terça-feira, outubro 31, 2017
quarta-feira, outubro 25, 2017
As Ideias Fora de Lugar
Roberto Schwartz, "As ideias fora de lugar" in Ao vencedor as Batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, 2000 (1ª ed.), 2012 (6ª ed.), São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, Coleção Espírito Crítico, 1º capítulo._______________________________________________
Entreouvido na Vila Vudu:
Em tempos de golpe tão profundo, que o trabalho escravo tão espantosamente está de volta ao plenário do Congresso Nacional golpista no Brasil, no séc. 21,para elogios e consagração pressuposta 'democrática'–, é hora de reler esse ensaio seminal.
Roberto Schwarz estuda aí o romance de Machado de Assis: esse é o primeiro capítulo de um dos estudos críticos mais importantes da história da literatura contemporânea, já traduzido em várias línguas.
É leitura iluminadora mas difícil, sobretudo para quem já não tenha prática na leitura de escritos densos, transbordantes de significados densos e realmente aderidos à realidade, em tudo diferentes do que nos impinge a mídia-empresa.
Mas é preciso insistir, até que o esforço produza resultados.
_________________________________________
Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato impolítico e abominável da escravidão. Este argumento resumo de um panfleto liberal, contemporâneo de Machado de Assis[1] põe fora o Brasil do sistema da ciência. Estávamos aquém da realidade a que esta se refere; éramos antes um fato moral, impolítico e abominável . Grande degradação, considerando-se que a ciência eram as Luzes, o Progresso, a Humanidade etc. Para as artes, Nabuco expressa um sentimento comparável quando protesta contra o assunto escravo no teatro de Alencar: "Se isso ofende o estrangeiro, como não humilha o brasileiro!"[2]
Outros autores naturalmente fizeram o raciocínio inverso. Uma vez que não se referem à nossa realidade, ciência econômica e demais ideologias liberais é que são, elas sim, abomináveis, impolíticas e estrangeiras, além de vulneráveis. "Antes bons negros da costa da África para felicidade sua e nossa, a despeito de toda a mórbida filantropia britânica, que, esquecida de sua própria casa, deixa morrer de fome o pobre irmão branco, escravo sem senhor que dele se compadeça, e hipócrita ou estólida chora, exposta ao ridículo da verdadeira filantropia, o fado de nosso escravo feliz".[3]
Cada um a seu modo, estes autores refletem a disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as ideias do liberalismo europeu. Envergonhando uns, irritando outros, que insistem na sua hipocrisia, estas ideias em que gregos e troianos não reconhecem o Brasil são referências para todos. Sumariamente está montada uma comédia ideológica, diferente da europeia. É claro que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às aparências, encobrindo o essencial a exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas ideias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original.
A Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo, transcrita em parte na Constituição Brasileira de 1824, não só não escondia nada, como tornava mais abjeto o instituto da escravidão.[4]
A mesma coisa para a professada universalidade dos princípios, que transformava em escândalo a prática geral do favor. Que valiam, nestas circunstâncias, as grandes abstrações burguesas que usávamos tanto? Não descreviam a existência mas nem só disso vivem as ideias. Refletindo em direção parecida, Sérgio Buarque observa: "Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra".[5]
"Sendo uma propriedade, um escravo pode ser vendido, mas não despedido. O trabalhador livre, nesse ponto, dá mais liberdade a seu patrão, além de imobilizar menos capital. Este aspecto um entre muitos indica o limite que a escravatura opunha à racionalização produtiva.
Essa impropriedade de nosso pensamento, que não é acaso, como se verá, foi de fato uma presença assídua, atravessando e desequilibrando, até no detalhe, a vida ideológica do Segundo Reinado. Frequentemente inflada, ou rasteira, ridícula, ou crua, e só raramente justa no tom, a prosa literária do tempo é uma das muitas testemunhas disso.
Embora sejam lugar-comum em nossa historiografia, as razões desse quadro foram pouco estudadas em seus efeitos. Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo. Mais ou menos diretamente, vêm daí as singularidades que expusemos.
Era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio econômico burguês a prioridade do lucro, com seus corolários sociais uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a nossa economia era voltada. A prática permanente das transações escolava, neste sentido, quando menos uma pequena multidão. Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome de ideias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional.
Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles.[6] No plano, das convicções, a incompatibilidade é clara, e já vimos exemplos.
Mas também no plano prático ela se fazia sentir. Sendo uma propriedade, um escravo pode ser vendido, mas não despedido. O trabalhador livre, nesse ponto, dá mais liberdade a seu patrão, além de imobilizar menos capital. Este aspecto um entre muitos indica o limite que a escravatura opunha à racionalização produtiva.
Comentando o que vira numa fazenda, um viajante escreve: não há especialização do trabalho, porque se procura economizar a mão-de-obra. Ao citar a passagem, Fernando Henrique Cardoso observa que economia não se destina aqui, pelo contexto, a fazer o trabalho num mínimo de tempo, mas num máximo. É preciso espichá-lo, a fim de encher e disciplinar o dia do escravo. O oposto exato do que era moderno fazer. Fundada na violência e na disciplina militar, a produção escravista dependia da autoridade, mais que da eficácia."[7]
O estudo racional do processo produtivo, assim como a sua modernização continuada, com todo o prestígio que lhes advinha da revolução que ocasionavam na Europa, eram sem propósito no Brasil.
Para complicar ainda o quadro, considere-se que o latifúndio escravista havia sido na origem um empreendimento do capital comercial, e que portanto o lucro fora desde sempre o seu pivô. Ora, o lucro como prioridade subjetiva é comum às formas antiquadas do capital e às mais modernas.
De sorte que os incultos e abomináveis escravistas até certa data quando esta forma de produção veio a ser menos rentável que o trabalho assalariado foram no essencial, capitalistas mais consequentes do que nossos defensores de Adam Smith, que no capitalismo achavam antes que tudo a liberdade. Está-se vendo que para a vida intelectual o nó estava armado.
Em matéria de racionalidade, os papéis se embaralhavam e trocavam normalmente: a ciência era fantasia e moral, o obscurantismo era realismo e responsabilidade, a técnica não era prática, o altruísmo implantava a mais-valia etc. E, de maneira geral, na ausência do interesse organizado da escravaria, o confronto entre humanidade e inumanidade, por justo que fosse, acabava encontrando uma tradução mais rasteira no conflito entre dois modos de empregar os capitais do qual era a imagem que convinha a uma das partes.[8]
Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica. A chave desta era diversa. Para descrevê-la é preciso retomar o país como todo.
Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o homem livre , na verdade dependente.
Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande.[9]
O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em consequência, por este mesmo mecanismo.[10]
Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção europeia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele.
E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção.
O escravismo desmente as ideias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e desloca, originando um padrão particular. O elemento de arbítrio, o jogo fluido de estima e autoestima a que o favor submete o interesse material, não podem ser integralmente racionalizados. Na Europa, ao atacá-los, o universalismo visara o privilégio feudal. No processo de sua afirmação histórica, a civilização burguesa postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho etc. contra as prerrogativas do Ancien Régime. O favor, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais. Entretanto, não estávamos para a Europa como o feudalismo para o capitalismo, pelo contrário éramos seus tributários em toda linha, além de não termos sido propriamente feudais a colonização é um feito do capital comercial. No fastígio em que estava ela, Europa, e na posição relativa em que estávamos nós, ninguém no Brasil teria a ideia e principalmente a força de ser, digamos, um Kant do favor, para bater-se contra o outro.[11] De modo que o confronto entre esses princípios tão antagônicos resultava desigual: no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente os que a burguesia europeia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão; enquanto na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções que implica.
O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e justiça, que embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do estado burguês moderno. Além dos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente objetiva , para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas. Esta recomposição é capital.
Seus efeitos são muitos, e levam longe em nossa literatura. De ideologia que havia sido isto é, engano involuntário e bem fundado nas aparências, o liberalismo passa, na falta de outro termo, a penhor intencional duma variedade de prestígios com que nada tem a ver.
Ao legitimar o arbítrio por meio de alguma razão racional , o favorecido conscientemente engrandece a si e ao seu benfeitor, que por sua vez não vê, nessa era de hegemonia das razões, motivo para desmenti-lo. Nestas condições, quem acreditava na justificação? A que aparência correspondia? Mas justamente, não era este o problema, pois todos reconheciam e isto sim era importante a intenção louvável, seja do agradecimento, seja do favor.
A compensação simbólica podia ser um pouco desafinada, mas não era mal-agradecida. Ou por outra, seria desafinada em relação ao Liberalismo, que era secundário, e justa em relação ao favor, que era principal. E nada melhor, para dar lustre às pessoas e à sociedade que formam, do que as ideias mais ilustres do tempo, no caso as europeias. Neste contexto, portanto, as ideologias não descrevem sequer falsamente a realidade, e não gravitam segundo uma lei que lhes seja própria; por isso as chamamos de segundo grau. Sua regra é outra, diversa da que denominam; é da ordem do relevo social, em detrimento de sua intenção cognitiva e de sistema. Deriva sossegadamente do óbvio, sabido de todos da inevitável superioridade da Europa e liga-se ao momento expressivo, de autoestima e fantasia, que existe no favor. Neste sentido dizíamos que o teste da realidade e da coerência não parecia, aqui, decisivo, sem prejuízo de estar sempre presente como exigência reconhecida, evocada ou suspensa conforme a circunstância.
Assim, com método, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc. Combinando-se à prática de que, em princípio, seria a crítica, o Liberalismo fazia com que o pensamento perdesse o pé. Retenha-se no entanto, para analisarmos depois, a complexidade desse passo: ao tornarem-se despropósito, estas ideias deixam também de enganar.
É claro que esta combinação foi uma entre outras. Para o nosso clima ideológico, entretanto, foi decisiva, além de ser aquela em que os problemas se configuram da maneira mais completa e diferente. Por agora bastem alguns aspectos. Vimos que nela as ideias da burguesia cuja grandeza sóbria remonta ao espírito público e racionalista da Ilustração tomam função de ... ornato e marca de fidalguia: atestam e festejam a participação numa esfera augusta, no caso a da Europa que se ... industrializa. O quiproquó das ideias não podia ser maior.
A novidade no caso não está no caráter ornamental de saber e cultura, que é da tradição colonial e ibérica; está na dissonância propriamente incrível que ocasionam o saber e a cultura de tipo moderno quando postos neste contexto. São inúteis como um berloque? São brilhantes como uma comenda? Serão a nossa panaceia? Envergonham-nos diante do mundo? O mais certo é que nas idas e vindas de argumento e interesse todos estes aspectos tivessem ocasião de se manifestar, de maneira que na consciência dos mais atentos deviam estar ligados e misturados.
Inextricavelmente, a vida ideológica degradava e condecorava os seus participantes, entre os quais muitas vezes haveria clareza disso. Tratava-se, portanto, de uma combinação instável, que facilmente degenerava em hostilidade e crítica as mais acerbas. Para manter-se, precisa de cumplicidade permanente, cumplicidade que a prática do favor tende a garantir. No momento da prestação e da contraprestação particularmente no instante-chave do reconhecimento recíproco a nenhuma das partes interessa denunciar a outra, tendo embora a todo instante os elementos necessários para fazê-lo.
Esta cumplicidade sempre renovada tem continuidades sociais mais profundas, que lhe dão peso de classe: no contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial à mais fraca, de que nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma. Lastreado pelo infinito de dureza e degradação que esconjurava ou seja a escravidão, de que as duas partes beneficiam e timbram em se diferençar este reconhecimento é de uma conivência sem fundo, multiplicada, ainda, pela adoção do vocabulário burguês da igualdade, do mérito, do trabalho, da razão. Machado de Assis será mestre nestes meandros.
Contudo veja-se também outro lado. Imersos que estamos, ainda hoje, no universo do Capital, que não chegou a tomar forma clássica no Brasil, tendemos a ver esta combinação como inteiramente desvantajosa para nós, composta só de defeitos. Vantagens não há de ter tido; mas para apreciar devidamente a sua complexidade considere-se que as ideias da burguesia, a princípio voltadas contra o privilégio, a partir de 1848 se haviam tornado apologéticas: a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarça antagonismos de classe.[12]
Portanto, para bem lhe reter o timbre ideológico é preciso considerar que o nosso discurso impróprio era oco também quando usado propriamente. Note-se, de passagem, que este padrão iria repetir-se no séc. XX, quando por várias vezes juramos, crentes de nossa modernidade, segundo as ideologias mais rotas da cena mundial.
Para a literatura, como veremos, resulta daí um labirinto singular, uma espécie de oco dentro do oco. Ainda aqui, Machado será o mestre.
Em suma, se insistimos no viés que escravismo e favor introduziram nas idéias do tempo, não foi para as descartar, mas para descrevê-las enquanto enviesadas, fora de centro em relação à exigência que elas mesmas propunham, e reconhecivelmente nossas, nessa mesma qualidade. Assim, posto de parte o raciocínio sobre as causas, resta na experiência aquele desconcerto que foi o nosso ponto de partida: a sensação que o Brasil dá de dualismo e factício contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, contradições, conciliações e o que for combinações que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política nos ensinaram a considerar.[13]
Não faltam exemplos. Vejam-se alguns, menos para analisá-los, que para indicar a ubiquidade do quadro e a variação de que é capaz.
Nas revistas do tempo, sendo grave ou risonha, a apresentação do número inicial é composta para baixo e falsete: primeira parte, afirma-se o propósito redentor da imprensa, na tradição de combate da Ilustração; a grande seita fundada por Gutenberg afronta a indiferença geral, nas alturas o condor e a mocidade entreveem o futuro, ao mesmo tempo que repelem o passado e os preconceitos, enquanto a tocha regeneradora do Jornal desfaz as trevas da corrupção. Na segunda parte, conformando-se às circunstâncias, as revistas declaram a sua disposição cordata, de dar a todas as classes em geral e particularmente à honestidade das famílias, um meio de deleitável instrução e de ameno recreio . A intenção emancipadora casa-se com charadas, união nacional, figurinos, conhecimentos gerais e folhetins.[14] Caricatura desta sequência são os versinhos que servem de epígrafe à Marmota na Corte: Eis a Marmota/ Bem variada/ P ra ser de todos/ Sempre estimada.// Fala a verdade,/ Diz o que sente,/Ama e respeita/ A toda gente.
Se, noutro campo, raspamos um pouco os nossos muros, mesmo efeito de coisa compósita: A transformação arquitetônica era superficial. Sobre as paredes de terra, erguidas por escravos, pregavam-se papéis decorativos europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a criar a ilusão de um ambiente novo, como os interiores das residências dos países em industrialização. Em certos exemplos, o fingimento atingia o absurdo: pintavam-se motivos arquitetônicos greco-romanos pilastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. com perfeição de perspectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. Em outros, pintavam-se janelas nas paredes, com vistas sobre ambientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, escravos e terreiros de serviço.[15] O trecho refere-se a casas rurais na Província de São Paulo, segunda metade do séc. XIX. Quanto à corte: A transformação atendia à mudança dos costumes, que incluíam agora o uso de objetos mais refinados, de cristais, louças e porcelanas, e formas de comportamento cerimonial, como maneiras formais de servir à mesa. Ao mesmo tempo conferia ao conjunto, que procurava reproduzir a vida das residências europeias, uma aparência de veracidade. Desse modo, os estratos sociais que mais benefícios tiravam de um sistema econômico baseado na escravidão e destinado exclusivamente à produção agrícola procuravam criar, para seu uso, artificialmente, ambientes com características urbanas e europeias, cuja operação exigia o afastamento dos escravos e onde tudo ou quase tudo era produto de importação.[16]
Nas revistas do tempo, sendo grave ou risonha, a apresentação do número inicial é composta para baixo e falsete: primeira parte, afirma-se o propósito redentor da imprensa, na tradição de combate da Ilustração; a grande seita fundada por Gutenberg afronta a indiferença geral, nas alturas o condor e a mocidade entreveem o futuro, ao mesmo tempo que repelem o passado e os preconceitos, enquanto a tocha regeneradora do Jornal desfaz as trevas da corrupção. Na segunda parte, conformando-se às circunstâncias, as revistas declaram a sua disposição cordata, de dar a todas as classes em geral e particularmente à honestidade das famílias, um meio de deleitável instrução e de ameno recreio . A intenção emancipadora casa-se com charadas, união nacional, figurinos, conhecimentos gerais e folhetins.[14] Caricatura desta sequência são os versinhos que servem de epígrafe à Marmota na Corte: Eis a Marmota/ Bem variada/ P ra ser de todos/ Sempre estimada.// Fala a verdade,/ Diz o que sente,/Ama e respeita/ A toda gente.
Se, noutro campo, raspamos um pouco os nossos muros, mesmo efeito de coisa compósita: A transformação arquitetônica era superficial. Sobre as paredes de terra, erguidas por escravos, pregavam-se papéis decorativos europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a criar a ilusão de um ambiente novo, como os interiores das residências dos países em industrialização. Em certos exemplos, o fingimento atingia o absurdo: pintavam-se motivos arquitetônicos greco-romanos pilastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. com perfeição de perspectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. Em outros, pintavam-se janelas nas paredes, com vistas sobre ambientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, escravos e terreiros de serviço.[15] O trecho refere-se a casas rurais na Província de São Paulo, segunda metade do séc. XIX. Quanto à corte: A transformação atendia à mudança dos costumes, que incluíam agora o uso de objetos mais refinados, de cristais, louças e porcelanas, e formas de comportamento cerimonial, como maneiras formais de servir à mesa. Ao mesmo tempo conferia ao conjunto, que procurava reproduzir a vida das residências europeias, uma aparência de veracidade. Desse modo, os estratos sociais que mais benefícios tiravam de um sistema econômico baseado na escravidão e destinado exclusivamente à produção agrícola procuravam criar, para seu uso, artificialmente, ambientes com características urbanas e europeias, cuja operação exigia o afastamento dos escravos e onde tudo ou quase tudo era produto de importação.[16]
Ao vivo esta comédia está nos notáveis capítulos iniciais do Quincas Borba. Rubião, herdeiro recente, é constrangido a trocar o seu escravo crioulo por um cozinheiro francês e um criado espanhol, perto dos quais não fica à vontade. Além de ouro e prata, seus metais do coração, aprecia agora as estatuetas de bronze um Fausto e um Mefistófeles que são também de preço.
Matéria mais solene, mas igualmente marcada pelo tempo, é a letra de nosso hino à República, escrita em 1890, pelo poeta decadente Medeiros e Albuquerque. Emoções progressistas a que faltava o natural: Nós nem cremos que escravos outrora /Tenha havido em tão nobre país! (outrora é dois anos antes, uma vez que a Abolição é de 88). Em 1817, numa declaração do governo revolucionário de Pernambuco, mesmo timbre, com intenções opostas: Patriotas, vossas propriedades inda as mais opugnantes ao ideal de justiça serão sagradas.[17] Refere-se aos rumores de emancipação, que era preciso desfazer, para acalmar os proprietários.
Também a vida de Machado de Assis é um exemplo, na qual se sucedem rapidamente o jornalista combativo, entusiasta das inteligências proletárias, das classes ínfimas , autor de crônicas e quadrinhas comemorativas, por ocasião do casamento das princesas imperiais, e finalmente o Cavaleiro e mais tarde Oficial da Ordem da Rosa.[18]
Contra isso tudo vai sair a campo Sylvio Romero. É mister fundar uma nacionalidade consciente de seus méritos e defeitos, de sua força e de seus delíquios, e não arrumar um pastiche, um arremedo de judas das festas populares que só serve para vergonha nossa aos olhos do estrangeiro. (...) Só um remédio existe para tamanho desideratum: mergulharmo-nos na corrente vivificante das idéias naturalistas e monísticas, que vão transformando o velho mundo.[19]
À distancia é tão clara que tem graça a substituição de um arremedo por outro. Mas é também dramática, pois assinala quanto era alheia a linguagem na qual se expressava, inevitavelmente, o nosso desejo de autenticidade. Ao pastiche romântico iria suceder o naturalista. Enfim, nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mesma composição arlequinal , para falar com Mário de Andrade: o desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto.
Consolidada por seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde na política interna, a combinação de latifúndio e trabalho compulsório atravessou impávida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é matéria de controvérsia e tiros.[20]
O ritmo de nossa vida ideológica, no entanto, foi outro, também ele determinado pela dependência do país: à distância acompanhava os passos da Europa. Note-se, de passagem, que é a ideologia da independência que vai transformar em defeito esta combinação; bobamente, quando insiste na impossível autonomia cultural, e profundamente, quando reflete sobre o problema. Tanto a eternidade das relações sociais de base quanto a lepidez ideológica das elites eram parte a parte que nos toca da gravitação deste sistema por assim dizer solar, e certamente internacional, que é o capitalismo.
Em consequência, um latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social. Seria de supor que aqui perdessem a justeza, o que em parte se deu. No entanto, vimos que é inevitável este desajuste, ao qual estávamos condenados pela máquina do colonialismo, e ao qual, para que já fique indicado o seu alcance mais que nacional, estava condenada a mesma máquina quando nos produzia. Trata-se enfim de segredo mui conhecido, embora precariamente teorizado.
Para as artes, no caso, a solução parece mais fácil, pois sempre houve modo de adorar, citar, macaquear, saquear, adaptar ou devorar, estas maneiras e modas todas, de modo que refletissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos reconhecemos. Mas, voltemos atrás.
Em resumo, as idéias liberais não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram postas numa constelação especial, uma constelação prática, a qual formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acompanhar-lhes o movimento, de que ela, a falsidade, é parte verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas as idéias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem do dia e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de modernidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias quando pesaram no Abolicionismo.
Submetidas à influência do lugar, sem perderem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra nova, cujas graças, desgraças, ambiguidades e ilusões eram também singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua natureza.
Largamente sentido como defeito, bem conhecido mas pouco pensado, este sistema de impropriedades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances da reflexão. Contudo facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo. Exacerbado um nadinha, dará na força espantosa da visão de Machado de Assis.
Ora, o fundamento deste ceticismo não está seguramente na exploração refletida dos limites do pensamento liberal. Está, se podemos dizer assim, no ponto de partida intuitivo, que nos dispensava do esforço. Inscritas num sistema que não descrevem nem mesmo em aparência, as idéias da burguesia viam infirmada já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbítrio e favor. Abalava- se na base a sua intenção universal.
Assim, o que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola, para quem utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for, são uma roupa entre outras, muito da época mas desnecessariamente apertada. Está-se vendo que este chão social é de consequência para a história da cultura: uma gravitação complexa, em que volta e meia se repete uma constelação na qual a ideologia hegemônica do Ocidente faz figura derrisória, de mania entre manias. O que é um modo, também, de indicar o alcance mundial que têm e podem ter as nossas esquisitices nacionais.
Algo de comparável, talvez, ao que se passava na literatura russa. Diante desta, ainda os maiores romances do realismo francês fazem impressão de ingênuos. Por que razão? Justamente, é que a despeito de sua intenção universal, a psicologia do egoísmo racional, assim como a moral formalista, faziam no Império Russo efeito de uma ideologia estrangeira e portanto localizada e relativa. De dentro de seu atraso histórico, o país impunha ao romance burguês um quadro mais complexo.
A figura caricata do ocidentalizante, francófilo ou germanófilo, de nome frequentemente alegórico e ridículo, os ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram tudo formas de trazer à cena a modernização que acompanha o Capital. Estes homens esclarecidos mostram-se alternadamente lunáticos, ladrões, oportunistas, crudelíssimos, vaidosos, parasitas etc. O sistema de ambiguidades assim ligadas ao uso local do ideário burguês uma das chaves do romance russo pode ser comparado àquele que descrevemos para o Brasil. São evidentes as razões sociais da semelhança.
Também na Rússia a modernização se perdia na imensidão do território e da inércia social, entrava em choque com a instituição servil e com seus restos, choque experimentado como inferioridade e vergonha nacional por muitos, sem prejuízo de dar a outros um critério para medir o desvario do progressismo e do individualismo que o Ocidente impunha e impõe ao mundo. Na exacerbação deste confronto, em que o progresso é uma desgraça e o atraso uma vergonha, está uma das raízes profundas da literatura russa. Sem forçar em demasia uma comparação desigual, há em Machado pelas razões que sumariamente procurei apontar um veio semelhante, algo de Gogol, Dostoievski, Gontcharov, Tchecov, e de outros talvez, que não conheço.[21]
Em suma, a própria desqualificação do pensamento entre nós, que tão amargamente sentíamos, e que ainda hoje asfixia o estudioso do nosso século XIX, era uma ponta, um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a história mundial.[22]
Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente Brasil põe e repõe idéias europeias, sempre em sentido impróprio. É nesta qualidade que elas serão matéria e problema para a literatura. O escritor pode não saber disso, nem precisa, para usá-las. Mas só alcança uma ressonância profunda e afinada caso lhes sinta, registre e desdobre ou evite o descentramento e a desafinação. Se há um número indefinido de maneiras de fazê-lo, são palpáveis e definíveis as contravenções. Nestas registra-se, como ingenuidade, tagarelice, estreiteza, servilismo, grosseria etc., a eficácia específica e local de uma alienação de braços longos a falta de transparência social, imposta pelo nexo colonial e pela dependência que veio continuá-lo.
Isso posto, o leitor pouco ficou sabendo de nossa história literária ou geral, e não situa Machado de Assis. De que lhe servem então estas páginas? Em vez do panorama e da ideia correlata de impregnação pelo ambiente, sempre sugestiva e verdadeira, mas sempre vaga e externa, tentei uma solução diferente: especificar um mecanismo social, na forma em que ele se torna elemento interno e ativo da cultura; uma dificuldade inescapável tal como o Brasil a punha e repunha aos seus homens cultos, no processo mesmo de sua reprodução social. Noutras palavras, uma espécie de chão histórico, analisado, da experiência intelectual.
Pela ordem, procurei ver na gravitação das idéias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as idéias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital. Em suma, para analisar uma originalidade nacional, sensível no dia-a-dia, fomos levados a refletir sobre o processo da colonização em seu conjunto, que é internacional. O tic-tac das conversões e reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo planetário.
Ora, a gravitação cotidiana das idéias e das perspectivas práticas é a matéria imediata e natural da literatura, desde o momento em que as formas fixas tenham perdido a sua vigência para as artes. Portanto, é o ponto de partida também do romance, quanto mais do romance realista. Assim, o que estivemos descrevendo é a feição exata com que a História mundial, na forma estruturada e cifrada de seus resultados locais, sempre repostos, passa para dentro da escrita, em que agora influi pela via interna o escritor saiba ou não, queira ou não queira. Noutras palavras, definimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado, que é resultado histórico, e pode ser origem artística.
Ao estudá-lo, vimos que difere do europeu, usando embora o seu vocabulário. Portanto a própria diferença, a comparação e a distância fazem parte de sua definição. Trata-se de uma diferença interna o descentramento de que tanto falamos em que as razões nos aparecem ora nossas, ora alheias, a uma luz ambígua, de efeito incerto. Resulta uma química também singular, cujas afinidades e repugnâncias acompanhamos e exemplificamos um pouco. É natural, por outro lado, que esse material proponha problemas originais à literatura que dependa dele. Sem avançarmos por agora, digamos apenas que, ao contrário do que geralmente se pensa, a matéria do artista mostra assim não ser informe: é historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência. Ao formá-la, por sua vez, o escritor sobrepõe uma forma a outra forma, e é da felicidade desta operação, desta relação com a matéria pré-formada em que imprevisível dormita a História que vão depender profundidade, força, complexidade dos resultados. São relações que nada têm de automático, e veremos no detalhe quanto custou, entre nós, acertá-las para o romance.
E vê-se, variando-se ainda uma vez o mesmo tema, que embora lidando com o modesto tic-tac de nosso dia-a-dia, e sentado à escrivaninha num ponto qualquer do Brasil, o nosso romancista sempre teve como matéria, que ordena como pode, questões da história mundial; e que não as trata, se as tratar diretamente.
Matéria mais solene, mas igualmente marcada pelo tempo, é a letra de nosso hino à República, escrita em 1890, pelo poeta decadente Medeiros e Albuquerque. Emoções progressistas a que faltava o natural: Nós nem cremos que escravos outrora /Tenha havido em tão nobre país! (outrora é dois anos antes, uma vez que a Abolição é de 88). Em 1817, numa declaração do governo revolucionário de Pernambuco, mesmo timbre, com intenções opostas: Patriotas, vossas propriedades inda as mais opugnantes ao ideal de justiça serão sagradas.[17] Refere-se aos rumores de emancipação, que era preciso desfazer, para acalmar os proprietários.
Também a vida de Machado de Assis é um exemplo, na qual se sucedem rapidamente o jornalista combativo, entusiasta das inteligências proletárias, das classes ínfimas , autor de crônicas e quadrinhas comemorativas, por ocasião do casamento das princesas imperiais, e finalmente o Cavaleiro e mais tarde Oficial da Ordem da Rosa.[18]
Contra isso tudo vai sair a campo Sylvio Romero. É mister fundar uma nacionalidade consciente de seus méritos e defeitos, de sua força e de seus delíquios, e não arrumar um pastiche, um arremedo de judas das festas populares que só serve para vergonha nossa aos olhos do estrangeiro. (...) Só um remédio existe para tamanho desideratum: mergulharmo-nos na corrente vivificante das idéias naturalistas e monísticas, que vão transformando o velho mundo.[19]
À distancia é tão clara que tem graça a substituição de um arremedo por outro. Mas é também dramática, pois assinala quanto era alheia a linguagem na qual se expressava, inevitavelmente, o nosso desejo de autenticidade. Ao pastiche romântico iria suceder o naturalista. Enfim, nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mesma composição arlequinal , para falar com Mário de Andrade: o desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto.
Consolidada por seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde na política interna, a combinação de latifúndio e trabalho compulsório atravessou impávida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é matéria de controvérsia e tiros.[20]
O ritmo de nossa vida ideológica, no entanto, foi outro, também ele determinado pela dependência do país: à distância acompanhava os passos da Europa. Note-se, de passagem, que é a ideologia da independência que vai transformar em defeito esta combinação; bobamente, quando insiste na impossível autonomia cultural, e profundamente, quando reflete sobre o problema. Tanto a eternidade das relações sociais de base quanto a lepidez ideológica das elites eram parte a parte que nos toca da gravitação deste sistema por assim dizer solar, e certamente internacional, que é o capitalismo.
Em consequência, um latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social. Seria de supor que aqui perdessem a justeza, o que em parte se deu. No entanto, vimos que é inevitável este desajuste, ao qual estávamos condenados pela máquina do colonialismo, e ao qual, para que já fique indicado o seu alcance mais que nacional, estava condenada a mesma máquina quando nos produzia. Trata-se enfim de segredo mui conhecido, embora precariamente teorizado.
Para as artes, no caso, a solução parece mais fácil, pois sempre houve modo de adorar, citar, macaquear, saquear, adaptar ou devorar, estas maneiras e modas todas, de modo que refletissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos reconhecemos. Mas, voltemos atrás.
Em resumo, as idéias liberais não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram postas numa constelação especial, uma constelação prática, a qual formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acompanhar-lhes o movimento, de que ela, a falsidade, é parte verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas as idéias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem do dia e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de modernidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias quando pesaram no Abolicionismo.
Submetidas à influência do lugar, sem perderem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra nova, cujas graças, desgraças, ambiguidades e ilusões eram também singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua natureza.
Largamente sentido como defeito, bem conhecido mas pouco pensado, este sistema de impropriedades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances da reflexão. Contudo facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo. Exacerbado um nadinha, dará na força espantosa da visão de Machado de Assis.
Ora, o fundamento deste ceticismo não está seguramente na exploração refletida dos limites do pensamento liberal. Está, se podemos dizer assim, no ponto de partida intuitivo, que nos dispensava do esforço. Inscritas num sistema que não descrevem nem mesmo em aparência, as idéias da burguesia viam infirmada já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbítrio e favor. Abalava- se na base a sua intenção universal.
Assim, o que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola, para quem utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for, são uma roupa entre outras, muito da época mas desnecessariamente apertada. Está-se vendo que este chão social é de consequência para a história da cultura: uma gravitação complexa, em que volta e meia se repete uma constelação na qual a ideologia hegemônica do Ocidente faz figura derrisória, de mania entre manias. O que é um modo, também, de indicar o alcance mundial que têm e podem ter as nossas esquisitices nacionais.
Algo de comparável, talvez, ao que se passava na literatura russa. Diante desta, ainda os maiores romances do realismo francês fazem impressão de ingênuos. Por que razão? Justamente, é que a despeito de sua intenção universal, a psicologia do egoísmo racional, assim como a moral formalista, faziam no Império Russo efeito de uma ideologia estrangeira e portanto localizada e relativa. De dentro de seu atraso histórico, o país impunha ao romance burguês um quadro mais complexo.
A figura caricata do ocidentalizante, francófilo ou germanófilo, de nome frequentemente alegórico e ridículo, os ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram tudo formas de trazer à cena a modernização que acompanha o Capital. Estes homens esclarecidos mostram-se alternadamente lunáticos, ladrões, oportunistas, crudelíssimos, vaidosos, parasitas etc. O sistema de ambiguidades assim ligadas ao uso local do ideário burguês uma das chaves do romance russo pode ser comparado àquele que descrevemos para o Brasil. São evidentes as razões sociais da semelhança.
Também na Rússia a modernização se perdia na imensidão do território e da inércia social, entrava em choque com a instituição servil e com seus restos, choque experimentado como inferioridade e vergonha nacional por muitos, sem prejuízo de dar a outros um critério para medir o desvario do progressismo e do individualismo que o Ocidente impunha e impõe ao mundo. Na exacerbação deste confronto, em que o progresso é uma desgraça e o atraso uma vergonha, está uma das raízes profundas da literatura russa. Sem forçar em demasia uma comparação desigual, há em Machado pelas razões que sumariamente procurei apontar um veio semelhante, algo de Gogol, Dostoievski, Gontcharov, Tchecov, e de outros talvez, que não conheço.[21]
Em suma, a própria desqualificação do pensamento entre nós, que tão amargamente sentíamos, e que ainda hoje asfixia o estudioso do nosso século XIX, era uma ponta, um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a história mundial.[22]
Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente Brasil põe e repõe idéias europeias, sempre em sentido impróprio. É nesta qualidade que elas serão matéria e problema para a literatura. O escritor pode não saber disso, nem precisa, para usá-las. Mas só alcança uma ressonância profunda e afinada caso lhes sinta, registre e desdobre ou evite o descentramento e a desafinação. Se há um número indefinido de maneiras de fazê-lo, são palpáveis e definíveis as contravenções. Nestas registra-se, como ingenuidade, tagarelice, estreiteza, servilismo, grosseria etc., a eficácia específica e local de uma alienação de braços longos a falta de transparência social, imposta pelo nexo colonial e pela dependência que veio continuá-lo.
Isso posto, o leitor pouco ficou sabendo de nossa história literária ou geral, e não situa Machado de Assis. De que lhe servem então estas páginas? Em vez do panorama e da ideia correlata de impregnação pelo ambiente, sempre sugestiva e verdadeira, mas sempre vaga e externa, tentei uma solução diferente: especificar um mecanismo social, na forma em que ele se torna elemento interno e ativo da cultura; uma dificuldade inescapável tal como o Brasil a punha e repunha aos seus homens cultos, no processo mesmo de sua reprodução social. Noutras palavras, uma espécie de chão histórico, analisado, da experiência intelectual.
Pela ordem, procurei ver na gravitação das idéias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as idéias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital. Em suma, para analisar uma originalidade nacional, sensível no dia-a-dia, fomos levados a refletir sobre o processo da colonização em seu conjunto, que é internacional. O tic-tac das conversões e reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo planetário.
Ora, a gravitação cotidiana das idéias e das perspectivas práticas é a matéria imediata e natural da literatura, desde o momento em que as formas fixas tenham perdido a sua vigência para as artes. Portanto, é o ponto de partida também do romance, quanto mais do romance realista. Assim, o que estivemos descrevendo é a feição exata com que a História mundial, na forma estruturada e cifrada de seus resultados locais, sempre repostos, passa para dentro da escrita, em que agora influi pela via interna o escritor saiba ou não, queira ou não queira. Noutras palavras, definimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado, que é resultado histórico, e pode ser origem artística.
Ao estudá-lo, vimos que difere do europeu, usando embora o seu vocabulário. Portanto a própria diferença, a comparação e a distância fazem parte de sua definição. Trata-se de uma diferença interna o descentramento de que tanto falamos em que as razões nos aparecem ora nossas, ora alheias, a uma luz ambígua, de efeito incerto. Resulta uma química também singular, cujas afinidades e repugnâncias acompanhamos e exemplificamos um pouco. É natural, por outro lado, que esse material proponha problemas originais à literatura que dependa dele. Sem avançarmos por agora, digamos apenas que, ao contrário do que geralmente se pensa, a matéria do artista mostra assim não ser informe: é historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência. Ao formá-la, por sua vez, o escritor sobrepõe uma forma a outra forma, e é da felicidade desta operação, desta relação com a matéria pré-formada em que imprevisível dormita a História que vão depender profundidade, força, complexidade dos resultados. São relações que nada têm de automático, e veremos no detalhe quanto custou, entre nós, acertá-las para o romance.
E vê-se, variando-se ainda uma vez o mesmo tema, que embora lidando com o modesto tic-tac de nosso dia-a-dia, e sentado à escrivaninha num ponto qualquer do Brasil, o nosso romancista sempre teve como matéria, que ordena como pode, questões da história mundial; e que não as trata, se as tratar diretamente.
Roberto Schwarz
[1] A. R. de Torres Bandeira, "A liberdade do trabalho e a concorrência, seu efeito, são prejudiciais à classe operária?" , in O Futuro, n.º IX, 15-1-1863. Machado era colaborador constante nesta revista
[2] A Polêmica Alencar-Nabuco, organização e introdução de Afrânio Coutinho, Ed. Tempo Brasileiro, R. J., 1965, p. 106.
[3] Depoimento de uma firma comercial, M. Wright & Cia., com respeito à crise financeira dos anos 50. Citado por Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, S. P., 1936, vol. 1, p. 188, e retomado por S. B. de Holanda, Raízes do Brasil, J. Olympio, R. J., 1956, p. 96. In Roberto Schwartz, "As ideias fora de lugar". Ao vencedor as Batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, 2000 (1ª ed.), 2012 (6ª ed.), São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, Coleção Espírito Crítico.
[4] E. Viotti da Costa, "Introdução ao estudo da emancipação política", in C. G. Mota ed., Brasil em Perspectiva, Difusão Europeia do Livro, S. P., 1968.
[5] S. B. de Holanda, op. cit., p. 15.
[6] E. Viotti da Costa, op. cit.
[7] F. H. Cardoso, Capitalismo e Escravidão, Difusão Europeia do Livro, S. P., 1962, p. 189-191 e 198
[8] Conforme observa Felipe de Alencastro em trabalho ainda inédito, a verdadeira questão nacional de nosso século XIX foi a defesa do tráfico negreiro contra a pressão inglesa. Uma questão que não podia ser menos propícia ao entusiasmo intelectual.
[9] Para uma exposição mais completa do assunto, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata, Instituto de Estudos Brasileiros, S. P., 1969.
[10] Sobre os efeitos ideológicos do latifúndio, ver o cap. III de Raízes do Brasil, A herança rural .
[11] Como observa Machado de Assis, em 1879, o influxo externo é que determina a direção do movimento; não há por ora no nosso ambiente, a força necessária à invenção de doutrinas novas . Cf. A nova geração , Obra Completa, Aguilar, R. J., 1959, vol. III, p. 826-827.
[12] G. Lukács, "Marx und das Problem des Ideologischen Verfalls", in Probleme des Realismus, Werke, vol. 4, Luchterhand, Neuwied.
[13] Explorada em outra linha, a mesma observação encontra-se em Sérgio Buarque: Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho e de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem. (op. cit., p. 15).
[14] Ver o Prospecto de O Espelho, Revista semanal de literatura, modas, indústria e artes, Typographia de F de Paula Brito, R. J., 1859, n.º 1, p. 1; Introdução da Revista Fluminense, Semanário noticioso, literário, científico, recreativo etc., etc., ano , n.º 1, novembro de 1868, p. 1 e 2; A Marmota na Corte, Typ. de Paula Brito, n.º 1, 7 de setembro de 1840, p. 1; Revista Ilustrada, publicada por Ângelo Agostini, R. J., 1-1-1876, n.º 1; Apresentação de O Bezouro, folha humorística e satírica, 1.º Anno, n.º 1, 6 de abril de 1878; Cavaco, in O Cabrião, n.º 1, Typ. Imperial, S. P., 1866, p. 2.
[15] Nestor Goulart Reis Filho, Arquitetura Residencial Brasileira no Século XIX, manuscrito, p. 14- 15.
[16] Nestor Goulart Reis Filho, op. cit., p. 8.
[17] Viotti da Costa, op. cit., p. 104.
[18] Jean-Michel Massa, A Juventude de Machado de Assis, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1883, p. 15.
[19] S. Romero, Ensaios de Crítica Parlamentar, Moreira, Maximino & Cia, Rio de Janeiro, 1883, p. 15.
[20] Para as razões desta inércia, ver Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1971.
[21] 21 Para uma construção rigorosa de nosso problema ideológico, em linha um pouco diversa desta, ver Paula Beiguelman, Teoria e Ação no Pensamento Abolicionista, vol. I de Formação Política do Brasil, Livraria Pioneira Ed., S. Paulo, 1967, em que há várias citações que parecem sair de um romance russo. Veja-se a seguinte, de Pereira Barreto: "De um lado estão os abolicionistas, estribados sobre o sentimentalismo retórico e armados da metafísica revolucionária, correndo após tipos abstratos para realizá-los em fórmulas sociais; de outro estão os lavradores, mudos e humilhados, na atitude de quem se reconhece culpado ou medita uma vingança impossível. P. Barreto é defensor de uma agricultura científica é um progressista do café e nesse sentido acha que a abolição deve ser efeito automático do progresso agrícola. Além de que os negros são uma raça inferior, e é uma desgraça depender deles." Op. cit., p. 159.
[22] Antonio Candido lança algumas idéias neste sentido. Procura distinguir uma linhagem malandra em nossa literatura. Veja-se a sua "Dialética da Malandragem", na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 1970, n.º 8. Também os parágrafos sobre a Antropofagia, na "Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade", in Vários Escritos, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1970, p. 84 e ss.
domingo, outubro 15, 2017
A Quem Serve A Justiça Nacional 1
15/10/2017, Pedro Augusto Pinho (msg. recebida por e-mail)
Há sempre um poder e seu representante ou operador. Nos times esportivos, os cartolas e os capitães; nas Igrejas, os bispos e os párocos ou pastores; nas empresas, os acionistas e os chefes executivos e assim por diante. Mas há um Poder que conduz a sociedade e que também tem seus executivos. Este Poder pode levar à fome, ao meio da abundância de víveres, fazer irmãos de etnia e fé se odiarem e se combaterem até a morte, provocar a destruição e a guerra. Este Poder foi dos senhores feudais, dos Papas, dos Imperadores. Hoje ele é do sistema financeiro internacional, que abrevio "banca", muito mais complexo e invisível, mas nem por isso menos perigoso e cruel.
Ele também se apresenta por seus executivos. O Poder já foi representado pelos religiosos, pelas forças armadas, agora é o judiciário quem ministra suas vontades.
Embora voltado para meu maior interesse, a pátria brasileira, este Poder e seu executivo não são jabuticabas. Eles se espalham pelo mundo. Mas só trataremos do Brasil.
Este artigo está dividido em duas partes: a origem e a justiça.
A ORIGEM
A leitura que o grande sociólogo Jessé Souza (JS) faz da obra prima de outro importante analista da sociedade brasileira, Gilberto Freyre (GF), nos guiará para o entendimento da sociedade de classes no Brasil. Refiro-me, especificamente, a A Elite do Atraso, da escravidão à Lava Jato (Leya, RJ, 2017) e Casa-Grande & Senzala, formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (Imprensa Oficial, Recife, 14ª edição brasileira, 2 volumes, 1966).
O Brasil foi colonizado por um país de pequena população e território. Portugal continental tem 88.705 km² e, em 1600, beirava um milhão e trezentas mil pessoas. Logo, a simples ocupação para manutenção e defesa do país descoberto – o Brasil, no século XVI, tinha seu espaço definido pelo Tratado de Tordesilhas, a área a leste da linha reta de Marajó (Pará) a Laguna (Santa Catarina) – já seria uma empreitada formidável.
A escravidão negra e o "modo árabe" da convivência foram as escolhas, para o Brasil, pela aristocracia lusa. O denominado "modo árabe", ou "mouro" ou "maometano", diz respeito à família poligâmica com a característica peculiar da ligação do filho com o pai pela fé, e daí pelos costumes e rituais; o filho torna-se igual ao pai. Aqui, sobrepõe-se a vontade do patriarca, mas a família poligâmica, além da importância econômica e política, vai gerar os ocupantes de "funções de confiança", seja para controle dos bens e do trabalho, seja para caça de escravos, seja para outras funções de intermediação e capatazia onde Jessé Souza vê a "genealogia das classes médias entre nós". E acrescenta: "sua função de capataz da elite é preservada em algumas frações e modernizada (...) (como) a manutenção da distância social em relação aos setores populares".
Assinalemos que o Império Português, diferentemente dos outros que então existiam e surgiriam, não teve um modelo colonial único, nem mesmo com princípios semelhantes. Isto é muito bem apresentado pelo historiador Charles Boxer, emO Império Marítimo Português (Edições 70, Lisboa, 2ª Ed., 2017), e pelo jurista António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviatan (Almedina, Coimbra, 1994).
Conforme Philip Curtin (The Atlantic slave trade: a census, WUP, Madison, 1969), dez milhões de africanos vieram para as Américas e, praticamente, a metade para o Brasil, até o século XVIII. Fica nítida a desproporção demográfica e a preocupação de implementar um sistema social (político, institucional) infenso às revoltas, capaz de manter submissa aos interesses coloniais toda população local.
"Sociedade que se desenvolveria (...) pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia social e política" (GF, 1º v.). Mas a própria religião se curvaria "à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos (pois) a capela era mera extensão da casa-grande" (JS).
Vemos, pela análise destes brilhantes exegetas, que a sociedade brasileira teve, em seu primórdio, todos os poderes, monocraticamente enfeixados, num só. E este modo de encarar a vida coletiva vai se ajustando à evolução econômica, tecnológica, influências externas, mas estará subjacente ao psicossocial brasileiro.
O passo seguinte, exposto por Jessé Souza, é o familismo. Transcrevo: "a proteção patriarcal é (...) uma extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca. (Mas) o familismo tende a instaurar alguma forma de bilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seus dependentes, mas também entre famílias diferentes, criando um sistema complexo de alianças e rivalidades".
O exclusivismo luso vai gerar no Brasil um componente autárquico, sendo o subsistema "casa-grande/senzala" seu elemento principal. Este sistema "dá conta da singularidade de nossa formação social e cultural" (JS).
"É o sadismo transformado em mandonismo (...) que sai da esfera privada e invade a esfera pública inaugurando uma dialética profundamente brasileira de privatização do público pelos poderosos" (JS).
No século XIX, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, surgirão novas variáveis, sendo, para mim, as mais importantes a urbanização e a transferência da sede do poder nacional do nordeste para o sudeste.
Todavia, além do subsistema casa-grande/senzala, havia "A Colônia em Movimento", como Sheila de Castro Faria denominou, na publicação, sua tese de doutoramento (Editora Nova Fronteira, RJ, 1998). Eram as pessoas/famílias que construíam um mercado interno – produção, transporte, comercialização e serviços de toda ordem – fora dos ciclos daplantation e, obviamente, dos status referenciados à casa-grande.
Literalmente constituía uma população marginal, que nem por isso deixou de enriquecer, conforme se lê no surpreendente artigo desta mesma historiadora "Mulheres forras – Riqueza e estigma social" (UFF RevistaTempo, nº 9, jul-2000), bem como em obras do excelente historiador João Fragoso ("Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-colonial", Tese UFF, 1990, e O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil, com Manolo Florentino, Diadorim, RJ, 1993).
Certamente meu atilado leitor já percebeu que a independência do Brasil teve menor repercussão na sociedade nacional do que a vinda de D. João VI. Como analisara Gustavo Barroso, muito antes de deixar de ser, formalmente, uma colônia portuguesa, o Brasil já era uma colônia britânica e só se livraria desta, já avançado o século XX, para o ser dos Estados Unidos da América (EUA) e, atualmente, da "banca".
Jessé Souza divide o Brasil em quatro grandes classes sociais: a elite dos proprietários, que chamarei, com uma dose de ironia, aristocracia, as frações da classe média, a classe trabalhadora semiqualificada, que melhor seriam designadas: operários e camponeses (trabalhadores da cidade e do campo), e a ralé, que é a sua expressão para o lúmpen.
A classe média, que formará a quase totalidade do Poder Judiciário, teve origem, como pudemos observar, nos agregados familiares da casa-grande e naquela "colônia em movimento", esta feliz expressão de Sheila Faria.
Concluo esta parte com mais uma reflexão. Sabemos, e os autores já citados nos dão abundantes lições, que o enriquecimento não constitui, embora seja básico, o único fator para a mudança de classe. Não posso deixar de me referir, a este respeito, ao fundamental Pierre Bourdieu: A Distinção (Zouk, RS, 2ª Ed., 2015) e aos estudos reunidos por Sergio Miceli em A Economia das Trocas Simbólicas (Perspectiva, SP, 8ª Ed., 2015).
Ao assumir um papel na estrutura de poder, a classe média – por definição, a que está no meio – se posicionará em direção à aristocracia, minoritária em população, ou ao conjunto dos operários, camponeses e lúmpens, amplamente majoritário. Vem daí um primeiro, mesquinho, mas algumas vezes inconsciente impulso: dividir com menos sobra mais, e adere aos interesses de uma classe que não a assimilará, mas que irá sempre comprá-la.
Está aí o suborno que, frente ao espelho, tanta ojeriza – falsa repulsa de quem frauda imposto, suborna e fura fila – parece inspirar à classe média, em todas as suas frações, principalmente quando algum executivo favorece, com mínimo que seja, o conjunto majoritário. A aristocracia não frauda imposto, apenas não o paga pois seus ganhos são direcionados para paraíso fiscal; e não fura fila, porque tem entrada exclusiva. A aristocracia encontra sempre quem suje as mãos por ela.
A JUSTIÇA
Qual o propósito da justiça, em nossa formação social?
Em primeiro lugar, garantir os privilégios. Quando um aristocrata direciona seu filho para o poder judiciário, não espera ver um notável jurista, mas quem revogue, pela jurisprudência ou pelo arbítrio, um dispositivo legal que o incomode.
Estamos, tão somente, dando sequência à formação, à origem dos componentes majoritários do judiciário, ontem e sempre.
O que significa para o judiciário o mundo competitivo? O que é para o judiciário o Estado Mínimo?
São estas questões que colocam as ações do judiciário, neste Brasil pós golpe de 2016, em contradição com suas próprias origens e poder.
Passemos a analisá-las. Jessé Souza, seguindo Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos (José Olympio, RJ, 1951, 3 vol.), considera que, em 1808, o Brasil recebeu, com a corte portuguesa, o "mercado capitalista competitivo e o Estado burocrático centralizado" (JS). Inicia-se a decadência do patriarcado rural e a ascendência da cultura urbana. E, logo, a colonização inglesa.
Merece breve comentário esta nova colonização. A Inglaterra moderna foi construída pelo financismo. Isso não constitui matéria opinativa, mas a leitura da história, desde 1600, quando é criada a Companhia das Índias Orientais. Segue-se a disputa comercial com a Holanda por todo século XVII – lembrar as guerras anglo-holandesas –, a criação do Banco da Inglaterra, os modelos de colonização nos EUA (público e privado) e o uso da dívida (ou financiamento) na revolução industrial. Esta gestão inglesa do poder só encontrará oposição no final do século XIX, com o despontar do industrialismo estadunidense.
No Brasil colonizado pela Inglaterra, por todo restante do século XIX até a Revolução de 1930, prevaleceu sempre a questão da dívida. Dos primeiros atos de D. Pedro I foi enviar emissários a Londres para renegociar a dívida deixada pelo reinado português.
A estreita vinculação da aristocracia rural com o modelo econômico exportador levou nossos mais pretéritos juristas a escolher nesta área sua produção literária. É de 1798 os Princípios de Direito Mercantil e Leis de Marinha, de José da Silva Lisboa. E fomos formando bacharéis que se preocupavam com as questões da aristocracia, dos proprietários, quais sejam, as comerciais, as penais, a defesa dos patrimônios, para os quais também se consolidavam as leis civis.
Como irá se manifestar o último presidente na República Velha, "a questão social é caso de polícia", o que ainda é, muito reservadamente, o pensamento da aristocracia financeira de nossos dias e de seus capitães do mato.
Assim, o poder judiciário foi constituído e se desenvolveu para defesa da minoria da população, que suborna e assalta o próprio Estado.
Hoje, após aplicar o golpe, com outros apoios, o judiciário se excede, julgando diferentemente causas iguais, porém com distintos réus.
Ficasse na defesa da aristocracia, seria o judiciário que o Brasil sempre conheceu. Agora, como executivo da banca, atua na consecução dos objetivos daquele sistema. Entre eles está a destruição dos Estados Nacionais.
Mais estranho do que perseguir sua própria extinção – sem Estado não há estrutura jurídica e prevalece a lei da selva – o judiciário evoca uma competitividade de quem é, pela própria natureza, monopolista. Não conheço e peço aos caros leitores que me indiquem uma justiça que seja competitiva com ela mesma; dois tribunais concorrendo pela causa? Você escolhendo um juiz mais barato?
Ao acrescentar a defesa da classe mais favorecida, a dos interesses alienígenas, a justiça no Brasil deixa de ser, em primeiro lugar, justiça, e depois, brasileira.
É o que tenho a lamentar.*****
sexta-feira, outubro 13, 2017
Educação Privada à moda EUA não entrega o que promete
8/10/2017, Seth Ferris, New Eastern Outlook
"É feito deliberadamente, porque quanto mais execrada e desacreditada é a educação pública, mais pais e alunos buscam as empresas de educação privada, o que gera mais desigualdade e estimula as maiorias pobres a crer que, quanto mais o cidadão é pobre e explorado, mais ele/ela tem de se agarrar a, e defender, qualquer coisa que já tenha, por imprestável e envenenada que seja."______________________________
Não existe o tal de sistema educacional neutro. Ou a educação ensina a comprar sem questionar o que o status quo lhe vende e a apoiar esse arranjo, ou a educação treina para solucionar problemas que capacitem para mudar o status quo. Por isso governos estrangeiros quase sempre estimulam a controvérsia em torno de ações em países que eles estejam trabalhando para influenciar. Quanto mais as pessoas reclamem das posições políticas das forças invasoras/de ocupação e polemizem em torno de quem faz o que contra quem e para quê, menos atenção elas dão à educação, 3ª coluna das forças de ocupação.
Onde embaixadas e agências de ajuda 'humanitária' mandam, o que jamais falta é reforma educacional e escolar. São incontáveis. Mas ninguém fala muito disso, porque as recompensas potenciais de explorar o sistema – encontrando a pequena porta na Matrix – são tão grandes, que as pessoas desistirão de praticamente qualquer coisa em nome da progressiva destruição das gerações futuras.
Que benefícios trazem as tais reformas? Mais ajudam ou mais prejudicam um país em transição?
As pessoas tendem a ver as mesmas coisas de diferentes modos em diferentes partes do mundo. Cidadãos de monarquias compreendem os princípios da monarquia, cidadãos de repúblicas em geral sonham com voltar a ser república. Isso se deve em grande medida a diferenças na educação: o que parecia natural em gerações anteriores, por exemplo a conquista de povos "primitivos" no além-mar para benefício deles, hoje já soa esquisita, porque mudanças na educação levaram as pessoas a ver as coisas desse outro modo, sem para isso terem de examinar a questão 'tecnicamente', ou de bem perto.
As políticas públicas e o modo como a ajuda é distribuída nos dizem muito sobre a atitude profunda real, não só sobre a atitude declarada, que países mais importantes têm em relação a outros ditos menos importantes. Mas os países maiores também se servem de outra alavanca de influência, menos notável porque poucos têm a coragem necessária para ver que é usada como alavanca.
Os culpados de sempre
Considere-se, por exemplo, a República Democrática da Geórgia, quase sempre ignorada quando se discutem políticas para a educação. A Geórgia é aliada dos EUA, e todos perguntam o que fazem lá os EUA, quem os EUA apoiam e que relação há entre os princípios dos EUA e o que os norte-americanos fazem realmente na Geórgia. Mas os que se opõem a coisas como o dinheiro da ajuda ser desviado para financiar a corrupção política, mesmos assim continuam a desejar para os filhos, na Geórgia, aquela educação baseada nos EUA, porque creem que ela os ajudará a chegar a locais controlados pelos mesmos EUA.
Geórgia tem pouco a oferecer aos seus cidadãos pobres, em termos de educação. Citando uma ex-aluna, Anna Simonishvili, "as escolas georgianas não estão garantindo o conhecimento e as competências necessárias para que os alunos sejam bem-sucedidos na vida acadêmica e profissional. O nível de educação sequer é suficiente para que os candidatos passem nos exames de escola e nacionais ou consigam entrar nas melhores universidades na Geórgia."
Mas, apesar disso há sempre mais e mais ajuda disponível para instituições que forneçam educação à ocidental, do que para as que fornecem educação à georgiana. Há sempre candidatos excedentes para programas de intercâmbio internacional, e poucos dos recursos nacionais alocados no país são usados para elevar os georgianos a nível aceitável de formação e educação. Mesmo os que se dedicam a criticar fortemente o modelo de educação à norte-americana na República da Geórgia ficam sem alternativa que não seja a própria educação à moda EUA na Geórgia, concebida para fazê-los esquecer-se do que ainda haja neles de georgiano.
Por tudo isso, há um lucrativo mercado para escolas privadas que oferecem educação que extrairá crianças da Geórgia e as despachará para outro estado-vassalo dos EUA, e de fato lhes ensinará algo útil hoje, quando a educação pública georgiana foi reduzida a nada, para abrir espaço para o mercado 'educacional'. Poucos podem pagar por essa educação 'de qualidade', mas quanto menor o número dos que possam pagar, mais prestígio a escola assegura e mais dinheiro pode cobrar. Ninguém ousa questionar o que é ensinado ou por quê, ou que trilhas abrem-se para os que compram essa 'educação', porque muitas perguntas podem espantar para longe também essa última chance, deixando os georgianos médios sem nenhuma 'educação'.
Escola nova, velhos truques
Considerem-se a New School e a American High School em Tbilisi, sempre listadas como lugares óbvios para educar jovens georgianos ambiciosos. As duas estão entre as muitas escolas que desapontaram levas sucessivas de pais e alunos. Como em outros casos, não precisaria ser assim. Mas as escolas desapontam deliberadamente os próprios clientes, porque se realmente entregassem a boa educação que propagandeiam os georgianos seriam realmente formados como cidadãos do mundo, iguais aos demais, com chances iguais a jovens de outros países... Precisamente o que os patrocinadores estrangeiros de 'educação' entendem que precisam evitar que aconteça, e custe o que custar.
A New School é escola pequena, com talvez 30 professores estrangeiros e menos de 50 funcionários georgianos. Oferece vagas aos que querem obter certificado escolar que lhes permita sair da Geórgia – e custe esse certificado o quanto custar. A escola portanto trata a clientela como público cativo.
Na New School e outras, o American Way, disfarçado sob uma máscara de educação europeia/internacional, é o único way à venda. Se você não concorda, adeus futuro. Se concordar, fará qualquer coisa que a escola o mande fazer. Ninguém precisa chantagear políticos ou quem peça e receba 'ajuda' educacional, se o alvo da 'ajuda' já foi persuadido, desde bem antes, de que nunca teve nem terá arma alguma para resistir.
A propaganda da New School na Geórgia oferece programa de "International Baccalaureate (IB), com superior rigor acadêmico e ênfase no desenvolvimento pessoal dos estudantes", mas nem por isso se sente obrigada a cumprir todas as exigências do IB. A coisa é simplesmente metida lá na fachada, como se se tratasse de verdadeira escola IB, para atrair mais dinheiro. Mas é tudo, sempre, uma isca. Se você pagar, logo começará a aceitar qualquer coisa que lhe digam, em troca dos benefícios que você espera obter. Inevitavelmente significa que você será adestrado para ver as coisas como os norte-americanos as veem – porque até o curriculum já chega pronto. Mas... e que vantagens reais adviriam disso?!
Atualmente, quase tantos georgianos vivem no país, quanto no exterior. Quantos georgianos proeminentes você poderia citar, que vivem em outros países? Os poucos que alguém talvez lembre são pessoas que fizeram carreira no esporte ou na arte, áreas nas quais as qualificações educacionais não são prioridade.
Bem poucos conseguem um bom emprego no ocidente, simplesmente porque 'pensam' como um norte-americano, porque continuam a ser georgianos. A matrix norte-americana, como é adotada nas escolas IB, torna os georgianos dependentes para sempre, sempre precisando do Tio Sam para indicar-lhes como fazer coisas que, antes, faziam sozinhos sempre que podiam fazer – e essa é precisamente a razão pela qual foram escolhidos em primeiro lugar para serem doutrinados.
Quanto pior a realidade, melhor o sonho
Os pais alegam que foram atraídos para os ginásios privados por panfletos coloridos e discursos escorregadios, dos Relações Públicas, RPs, os marketeiros das escolas – gente especializada em manipulação, de integridade questionável, em tudo assemelhados aos 'especialistas' midiáticos que o governo da Geórgia emprega e põe na mídia, como Patrick Worms, leitor assíduo dos meus artigos. Os pais reclamaram que os filhos mal sabem escrever, e que o programa de matemática foi-se convertendo em desastre absoluto com o passar do tempo.
Os professores georgianos têm salários inferiores para o mesmo serviço, para encorajar os alunos a preferir os estrangeiros ("mais valiosos"), não os professores georgianos. Plágios e traições são frequentes, mas tratados como parte da forma mental cultural coletiva, de modo que as mesmas práticas, no futuro, podem ser usadas contra os georgianos. De fato, os alunos são encorajados a fazer qualquer coisa, sem qualquer punição, para assim criminalizar todo o país na pessoa de seus mais brilhantes representantes. Assim se 'demonstra' que georgianos do "baixo nível" são inerentemente ainda piores que suas 'elites'.
A New School faz de tudo para entregar o certificado DP [Diploma Programme , para alunos de 16-19 anos], custe o que custar, sem qualquer consideração aos méritos do aluno. Essa é uma das principais razões pela qual a New Scholl mantém seu status, apesar da concorrência de outras escolas. Como acontece com qualificações paquistanesas de profissionais engenheiros, o diploma em si nada vale. Apenas mostra que o aluno é filho da classe 'certa', conhece as pessoas 'certas' e está satisfeito com a corrupção à volta dele, desde que lhe renda as vantagens 'certas'.
Se você examina os líderes políticos georgianos pró-EUA, todos eles se distinguem por precisamente essas características aos olhos do público georgiano. Os raros políticos georgianos que são pobres quando chegam ao Parlamento pela primeira vez, logo aprendem que o título "Deputado" ou "Senador" aposto ao seu nome gera riquezas misteriosas, inexplicáveis. O sistema funciona assim, e os clientes zelam para que continue a funcionar. Não importa quantas manifestações haja contra 'as políticas dos EUA', nenhum manifestante morderá a mão que o alimenta, sobretudo quando nenhuma outra mão poderá jamais alimentá-lo, porque todos são produto da mesma política educacional.
A atitude dos EUA diante da Geórgia torna à prova de tudo, o modelo de negócio da New School. A escola cobra preços altos dos pais, para garantir que os filhos saiam de lá com o diploma DP, mas na sequência cria condições nas quais é impossível ensinar/aprender adequadamente. Assim sendo, as crianças não terão condições para prestar exames legítimos e obter legitimamente o mesmo diploma, em outra escola.
Ou você joga o jogo sujo, ou perde tudo. Onde todos saibam que você aceitou a escroqueria, o que faz de você um escroque a mais, como são todos os egressos da tal escolas, você fatalmente terminará sem credibilidade e sem salário – embora com o diploma. Mas quanto mais isso acontece, mais pais abraçam a única estrada que essa política deixou para eles, na esperança de que, ninguém sabe como, a tragédia não acontecerá com os filhos deles.
Muitos professores estrangeiros acabam por se dar conta de que são usados para dar uma pátina de legitimidade a esse sistema de distribuir diplomas inúteis para ricos tolos, empregados exclusivamente para satisfazer pais ricos que querem professores estrangeiros para os filhos.
Não podem fazer o que poderiam talvez fazer, porque estão em posição precaríssima, mas têm de assinar exames fraudadas e avaliações internas fraudadas e ignorar as mentiras e os testes sem qualquer controle. Se alguém é por acaso descoberto (o que, parece, nunca aconteceu até hoje), o coordenador dos diplomas IB/DP e a escola, certamente dirão que a culpa é do professor.
Se um professor autentica exames ou testes de ingresso que sabem que foram adulterados, seu nome está arruinado para sempre. Se não "mantém o programa e segue adiante", não só e demitido como vê seu nome incluído numa lista negra dos demitidos daquela escola, o que implica dizer que o professor perde sempre, não importa o que faça.
Os EUA é um dos países que cuida de manter seus embaixadores em perpétua circulação, para evitar que sejam 'contaminados' pelos locais, se permanecerem num local por muito tempo. Assim também os professores da New School, não permanecem por mais de dois anos. Essa falta de estabilidade, além das insustentáveis condições para lecionar e garantir instrução inadequada, contribui para manter os alunos sempre abaixo do nível de competência que se poderia esperar deles em todos os campos acadêmicos, praticamente sem nenhuma culpa dos alunos. Se a Geórgia deseja permanecer no nicho que lhe cabe entre aliados dos EUA, e enquanto os georgianos aceitarem fazer concessões cada vez maiores, a coisas são assim, porque é assim que devem ser.
Uma moeda de prata
A New School é apenas uma das muitas que oferecem educação à moda ocidental. Mas é a que tem mais longas listas de espera. Cada um decida por si o que são as outras, lendo sobre QSI e European School.
A República da Geórgia fez algumas tentativas para reformar seu sistema público escolar. Mas na prática não passaram de reformas 'tamanho único'. Muito do que foi implementado não considerava as diferentes carências dos alunos e das comunidades, nem tradições culturais nem a natureza de cada economia local.
É feito deliberadamente, porque quanto mais execrada e desacreditada é a educação pública, mais pais e alunos buscam as empresas de educação privada, o que gera mais desigualdade e estimula as maiorias pobres a crer que, quanto mais o cidadão é pobre e explorado, mais ele/ela tende a se agarrar a, e a defender, qualquer coisa que tenha, por imprestável e envenenada que seja.
Na essência, a mensagem 'educacional que o Ocidente impôs à República da Geórgia é que tudo é permitido, contanto que você arranque alguma vantagem do próximo, qualquer próximo. Políticos e cidadãos da Geórgia foram obrigados a comprar esse sistema, e assim continuarão as coisas, dado que ninguém vê aí nada de errado. Nem teriam como ver, porque todas as escolas privadas operam do mesmo modo e todas as escolas públicas são forçadas a oferecer lixo, de modo a não interferir no projeto daquelas escolas privadas. Ninguém precisa de exército para invadir/ocupar, porque a população absolutamente não vê chegarem as forças invasoras/de ocupação.
Tudo se encaixa na Matrix – como no filme Matrix Revolution, no qual quem resistir acabará presa do agente Smith, agente do mal. Ele se apossa dos resistentes, como faz o Borg. O fato de a Geórgia ser estado independente, que produzia acadêmicos e profissionais respeitados antes de os EUA chegarem, já foi convenientemente apagado pelos que criaram essa situação, e continua apagado pelos georgianos que ainda esperam beneficiar-se desse apagamento.*****
terça-feira, outubro 10, 2017
sexta-feira, outubro 06, 2017
TODO GOLPE É BROXA
«A pessoa orgasticamente insatisfeita desenvolve um caráter artificial e um medo às reações espontâneas da vida; e assim, também, um medo de perceber suas próprias sensações vegetativas»
«É seu próprio corpo que o paciente esquizofrênico sente como seu perseguidor»
«As leis patriarcais pertencentes à religião, à cultura e ao casamento são predominantemente leis contra a sexualidade»
«É simples e parece até vulgar, mas eu sustento que toda pessoa que tenha conseguido conservar alguma naturalidade sabe disto: os que são psiquicamente enfermos precisam de uma só coisa — completa e repetida satisfação genital»
«O homem é a única espécie biológica que destruiu sua própria função sexual natural e está doente em consequência disso»
Wilhelm Reich - A função do orgasmo
DIARIODOCENTRODOMUNDO.COM.BR