latina está claramente demarcado. De um lado, as forças políticas que aceitam de bom grado trilhar o caminho de Washington conduziram a região para uma sucessão de crises, configurando uma estrondosa catástrofe política, moral e econômica. O Brasil passou a ser dirigido por um insólito concerto de facções da direita, cujo esteio é a aliança PSDB/PFL constituída desde a campanha para as eleições de 1994. Os dois governos FHC foram ideologicamente reacionários e politicamente fisiológicos e clientelistas. O importante, para essa aliança, era vencer Lula e levar adiante o projeto de "reformas" neoliberais.
De outro lado, as forças políticas que se opõem a esse quadro hegemônico na América Latina têm crescido do final da década de 90 para cá. A economia cubana avança e melhora os indicadores de bem-estar do povo. A Venezuela optou por um caminho indiscutivelmente antiliberal. Talvez seja esse o motivo principal do recrudescimento da vigilância política e militar norte-americana sobre a região. No relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos que atribui a designação de Organizações Terroristas Internacionais (OTI's), constam pelo menos quatro latino-americanas. Representantes do governo de George W. Bush tem se reunido sistematicamente com líderes liberais da América Latina, visitado o sub-continente e emitido sinais de preocupação.
Tragédia grega
O ex-secretário de Estado Colin Powel chegou a classificar a região de "zona volátil". Ocorre que os resultados das recentes eleições presidenciais no Brasil, Argentina e Uruguai deram nova vida a um movimento político que perdeu fôlego na América Latina nas últimas décadas. Lula, Néstor Kirchner e Tabaré Vazquez se somam à defesa da idéia de soberania latino-americana advogada por Fidel Castro e Hugo Chávez. Pesou a favor desses resultados, evidentemente, as duas décadas de severo declínio econômico nas taxas de crescimento na região. Esse cenário de devastação talvez tenha sido o principal motivador do surgimento de um modelo político na América Latina voltado para o fortalecimento do Estado — inclusive no que tange ao controle do movimento internacional do capital especulativo, como fez a Argentina.
Numa época em que a Europa e os Estados Unidos estão se fundindo em dois grandes mercados, a América Latina parece que está despertando para a necessidade de união, como demonstram os esforços para o fortalecimento e ampliação do Mercosul, bloco centrado no Brasil como a casa de força da região. Descem, portanto, as cortinas e aparece a crise política. Essa peça, que também pode ser entendida como um ensaio geral do espetáculo que tomará conta do país no ano que vem, ainda não definiu o gênero teatral ao qual pertence. Pode ser uma comédia. Pode ser uma farsa. Pode ser também uma tragédia. Nas comédias, como se sabe, o protagonista atua como o néscio de quem todos riem. Nas farsas, o protagonista é enganado. E nas tragédias o protagonista caminha consciente e célere em direção à própria ruína. Se for tragédia, deverá ser como nas palavras de um dos pilares da tragédia grega, Eurípedes: "Eu vi a avareza nos grandes e a generosidade nos pequenos."
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